terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Alerta geral

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por Marina Silva
De Brasília (DF)

Em julho passado citei aqui (O espelho da politnet, 28/07) um exemplo do poder da mobilização via internet. O acontecido em 2001, quando o Congresso Nacional e o Palácio do Planalto receberam uma avalanche de mensagens eletrônicas contra a aprovação iminente de alterações no Código Florestal para reduzir a reserva legal na Amazônia. Reserva legal é a área, em cada propriedade rural, na qual é proibido desmatar.

Naquela época, essa proposta estava para ser votada em comissão mista do Senado e da Câmara, onde os parlamentares ligados ao agronegócio eram maioria. A derrota dos ambientalistas parecia inevitável, quando 287 entidades da sociedade civil lançaram na internet a campanha SOS Florestas, pedindo que as pessoas pressionassem pela rejeição.

O Congresso e o Executivo viveram, então, uma situação inédita. Só meu endereço eletrônico recebeu 35 mil mensagens num único fim de semana. O mesmo aconteceu em todos os gabinetes de deputados e senadores e no Palácio do Planalto. O Prodasen, serviço de processamento de dados do Senado, entrou em colapso.

Na comissão, a proposta ruralista ganhou por 13 votos a dois, o do deputado Fernando Gabeira e o meu. Porém, antes da votação final em Plenário, o presidente Fernando Henrique sentiu-se respaldado pelo clamor social para retirar da pauta o projeto no qual se introduzira o aumento da área para desmatamento.

Foi uma grande vitória da sociedade brasileira em defesa da floresta amazônica. Pois agora, sete anos depois, é chegada a hora de nova mobilização. Na contramão dos esforços e dos avanços obtidos nesse período para combater o desmatamento, está em curso nova proposta, apresentada pelo ministro da Agricultura, para reduzir a reserva legal na Amazônia e anistiar desmatadores de áreas de preservação permanente em topos de morros, encostas, margens de rios. E mais: transformar o zoneamento ecológico-econômico, hoje obrigatório, em mera peça de "orientação". E mais ainda: dispensar aqueles que desmataram do dever de recuperar as áreas degradadas, habilitando-os a receber financiamentos públicos, hoje vedados na Amazônia para transgressores da legislação ambiental.

É incrível, mas parece que os defensores dessas medidas não estão se dando conta da situação. A ONU, por meio dos seus órgãos especializados, tem feito anúncios preocupantes. Um terço da superfície da Terra já sofre com problemas ligados à desertificação, afetando 1 bilhão de pessoas e 20% da produção mundial de alimentos; o mundo está perdendo 200 km² de florestas por dia, valor correspondente a 20 estádios do Maracanã; até 2010, mais de 50 milhões de pessoas serão consideradas refugiadas devido a problemas ambientais nas regiões onde vivem. Isso sem falar na aceleração do aquecimento global, que coloca para toda a humanidade o desafio de repensar seus padrões de produção e consumo para evitar um colapso planetário já anunciado pelas mudanças climáticas.

Parece também que perderam a sensibilidade para reconhecer as marcas da imprevidência ambiental em tragédias como a de Santa Catarina. Enquanto assistíamos ao desastre que levou tantas vidas e desestruturou outras de modo tão avassalador, tomávamos conhecimento de outra manifestação do mesmo equívoco: a Assembléia Legislativa de Santa Catarina concluía o texto do Código Ambiental estadual, nele inserindo, como resultado da pressão de setores econômicos, medidas tais como a drástica redução das áreas de preservação permanente ao longo de rios, a desconsideração de áreas declivosas, topos de morro e nascentes como áreas protegidas, assim como dos campos de altitude, onde se dá a recarga de aqüíferos. Ou seja, forjam-se as catástrofes do futuro, que certamente serão chamadas de desastres ambientais quando, na verdade, na sua origem está o desastre político, a recusa em levar a sério os alertas que a natureza nos dá, de maneira cada vez mais dura.

O mais contraditório, no caso das tentativas de mudar o Código Florestal, é que elas acontecem dentro do mesmo governo que têm avançado em planos (Mudanças Climáticas, Combate ao Desmatamento, Amazônia Sustentável) destinados a alinhar o País ao compasso do futuro. À conferência da ONU sobre Mudança do Clima, que se realiza na Polônia, o Brasil acertadamente levou sua decisão de assumir metas de redução do desmatamento, desempenhando papel importante, pelo exemplo, no destravamento das negociações internacionais.

Enquanto isso, aqui se propõe mais desmatamento na floresta amazônica. As ONGs que participavam de um Grupo de Trabalho informal entre os ministérios da Agricultura, do Meio Ambiente e a Frente Parlamentar Ruralista, decidiram afastar-se das discussões, em resposta à proposta apresentada pelo ministro da Agricultura. Classificaram-na de verdadeira bomba-relógio para fomentar novas situações como a de Santa Catarina, ao legalizar e incentivar a ocupação de áreas ambientalmente vulneráveis. Consideram impossível negociar com um ministério que se preocupa em anistiar particulares inadimplentes, em detrimento do interesse público.

É inadiável, além de ser imperativo ético, estruturar e consolidar no País as bases para um desenvolvimento que leve em conta a crise ambiental planetária e prepare a sociedade para enfrentar os seus efeitos. E isso só se fará com coragem para pensar o nosso território como o espaço de todos os brasileiros - inclusive das futuras gerações - e não uma colcha de retalhos de interesses localizados. E muitas vezes tão imediatistas e egoístas que se recusam até mesmo a ver as vantagens de adaptar seus paradigmas a tempos onde não cabem excessos, principalmente os de privilégios. Novos conhecimentos, tecnologias e métodos existem e quem os adotou não se arrependeu.

Também é preocupante constatar movimentos que, aliados às tentativas de reduzir os padrões legais de proteção ambiental, acentuam o cenário de vulnerabilidade na Amazônia. Falo especialmente da iniciativa do ministro Mangabeira Unger, de Assuntos Estratégicos, de promover a regularização fundiária na Amazônia desvinculada do zoneamento ecológico-econômico.

Não há dúvida de que a regularização fundiária é essencial para um desenvolvimento pacífico e sustentável na região. Ela está prevista, inclusive, no Plano de Combate ao Desmatamento da Amazônia desde 2004 e no Plano Amazônia Sustentável, lançado em maio deste ano. Entretanto, dado o histórico de caos e ilegalidade das ocupações, regularizar sem o devido cruzamento e integração de critérios poderá estimular novas ondas de grilagem e ocupação de terras públicas, na medida em que gera a expectativa de criação de novas exceções no futuro, a exemplo da dispensa de licitação para regularização de novas terras ocupadas, objeto da Medida Provisória 422, de maio deste ano.

A regularização fundiária não é um fim em si mesma. Ela é instrumento de gestão pública, fundamental para organizar a ocupação do território, para reconhecer direitos e para coibir as ilegalidades, sobretudo a grilagem de terras públicas. Para tanto, esse processo precisa ser feito da forma mais cuidadosa possível, considerando as potencialidades e limitações de cada região, sobretudo as de ordem ambiental. Contudo, até o momento as declarações públicas sinalizam para simplificação das leis, diminuição de prazos, aumento do tamanho das propriedades regularizáveis a cada ano.

Apóio integralmente os termos da Carta que organizações da sociedade civil entregaram ao governo (ver em http://www.socioambiental.org.br/nsa/detalhe?id=2815), na qual se reafirma um conjunto de princípios estabelecidos no Plano de Combate ao Desmatamento da Amazônia e no Plano Amazônia Sustentável, base para a correta estratégia de regularização fundiária na Amazônia. Entre eles, assegurar prioritariamente os direitos territoriais de populações tradicionais, evitando outorgar títulos individuais em áreas onde elas vivam e exista demanda pelo reconhecimento do uso coletivo; observar a Política Nacional de Áreas Protegidas e manter articulação com órgãos federais e estaduais responsáveis pela identificação e criação de unidades de conservação, dando prioridade a essa destinação; ser orientada por planos de ordenamento territorial, como o são os Zoneamentos Ecológicos Econômicos (ZEEs) estaduais; evitar concentração de terras e o estímulo a novas ocupações de terras públicas, punindo os grileiros e as ocupações de má-fé.

Levar adiante iniciativas precipitadas e equivocadas pode comprometer seriamente os avanços obtidos até aqui, desconstituindo-os no que têm de mais precioso: a sua construção por meio de processos de governança abertos, consistentes, focados no interesse público, amadurecidos pelo confronto democrático de todos os interesses envolvidos.

O presidente Lula e os órgãos públicos que detêm responsabilidades diretas nessas questões precisam agir de imediato para restabelecer ação coordenada e coerente com os compromissos e planos assumidos pelo governo nos âmbitos interno e externo.

Mas estou certa de que o fator decisivo será, mais uma vez, a força e a voz da sociedade brasileira, impedindo que se cometam retrocessos de enorme gravidade.

Marina Silva é professora secundária de História, senadora pelo PT do Acre e ex-ministra do Meio Ambiente.

Fale com Marina Silva: marina.silva08@terra.com.br

Fonte: Terra Magazine

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