sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Echelon, again.

BIG BROTHER WANTS YOU - Echelon, um megassistema eletrônico dos EUA, patrulha o mundo
José Arbex Jr.


Talvez você não saiba, mas é perfeitamente possível que todas as suas mensagens por telefone, e-mail e/ou fax estejam sendo interceptadas por um gigantesco sistema eletrônico de espionagem – o assim chamado Echelon – e enviadas a um centro de informação situado nos Estados Unidos. Paranóia? Coisa de “esquerdinha” que fica fabricando “teorias conspirativas contra o imperialismo?” Antes fosse. O pequeno problema é que esse assunto já vem sendo debatido no âmbito do Parlamento Europeu, e é tão sério que ameaça causar uma crise diplomática entre França e Estados Unidos. De fato, no início de julho, apoiando-se em documentos divulgados pelo Parlamento Europeu, a promotoria pública da França solicitou formalmente ao órgão francês de contra-espionagem (Serviço de Vigilância do Território) que investigue a existência e as atividades do Echelon. Caso se comprove, Paris pretende declarar que Washington promove um “ataque aos interesses vitais da França”.

O próprio Parlamento Europeu aprovou, em 5 de julho, a criação de uma “comissão temporária” para investigar o Echelon. A tarefa da comissão, composta por 36 parlamentares, será a de “verificar a existência do sistema de interceptação de comunicações e se o Echelon é compatível com o direito da União Européia”. Segundo um informe do Parlamento Europeu, publicado em outubro de 1999 a pedido de sua Comissão de Liberdades Públicas, o Echelon constitui “uma infração do direito comunitário”. Essa conclusão dá base à ação jurídica francesa.

As evidências da existência e das atividades do Echelon são contundentes. A “bomba” estourou no começo de janeiro do ano passado, quando o Parlamento Europeu recebeu denúncias produzidas por seu Comitê de Avaliação Científica e Tecnológica, segundo o qual, “na Europa, todas as chamadas telefônicas, os fax e os textos transmitidos por correio eletrônico (e-mail) são regularmente interceptados e as informações de certo interesse retransmitidas, através do centro estratégico britânico de Menwith Hill, para o quartel-general da National Security Agency (NSA), agência central de espionagem americana”. O estudo afirma, ainda, que os Estados Unidos utilizaram o Echelon para praticar espionagem econômica e industrial na Rússia, China, América Latina e em países europeus, como a própria França.

As denúncias apontavam dois casos confirmados de espionagem econômica pelo Echelon, que beneficiaram empresas americanas em detrimento de concorrentes europeus. O primeiro envolve o Brasil, mais particularmente o Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia): em 1994, a empresa francesa Thomson perdeu o contrato de implantação do Sivam para a americana Raytheon, no valor de 1,4 bilhões de dólares. À época, o governo francês denunciou a prática de espionagem industrial pelos Estados Unidos, permitindo que a empresa americana oferecesse um preço melhor no processo de licitação, mas o assunto terminou em pizza, como, aliás, é de praxe nesse país. O outro caso comprovado aconteceu também em 1994, quando o consórcio europeu Airbus perdeu uma concorrência, na Arábia Saudita, para a americana McDonnell-Douglas, “graças ao sistema de escuta eletrônica Echelon, que teria fornecido aos americanos detalhes da proposta européia”, afirma o relatório.

O debate no Parlamento Europeu provocou uma certa reação no Brasil. Parlamentares da oposição chegaram a propor, no final de fevereiro, a formação de uma CPI para investigar o processo de licitação para instalar o Sivam. É claro que FHC foi totalmente contra a proposta. O porta-voz de FHC, Georges Lamazière, afirmou que, “do ponto de vista do governo”, não havia nenhuma irregularidade na licitação do Sivam e, apesar do relatório do Parlamento Europeu, o contrato não seria revisto. Para o governo, o que interessa é que a Raytheon teve proposta melhor do que a Thomson. Claríssimo. Somos mesmo uma colônia, como poderíamos nos atrever a questionar o direito que tem a matriz de nos espionar? Ora...

Nick Fielding e Duncan Campbell, ex-funcionários do sistema, afirmaram aos investigadores do Parlamento Europeu que o Echelon foi utilizado para bisbilhotar até mesmo a vida de gente como o papa João Paulo II e a princesa Diana, além de organizações como a Anistia Internacional (AI) e o Greenpeace. Wayne Madsen, que trabalhou durante vinte anos para a NSA, declarou publicamente, em fevereiro deste ano, que “qualquer um que seja politicamente ativo eventualmente acabará na tela do radar da NSA”. O próprio governo americano, que nega formalmente a existência do Echelon, foi obrigado a declarar, em relação a esses casos comprovados de interceptação de informação industrial, que seus “recursos de espionagem” são utilizados contra empresas em “países amigos que fazem concorrência injusta a firmas dos Estados Unidos”.


Descartada, portanto, a hipótese de que tudo não passa de “alucinações da esquerda conspirativa”, vamos agora descrever como funciona o Echelon, pelo menos segundo o pouco que dele se conhece. Aparentemente, o sistema começou a ser construído em 1948, bem no início da Guerra Fria, mediante um acordo secreto (e nunca admitido publicamente) assinado pelos Estados Unidos e quatros outros países de língua inglesa (Canadá, Grã-Bretanha, Austrália e Nova Zelândia), que formaram o Pacto Ukusa. O propósito original desse sistema era o de colher informações sobre a União Soviética e os seus aliados, no espírito da Doutrina Truman de fevereiro de 1947 (aquela que dizia que os Estados Unidos combateriam a ameaça comunista em qualquer parte do globo onde ela se manifestasse). O sistema, batizado como Echelon (palavra de origem francesa utilizada pelos militares de língua inglesa que significa, literalmente, escalão), foi colocado sob a direção da NSA.

O sistema é integrado por cinco bases terrestres a partir das quais são interceptadas as comunicações telefônicas internacionais que passam pelos 25 canais Intelsat, segundo informa a revista “Cadernos do Terceiro Mundo” (nº 210, junho de 1999, página 63), citando o livro “Secret Power”, de Nicky Hager, publicado na Nova Zelândia. Cada país do Pacto UKUSA, exceto o Canadá, está encarregado de cobrir uma região do planeta. A base que controla a Europa é a já mencionada pelo relatório do Parlamente Europeu; a que controla o hemisfério americano, incluindo o Brasil, fica em Segar Grove, a 250 quilômetros de Washington; as regiões do Índico e do Pacífico são “monitoradas” por três bases terrestres: a de Yakima (base do exército americano a pouco mais de 200 quilômetros de Seattle), a de Waihopai (Nova Zelândia) e a de Geraldton (Austrália).

O Echelon, segundo afirma o jornal britânico “The Independent”, é capaz de produzir pelo menos 3 bilhões de interceptações diárias. Os computadores empregados pelo sistema, chamados “dicionários”, são capazes de examinar, decodificar e filtrar quantidades imensas de mensagens alfanuméricas. Grupos de mensagens que contenham certas palavras-chave são imediatamente encaminhadas a órgãos específicos da NSA. Se você viu o filme “Sete Pecados” (David Fincher, 1995), sabe como isso funciona: os computadores das bibliotecas públicas americanas são programados para identificar e “fichar” automaticamente os seus usuários que requisitem livros contendo termos “perigosos” como xiita, Islã, fundamentalismo, comunista etc. Já o filme “Inimigo do Estado” (Tony Scott, 1998) faz uma excelente descrição de como o sistema pode acionar os seus satélites, computadores e câmaras para espionar, localizar e perseguir qualquer pessoa, em qualquer parte do planeta.


As semelhanças com o famoso Big Brother de George Orwell não são mera coincidência. Qualquer cidadão brasileiro tem razões de sobra para ficar seriamente preocupado, ainda mais agora, quando FHC começa a reconstruir os órgãos da ditadura militar, como o sinistro Serviço Nacional de Informações (SNI) e o Dops (agentes “especiais” da Polícia Federal treinados pelo FBI na luta contra organizações e manifestações populares). Não é comovente ver como estão irmanados, na mesma trincheira, o Echelon e os nossos arapongas? Você já não se sente parte do Primeiro Mundo?

(Revista Caros Amigos - agosto 2000)

José Arbex Jr. é jornalista.


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