694 mortos em seis meses, entre janeiro e julho de 2007: a cifra enche de orgulho o governador do Estado do Rio de Janeiro, que parece acreditar ser esse o caminho para acabar com o império do narcotráfico na capital fluminense. Estamos, aqui, falando de um massacre do Carandiru por mês, todos os meses, ou de quatro mortes por dia – uma a cada seis horas. É absolutamente inacreditável. Difícil saber o que é pior: a leveza com que Sérgio Cabral defende o reinado do terror ou a quase total indiferença, quando não manifestações de apoio explícito com que suas declarações são acolhidas pela assim chamada sociedade civil. Que mandado é esse? |
Esse procedimento permite que os policiais tomem de assalto as residências dos favelados e transformem o morro inteiro num selvagem campo de batalha.
Caro leitor: você já parou um segundo para pensar o que significa um mandado de busca coletivo? Significa que a polícia pode entrar em qualquer casa, a qualquer hora, revistar todos os aposentos, interrogar todos os moradores, apreender quaisquer objetos considerados “suspeitos”, por uma única razão: porque a casa situa-se numa área que se tornou alvo de uma ação policial. O mandado de busca coletivo suspende todas as garantias constitucionais, ignora completamente os direitos individuais e as normas mais básicas do convívio civilizado. É uma humilhação terrível, imposta pelo Estado aos cidadãos “do bem”, sitiados em seu próprio lar.
Pergunta: quais são as chances de que algum dia algum juiz autorize um mandado de busca coletivo, digamos, nos jardins de São Paulo, ou no Leblon carioca?
Chegamos, aqui, ao coração do problema. O governador só pode se referir com tanta leveza e orgulho aos seus Carandirus mensais porque as vítimas não existem aos olhos da classe média. São os negros e pobres das favelas, um amontoado de carne cuja falta ninguém sentirá no dia seguinte – exceto, é claro, os seus amigos e familiares que são tão negros e pobres quanto, e por isso igualmente não contam.
Cinismo e silêncio
Questionado por jornalistas sobre a óbvia diferença de atitude da polícia quando suas operações são realizadas em bairros “brancos” do Rio, Beltrame nega: “"As diferenças na execução das operações existem em razão das características de cada morro ou favela e do modo de atuação das quadrilhas.” Claro, quem pode duvidar disso? E explica, também, que as mortes que acontecem hoje evitarão um número ainda maior no futuro – mais ou menos como a Casa Branca explicou que as bombas sobre Hiroshima e Nagasáqui foram uma providência humanitária (sic) para abreviar a guerra. OK.
Se o cinismo e a brutalidade dos representantes do Estado causam náuseas, não menos asqueroso é o silêncio cúmplice da classe média. Reside aí um perigo imenso: o da conivência com procedimentos de limpeza étnica, em nome do combate ao crime e ao “mal”. Já vimos esse filme antes e sabemos para onde pode conduzir.
José Arbex Jr. é jornalista
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