terça-feira, 16 de dezembro de 2008

A Raposa Serra do Sol no STF

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O Brasil de Chico Mendes volta à tona. O STF decide agora o direito à diversidade, identidade e ao meio ambiente. Raposa Serra do Sol transforma-se num verdadeiro divisor de águas entre ecologismo popular e desenvolvimentismo predatório. A reconciliação entre os irmãos homens e sua comum terra mãe

Vincenzo Lauriola*

No último dia 10 de dezembro, muitos olhos se voltaram para o Supremo Tribunal Federal (STF) em mais um capítulo da saga “Raposa Serra do Sol”. Ali, em 27 de agosto, uma página de história já foi escrita. Pela primeira vez, a Suprema Corte do País ouviu a defesa do direito humano à diferença pela voz da advogada Joênia wapichana, filha da diversidade etno-cultural do povo brasileiro, encarnação de seu maior patrimônio nacional e dádiva para a família humana. Viu-se quanto o Brasil ganha com sua diversidade, “se encontrando consigo mesmo”, nas palavras da Marina Silva.

Em 108 páginas de análise, iluminada pelos princípios da Carta Magna de 1988, o Ministro Carlos Ayres Britto deixou clara a inconsistência das teses dos impetrantes, e votou “para assentar a condição indígena da área demarcada como Raposa/Serra do Sol, em sua totalidade”. A análise do Ministro não deixou dúvidas quanto à situação de direito. Apesar do contexto mediático poluído pela desinformação, ela limpou o passado.

Falta agora traçar o futuro, e isso compete aos índios. “É falso o antagonismo entre a questão indígena e o desenvolvimento”: o relator contesta a idéia do caminho único para um moderno processo emancipatório individual e coletivo. A sustentabilidade, que hoje se impõe nos aspectos ecológicos, sócio-culturais e éticos da construção de “nosso futuro comum”, ganha com a diversidade dos caminhos, pois nas diferenças de uns podem estar as soluções dos impasses de outros. A diversidade dos pactos sociais de desenvolvimento aumenta a resiliência da sociedade frente às incertezas do futuro, como a crise financeira internacional veio nos lembrar. É isso que o Ministro Britto aponta ao defender o direito do indígena “demonstrar que o seu tradicional habitat é formador de um patrimônio imaterial (…) componente da mais atualizada idéia de desenvolvimento (…) um crescer humanizado”, não só “categoria econômica ou material” mas permeado de outros valores.

Lucrando às custas dos cofres públicos e da ilegalidade ambiental, o desenvolvimentismo predatório é cego frente às dádivas ecológicas dos índios para o bem estar da sociedade toda

O que ainda está em aberto, na Raposa Serra do Sol e nos diversos espaços da imensa sócio-bio-diversidade do Brasil, é o direito de escolher o desenvolvimento futuro. Dois grandes modelos se enfrentam: ecologismo popular e desenvolvimentismo predatório.

Na análise do economista ecológico e ecologista político Joan Martinez Alier [1], o ecologismo popular, ou “ecologismo dos pobres”, é a chave de leitura de inúmeros conflitos sócioambientais, onde populações “pobres”, ao defender o acesso a recursos naturais chave para sua sobrevivência, preservam serviços ecológicos de importância vital para todos. Na Raposa Serra do Sol, a luta pela terra contínua “de rio a rio”, é o exemplo vivo da dádiva ambiental dos povos macuxi, wapichana, ingarikó, taurepang e patamona para o resto da comunidade nacional. Pois a área contínua, entre rios e divisor de águas, é o único modelo que preserve a integridade ecológica e as águas que, desde os montes Roraima e Caburaí, abastecem o Rio Branco para todos os usuários a jusante. Os pescadores do Baixo Rio Branco, mais de 500 km rio abaixo, percebem que hoje, como na época do garimpo, a “água suja pelos agrotóxicos dos arrozais não deixa o peixe subir na piracema”.

O sen. Augusto Botelho e o governo estadual nos dizem que o povo de Roraima trocaria o valor sócioambiental do etno-desenvolvimento indígena por um prato de arroz apenas mais barato, pago por isenções fiscais até 2018. Lucrando às custas dos cofres públicos e da ilegalidade ambiental, o desenvolvimentismo predatório é cego frente às dádivas ecológicas dos índios para o bem estar da sociedade toda. Para Quartiero, arrozeiro e prefeito de Pacaraima, FUNAI, IBAMA e INCRA, órgãos que buscam fazer o desenvolvimento menos predatório, são o “tridente do diabo”. Mas o povo de RR já não renovou seu mandato.

O Brasil de Chico Mendes, um dos primeiros ecologistas populares mundialmente reconhecidos, se orgulha das “reservas extrativistas”, prova viva da criatividade de seus povos da floresta na busca sócio-cultural da sustentabilidade. Ao garantir o direito de existência de diversos possíveis caminhos de desenvolvimento, a Constituição preserva o espaço da política, arena na qual legitimamente se confrontam e se constroem os futuros rumos da sociedade. A 20 anos da morte do líder seringueiro, os culpados ainda andam impunes, como desde 2003 os assassinos do Aldo da Silva Mota Macuxi, e mais 20 índios de Roraima, mártires pela “Anná Patá, Anná Yan” (Nossa Terra, Nossa Mãe). Alem da impunidade contra o homem e a natureza, o Brasil não pode enterrar o ideal de Chico Mendes, rasgando a Terra Indígena Raposa Serra do Sol e a Carta Magna. O povo brasileiro perderia a liberdade de criar inéditos caminhos de reconciliação entre os irmãos homens e sua comum terra mãe.

[1] Martinez Alier, J., O ecologismo dos pobres, São Paulo, Contexto, 2007.

* Vincenzo Lauriola, Sócio-economista ecológico, Pesquisador, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA).

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil

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