Hegemonia e diversidade cultural
Pelo que venho ouvindo e vendo, estes quatro dias do Fórum Cultural Mundial têm sido especialmente ricos para todos. Creio que estamos praticando uma conversa de alto nível, surpreendente pela quantidade de afeto e pelas idéias-força, velhas ou novas, necessárias para o aprofundamento do debate.
As instituições e demais estruturas dos dias de hoje têm enorme fluidez. Funcionam como um tocador de MP3 ou as mãos ágeis de um tecelão. Migram descontinuamente entre muitos fios e temas, simultâneos, armazenados em múltiplas memórias e capacitações, todas necessárias para nossa complexa formulação e atuação em várias frentes. A ação dessas novas instituições governamentais, empresas e instituições não- governamentais são como hardwares que necessitam de programas continuamente atualizados e de novos combustíveis, que são estas conversas, estas diretrizes e estas orientações aqui expostas. Antevejo conseqüências e influências muito reais de tudo o que vem sendo discutido, do que vem sendo aqui pensado e será em breve processado e plasmado de forma institucional.
Parabenizo a todos pela ousadia ao transformar a programação virtual em real animação, em novas e construtivas formas de crença e organização, conteúdos coletivos feitos da escuta das palavras afetivas da alteridade, das tentativas de novas linguagens para expressar os novos conteúdos, tudo tecido por vocês, dezenas de debatedores nacionais e internacionais. Parabéns pela produção de consenso e pela produção de dissenso. Como disse um representante do ministério de Cultura da Argentina, há poucos dias, a celebração consensual da diversidade significa que temos o direito e, às vezes, o dever de divergir. E isso quer dizer ter e emitir opiniões diferentes que, muitas vezes, expressam momentos distintos ou lugares distintos da compreensão de um mesmo fenômeno.
Quando diversidade rima com igualdade...
Aceitei participar de todas as mesas às quais fui convidado com a entrega de alguém que realmente acredita nestas formas de produzir inteligência, de quem é disponível a essa possibilidade de influenciar e ser influenciado. Desejo transparecer a vocês o que considero um dos pilares de uma gestão pública de cultura hoje: o espaço público tem que ter essa quentura, essa permanência para além de eleições e lugares consagrados de produção intelectual. Essa fluidez fundamental de construção de uma esfera pública nunca acabada.
A gestão dos dias atuais não constrói sua agenda dentro de gabinetes, mas neste espaço, no corpo de cada um de nós, na corporificação das redes ou na encarnação permanente de todas idéias. Idéias que nos dizem em alto e bom som que a incorporação da diversidade em nossos corações – e em nossas instituições – é o reconhecimento de que diferenças culturais são positivas, mas desigualdade sociais não são e não serão jamais.
É desse binômio entre diversidade e desigualdade que pretendo partir para uma discussão com vocês. Principalmente, porque a hegemonia é um dos sintomas nocivos da desigualdade de forças, que se reflete em instituições reais, em poder real e legitimado, em acesso concreto de cada país à cultura e aos meios de se fazer conhecer e de se realizar.
Cultura, esse terreno de preservação e ruptura
Como cultivo do labor humano sobre a natureza, a cultura é o domínio da vida humana, da realização da mão do homem sobre a fartura limitada do planeta. Cultivo pressupõe o trabalho constante de volver a terra, de reverenciar a matriz natural do que fazemos. Também diz respeito ao que permanece, ao que regula, não apenas ao que surge de novo e rompe com o passado. Cultura é liberdade, ruptura e inovação, mas também é regulação e tradição, os sedimentos que nos constituem nos movimentos profundos e teutônicos da constituição humana.
A palavra cultura tornou-se um sinônimo hoje de tudo o que buscamos como aspiração mais elevada. Ao escolher esse caminho, temos que tomar a precaução de não esvaziar o sentido pleno da experiência cultural. Acredito que não basta somente associarmos cultura a idéias positivas classicamente assentadas entre nós, como a noção de lugar, de modos de viver modos de ver e olhar. Não se deve suprimir a complexidade e historicidade da idéia de cultura em nossos séculos e em nossos dias.
A antropologia desalojou o tempo único e a linearidade do velho mundo. O tempo cristão arcaico previa um tempo que se afunilava em direção ao seu esgotamento moral, sob a luz do filho na terra, incapaz de honrar a sua origem celestial. Sua finalidade estava na própria origem do tempo, que se dissolvia e perdia sentido como uma ampulheta. O homem sonhava com a origem e sofria ao dela distanciar-se.
A emergência de um planeta multicêntrico
O tempo do renascimento europeu mudou radicalmente – e, para muitos, dolorosamente – essa direção da imaginação humana. Projetou adiante uma nova visão de tempo, acelerando o seu curso e apontando para o progresso, para o futuro. Estes dois tempos eram lineares: um voltado para um passado mítico e, outro, para um futuro onde era preciso logo chegar.
Em meio a tudo isso estava o homem, alojado num tempo moderno e múltiplo, ainda crente de sua identidade de corpo, alma e tempo. Creio que ainda estamos tentando compreender a crise e o significado dessa mudança. Estamos hoje desalojados desses sentidos lineares de tempos.
No plano dos estudos – principalmente, na antropologia — e nas políticas de identidade, no plano da lutas coloniais e pós-coloniais das multidões, essas forças intelectuais e sociais deslocaram esse tempo egoísta do homem alojado no centro do universo e fraturaram o centro geopolítico do mundo. Revelaram um planeta multicêntrico, com muitas narrativas e imagens de si próprio. Isso libertou a nossa percepção de humano de uma gênese abstrata do espírito humanista e nos fez enxergar melhor a diversidade cultural do planeta, explicitando as seculares intenções de promover a cultura da racionalidade instrumental nos modos de ser e fazer.
No entanto, nem tudo nessa mudança foi imediatamente assimilado como aprendizado, como adaptação fácil. Isso se reflete em vidas concretas, na falta de planejamento narrativo das vidas dos trabalhadores e em nossas instituições fluidas, que não mais oferecem o velho modelo de ocupação e estabilidade que ofereciam no começo do século 20.
É um contexto dissolvente de uma velha ordem de trabalho, de cultura e de tecnologia. Nesse contexto, a noção de diversidade cultural tem nos ajudado a procurar caminhos e a reorganizar uma agenda de emancipação e realização humana.
Em contexto dissolvente, novo papel da diversidade cultural
A velha diversidade cultural era a força dissolvente de tentativas imperiais. Mas hoje ela é o motor de nossas melhores expectativas. É ela que pode nos iluminar para resolver as formas atuais de assimetrias que se expressam, por exemplo, em formas de contrato que prejudicam autores ou em formas de propriedade intelectual que eliminam o acesso. São assimetrias geradas por falta de instituições capazes de reconhecer e dar poder às populações detentoras de um saber real, desprovidas do saber universitário e bacharelesco.
Entre as lutas pós-coloniais estão as lutas nacionais e globais de acesso e afirmação tardia de direitos, dos direitos à cidadania, ao prazer, ao lazer e ao tempo livre. Lutas que vieram fazer da diversidade cultural uma realidade nos meios de comunicação, que tornaram-se verdadeiros meios de existência social. Lutas que vieram comungar a diversidade cultural como acesso à tecnologia e aos mais variados bens e serviços culturais.
A velha idéia de civilização buscava a harmonia universal pela busca da hegemonia; suas aspirações milenaristas podiam, ao fim, impor a sua lógica de cima para baixo e encontrar a dominação, a supressão, os saques e os corpos feridos pelas batalhas de colonização, posteriormente, de descolonização. A velha frase de Benjamim de que um documento de civilização é também um documento de barbárie sintetiza bem o saldo negativo da colonização. Isso também é cultura.
Saudável emergência da economia criativa
Nós, que nascemos depois desse processo, não queremos vestir a armadura pesada dessas heranças, pelo contrário. Ao mesmo tempo, não podemos desconhecê-las, sob pena de não exercermos a leveza necessária de uma nova forma de organizar a cultura e suas vidas.
Estivemos discutindo nestes quatro dias como o contexto atual é de uma redefinição radical da forma de produção e geração de valor. A culturalização da vida contemporânea – com a estetização forte dos fluxos, dos fazeres cotidianos e de nossas vidas – elevou nossa capacidade de criar e trouxe infinitas possibilidades de inclusão de multidões como sujeitos de suas histórias e narrativas de vida, individuais e coletivas. Esse fenômeno é o que hoje chamamos de economia criativa.
Mas esse novo tempo trouxe também novas formas de repor e conservar os modelos de organização e exclusão, em nome do conhecimento e seu acesso, principalmente para os países em desenvolvimento como o Brasil. Por exemplo: a apregoação dos sistemas meritocráticos pode se tornar, na prática, ferramenta pós-colonial de repor velhas exclusões. Destina-se a deixar milhões de pessoas fora dos sistemas de emprego, porque elas não tiveram acesso aos programas de educação de qualidade e de capacitação.
A tentação totalitária da meritocracia
Esse raciocínio é bem contemporâneo, tem boa influência e é parte da premissa de que o mérito é, na verdade, o talento e o esforço de indivíduos, de pessoas que lutam e largam em iguais condições. Entretanto, quero ressaltar que o mérito tem menos a ver com talento que com patrimônio que se acumula por centenas de pequenos e grandes acessos que uma sociedade garante a partir da gestação materna dos indivíduos. Falo do patrimônio acumulado de geração a geração, de pai para filho.
A constituição plena de uma república não pode ser feita de forma abstrata, a-histórica, com cidadanias plenas e também abstratas, desconhecendo séculos de desigualdades transmitidas e acumuladas. Como se pudéssemos zerar o jogo das heranças e sofrimentos, produtos da escravidão ou do genocídio indígena, em nome dos legítimos ideais republicanos com os quais todos nós concordamos.
Podemos fazer o discurso da meritocracia em abstrato e esquecer o que a escravidão ainda representa em cada esquina e em cada relação social?
Isso tem muito a ver com a identidade, com as suas políticas sob o arco da diversidade. As cotas raciais podem não ser o melhor dos mecanismos, mas são o melhor do que dispomos hoje para não aderir plenamente ao modelo meritocrático abstrato, universal e, na verdade, excludente.
Força inesperada questiona a globalização hegemônica
A velha ligação de cultura nós conhecemos – e não desejamos. Ligada a uma geopolítica de território, à supressão de identidades, à colonização da língua, à imposição de sistemas jurídicos, ao comércio injusto e ao saque arqueológico em nome de uma racionalidade instrumental.
Hoje a força emergente dessa diversidade, sujeito e ciente de si própria, qualifica a globalização e impede que seja reduzida à circulação de mercadorias – uma forma de organizar o mundo que, ao excluir outras dimensões, acentua as assimetrias.
As idéias de Estado também se adaptaram e foram desafiadas. Algumas idéias dominantes tentaram e ainda tentam desprestigiar o Estado-nação, a própria idéia de História, dizendo que ela finalmente chega ao fim, depois da bipolaridade da guerra fria. Os Estados estariam com os dias contados, cabendo então cortar e cortar instituições e seus gastos, inclusive os de cultura.
Os papéis do Estado e Nação no tempo da diversidade
Nesse contexto, a defesa atual da diversidade estabelece um novo momento que, no meu entender, não vem no sentido da dissolução dos Estados-nações, mas da superação de um velho modelo de Estado e Nação. As produções autoritárias de identidade que suprimiam diversidades internas das nações foram denunciadas e reconhecidas. Os Estados sabem que não são produtores de cultura, mas instituições que devem reconhecer a cultura e garantir direitos de identidade e acesso.
Parte da nossa capacidade de agir politicamente ainda se deve muito aos Estados. Ao se redesenhar, me parece que o Estado tem hoje pela frente muitos papéis decisivos, se for democrático, atuante e tiver uma visão de diversidade cultural interna e externa. Por exemplo: sem os Estados-nações não teríamos aprovado a Convenção para a Promoção e Defesa da Diversidade Cultural e Expressões Artísticas, da Unesco.
O futuro dos Estados e de suas novas e necessárias instituições está ligado à compreensão da diversidade. Essa nova realidade fractalizou-se em milhões de novos sujeitos. Alterou os endereços do que era global e do que era local. Surgiu o “glocal”. Através da tecnologia digital, ele alterou as barreiras entre produtores e consumidores. Surgiram os “prosumidores”, que produzem enquanto consomem, e consomem enquanto produzem.
Praticamos a diversidade como direito à identidade e como forma de criar, como reconhecimento radical da alteridade, da presença legítima do que não alcançamos, mas do que nos faz conhecer e cultivar a nossa própria cultura.
Resgatar a senha e o sonho da alteridade
O sonho da alteridade está na origem da globalização e da arte, pelo menos mais claramente desde o Renascimento. Sonhamos há séculos com as distâncias virtuais que a alteridade projeta e estimula em nossa imaginação. O tempo de Shakespeare sonhava e romantizava as cidades mediterrâneas, as paixões públicas e privadas da latinidade italiana e sua ilustre gênese na Renascença. Recordo dos Lusíadas e da poetização das primeiras miragens do Novo Mundo – essa projeção utópica. No Brasil, nos tornamos árabes e orientais pela movimentação global do Quinto Império português e seu sonho universalista, já ao som dos pandeiros.
Ou, mais modernamente, da paixão dos franceses pelo cinema americano, sonhado em cinematecas escuras e a devoção da pintura action-painting expressionista abstrata americana pela vanguarda européia. Ou a revolução de Zaha Hadid, uma arquiteta contemporânea iraquiana que modela e desequilibra o círculo harmônico oriental pelas bioformas inspiradas na velha arte surrealista ou nas fantasias de futuro da literatura e das séries B de naves espaciais. Ou as introspecções em voz sussurrante dos revolucionários da bossa nova em praias ensolaradas a sonhar as harmonias do jazz produzido em invernos temporais e espirituais da América negra.
Em nossos sonos modernos e pós-modernos e em nossas vigílias em cavernas escuras, sonhamos com o Velho Mundo. E o Velho Mundo sonha com a modernidade americana, com as paisagens de larga escala e as posturas de corpo, de afeto e de informalidade destes tristes trópicos. A arte já era virtual antes mesmo da virtualidade dos protocolos IP e das simulações de código digital.
A validade radical do que chamamos “humano”
Essa imaginação da diversidade é uma forma de vida, uma biopolítica que se realiza como afirmação profunda de idéias, conhecimentos, saberes e fazeres que são transmitidos foras das instituições do Estado, corpo a corpo, boca a boca, como oxigênio inesgotável diluído no ar.
E se ele é comum a todos os povos, é porque essa imaginação, essa predisposição de afeto, essa reserva de conhecimento superior é o que nos repõe uma perspectiva de humano. É o que nos repõe sem que a perspectiva universal tenha qualquer conteúdo regressivo, qualquer perspectiva de uniformidade. É o que se projeta no outro pelas possibilidades de encontro, interação e amor.
A noção de diversidade pode se contrapor à realidade das hegemonias produzidas por assimetrias, mas gostaria de frisar a vocês que não podemos descartar a validade do que chamamos de humano, mesmo que isso esteja infinitamente em aberto, esvaziado do velho conteúdo civilizador. Que a humanidade signifique entre nós esse desejo de completar-se no outro. Seja no vizinho, ou no desconhecido. Que possamos nos completar uns aos outros para além da tolerância e para além do multiculturalismo.
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