Tiroteio nas Américas
A irresponsabilidade conservadora é tamanha no Brasil que num momento desses chega a pedir, na imprensa, que o Brasil isole a Venezuela, impedindo-a de entrar no Mercosul. Até mesmo do ponto de vista conservador isso é suicídio puro, ameaçando levar o continente a uma corrida armamentista.
Flávio Aguiar
Lá pelos idos da posse de Evo Morales na Bolívia, quando o então recém empossado presidente cumpriu promessa eleitoral de nacionalizar (com inteira justiça) a política do petróleo e derivados, começou o canto das sereias conservadoras sobre o propalado “fracasso” da política externa brasileira no continente.
Brandiu-se a acha do nacionalismo capenga de “defender os interesses nacionais”. Capenga porque de um pé só: os mesmos e as mesmas que exigiram a “dureza” de Brasília para com La Paz defenderam ardorosamente a “moleza” nas relações com as grandes empresas sediadas na Europa e nos Estados Unidos.
Na imprensa conservadora brasileira a tendência hegemônica é provinciana, paroquial, colonizada e anacrônica. Tudo o que lembra América Latina ou América do Sul provoca irisipela na maioria dos comentaristas, a não ser para lembrar que o Chile – que disfarçadamente aparece nesta visão como o “menos índio” de todos os nossos vizinhos – é melhor do que o Brasil... de Lula, naturalmente.
Daí seguiu-se o passo constante de atacar como leniente a política do Itamaraty com relação à Venezuela, Bolívia, e menos insistentemente, o Equador. O episódio do recente bate-boca entre o presidente Hugo Chávez e o rei Juan Carlos reacendeu aquele provincianismo colonizado e anacrônico, que às vezes se disfarça de ironia, quando na verdade não vai além do sarcasmo e do preconceito anti-popular e sobretudo anti-soberania popular. Houve até comentarista lamentando não haver um rei português que espinafrasse Brasília. Aparentemente tratar-se-ia de uma “boutade” irônica; na verdade, o comentário espelha a verdade da verdade verdadeira.
Bolívia e Venezuela passam por momentos dramáticos de sua vida política. A Bolívia está à beira de uma guerra civil secessionista, provocada, no fundo, pela inconformidade da direita diante do “governo índio” de Evo Morales, disfarçada pela polêmica de “onde” será a capital do país, se em Sucre, se em La Paz. Na Venezuela, onde, até segunda ordem, existe uma ordem constitucional e democrática com um governo legitimamente eleito, se aproxima o desenlace da reforma constitucional, que pode abrir um novo contencioso de dimensões continentais.
Este quadro só reforça o papel de mediador que, aliás, vem sendo pedido em dimensões continentais, que o Brasil pode exercer, inclusive, no caso da Venezuela, com a vizinha Colômbia, no sentido até mesmo de evitar que essa situação tensa desemboque numa corrida armamentista no continente que com certeza só o Diabo sabe onde pode ir parar. E o Brasil, seja por cima da mesa ou por baixo do pano tem condições de fazer isso, não só devido a sua dimensão política no continente, mas também pela nova posição que o país está ocupando na cena mundial, graças aos avanços sociais, ainda que tímidos diante do que poderiam ser, ao acerto da política multi-lateral adotada pelo Itamaraty, e de alguma sorte, como essa da descoberta de novas reservas de petróleo na plataforma submarina.
Na Venezuela é evidente que o governo de Hugo Chávez passa por dificuldades. O projeto de reforma constitucional, sobretudo pela cortina de fumaça (mas fumaça intoxica) da proposta da reeleição por tempo indeterminado do presidente, afastou bases de apoio do governo, notadamente entre a intelectualidade, mas talvez também entre outros setores: de longe, é difícil precisar. A proposta, em si, revela a força do movimento chavista, mas também uma de suas fragilidades. Sem Fidel (batamos na madeira três vezes), parece que Cuba ficará mais ou menos onde está. Mas sem Chávez, ninguém sabe onde a Venezuela irá parar.
Talvez numa cruenta guerra civil, porque a direita venezuelana, que mereceu o apoio e o incentivo de Aznar para seu golpe em 2002, simplesmente não aceita o “alevantamento” do povo dos cerros, dos pobres do país, que finalmente estão obtendo uma dimensão de vida republicana impulsionada pelas realizações e pela retórica mais bolivariana do que socialista de Hugo Chávez.
O fato é que num país marcado pelas divisões dramáticas provocadas pela sistemática exclusão popular da vida republicana, Chávez é mais um ponto de equilíbrio do que de desequilíbrio, e seu governo, com suas realizações e suas contradições, tanto quanto sua presença sempre melodramática no continente, é testemunha disso. Sabemos que sem Chávez a situação de La Paz e até mesmo de Buenos Aires seria mais dramática do que é. E sabemos também que as declarações inflamadas do presidente venezuelano contra o Congresso brasileiro, diante da possibilidade do veto à entrada da Venezuela no Mercosul, se destinavam tanto ao público externo quanto ao interno, sobre a defesa de interesses do empresariado de seu país.
Neste quadro conturbado, pregar como vem fazendo a imprensa conservadora (vide editorial da Folha de S. Paulo domingo passado e a posição clássica do Estadão) que o Congresso brasileiro deva rejeitar a entrada da Veneuzela no Mercosul é de uma irresponsabilidade só comparável ao provincianismo tacanho de tal posição. Acho que nem mesmo o empresariado brasileiro iria comprar de todo uma tal proposta, que lhe roubaria um mercado de futuro promissor. Essa rejeição tiraria do Brasil qualquer possibilidade de exercer mediações não só em relação à Venezuela e às relações entre Venezuela e Colômbia, mas também em relação à Bolívia, à Argentina e até o Peru e o Equador. Já o Chile vem insistindo na tecla de que o Brasil deva mediar o conflito entre Caracas e Bogotá. Além disso, seria uma loucura rematada isolar mais o governo de Chávez num momento em que o Irã (cujo governo, convenhamos, se não é do “eixo do mal”, como quer Bush, também não é do “eixo do bem”, se é que isso existe) busca se implantar na América do Sul através de Caracas e de La Paz. E quando mais não seja, usar o argumento de que o governo de Chávez viola princípios democráticos, por parte de uma imprensa (inclusive os semanários) que, como Aznar, saudou efusivamente o golpe de 2002 (que nem o governo de FHC reconheceu), é de uma hipocrisia ímpar, alem de ser um equívoco conceitual, pois nada, até agora, do que Chávez fez, é inconstitucional.
Resta saber quais são os motivos dessa proposta que brinca de cabra cega num cenário internacional conturbado, se atender às reivindicações corporativas da imprensa de direita da Venezuela, que consegue o milagre de ser pior do que a brasileira, se abrir caminho para uma “derrota”, no plano interno, do governo Lula, que está corretamente buscando a integração da Venezuela no Mercosul, ou se ambas as coisas. Ou se só se trata de mais uma manifestação do atávico desprezo de nosso jornalismo liberal, que de liberal tem tão pouco, pela América Latina.
PS - Como as leitoras e os leitores podem ver, estou momentaneamente de volta ao Brasil. Prometi há tempos uma explicação. Por razões particulares estou tratando de, para o futuro, fixar residência em Berlim, estando mais lá do que cá. É disso que se trata. Por isso, as “cartas de Berlim”que devem continuar em breve e tornar-se uma tradição da Carta Maior.
Flávio Aguiar é editor-chefe da Carta Maior.
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