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Sob os escombros do socialismo ainda jaz a única esperança para que a humanidade não se destrua. O que jaz sob esses escombros é, sobretudo, a mensagem ética da construção de uma melhor página para a história humana, com suas contradições e limites.
por Flávio Aguiar*
“O Capital”, de Karl Marx, compartilha com a Bíblia, além de questões de estilo, editoração, exegeses interpretativas e até propósitos, um destino peculiar: é livro muito citado e pouco lido. Os da minha geração que começamos a sua leitura fomos muito poucos; os que, além disso, passamos do primeiro volume, menos ainda. Explica-se: o primeiro livro foi o único de fato aprontado e revisto pelo próprio Marx. Os outros foram publicados postumamente. Apesar do nobre esforço editorial de Engels, os livros posteriores ao primeiro são mais descosidos e de leitura mais árdua.
O nosso catecismo doutrinário, o nosso Vade-Mecum, foi o pequeno livro de Engels, “Do socialismo utópico ao socialismo científico”. Ele era um excerto de outro, o Anti-Dühring, mas continha informação suficiente para dele se extrair uma visão geral do processo histórico de formação do proletariado e da burguesia da Europa, de como se chegou às grandes revoltas operárias do século XIX, e de como se forjaram as propostas do socialismo marxista.
Tínhamos uma tendência a ler tudo em preto e branco, e com um mínimo de nuances. Assim fizemos uma leitura algo positivista (na melhor tradição brasileira) do livro. Esse modo de lê-lo começava por tomar suas descrições como a da linha civilizatória por excelência. A formação da moderna luta de classes na Europa era “a” formação histórica por excelência, algo assim como na nossa infância, ao brincarmos com aqueles tijolinhos coloridos com que montávamos um burgo de aspecto europeu e medieval, construíamos sem querer nas nossas almas um modelo ideal de cidade. Durante muito tempo tudo o mais em estilo urbano nos pareceria necessariamente um desalinho do modelo original. Estendendo a metáfora, podemos entender porque até hoje existe uma resistência muito grande, tanto aí como aqui, na Europa, a aceitar o atual processo latino-americano como algo de fato original que está levantando desafios e propostas não previstos nos modelos originais.
O segundo passo daquela leitura era o de fazermos uma leitura, por assim dizer, em linha reta. Víamos o livro apenas a partir de seu ponto de chegada, a inevitabilidade do processo histórico que levava à grande revolução proletária e à liderança pelo socialismo que (até de um modo um tanto positivista...) reivindicava sua própria cientificidade. Tudo o mais que o livro continha era levado de roldão por esse verdadeiro turbilhão da história, nele se dissolvendo como uma espécie de bagaço cujo sumo fora entregue para a nova garapa de onde sairia o melaço que, fermentado e destilado, daria origem à nova sociedade. Literalmente nos embriagamos com tais visões; os mais ousados, os mais generosos até, chegaram a ofertar suas vidas nessa espécie de embriagues coletiva, uma vez que tudo era inevitável, e apocalipticamente a história socialista nos redimiria.
Foi um porre. Generoso, inesquecível, quem nele bebeu jamais se esquecerá. Mas foi um, afinal, um porre, de onde muitos, na ressaca, saíram arrependidos pela culatra de suas armas mentais, aderindo ao vai-da-valsa que se instalou quando o socialismo desabou no mundo inteiro, exceto em Cuba e em muitos corações e mentes sobreviventes.
Naquela leitura em que se via a história como um ciclone que tudo arrebatava e redimia, nos escaparam (a mim pelo menos) certas finuras do texto do Engels em que, revisitado anos depois, elas rebrilham com intenso e inusitado fulgor.
Assim em toda a primeira parte do texto, que líamos apenas como a cabal demonstração da pobre insuficiência dos proclamados “utópicos”, refulge hoje a comovente homenagem ética que Engels faz a Robert Owen, Charles Fourier e ao Conde Saint-Simon. Querendo demonstrar que eles não tinham condições materiais ou espirituais para imaginar a cientificidade do socialismo, Engels põe em destaque as extraordinárias pilastras éticas que levaram esses “precursores do marxismo” a enveredar pelos caminhos que escolheram, movidos pela generosidade, pelo espírito cívico, por acreditar de fato nos valores levantados pelas grandes revoluções européias dos séculos XVII e XVIII como patrimônio da humanidade, e não apenas como arrimo do assalto ao poder por uma determinada classe emergente, a burguesa.
Essa releitura hoje é obrigatória, tanto quanto a outra o era 40 ou 50 anos atrás. A cientificidade de índole positivista, grudada no marxismo como chicle na sola do sapato, caiu, junto com a inevitabilidade do rumo socialista. Derrubou-a não só a queda do Muro de Berlim e o desmembramento da União Soviética. Derrubou-a também a falência interna do mundo comunista na construção daquilo que seria a sua quintessência: o novo homem, o homem do futuro. O socialismo de resultados que emergiu da práxis do socialismo científico pariu ratos que hoje devoram, como máfias organizadas, o que restou entre os escombros dos sonhos mais generosos que a humanidade já ergueu e destruiu. Deu muita outra coisa também, é certo, pois sem aquele socialismo o nazi-fascismo não teria sido derrotado, e isso é apenas um exemplo. Sem sua alavanca Cuba não existiria, nem o povo vietnamita teria derrotado a maior potência imperial do mundo.
Mas hoje, a partir do arraso que contemplamos, aqueles primeiros “socialistas utópicos” nos lembram do compromisso ético (que Marx, Engels e tantos outros tinham) indispensável na construção de qualquer nova proposta socialista. Não se trata apenas de uma ética ou de uma questão acadêmicas. Olhemos para os horizontes. Que compromisso ético tinham os jovens que invadiram Mumbai na Índia, atirando a esmo?
Em que eles se diferenciam, do ponto de vista ético, dos adoradores do Mercado? É difícil dizer. Parece que nessa vala comum da destruição da política o único compromisso ético que interessa é aquele com a própria corporação. Na neblina contemporânea é difícil ver além do próprio nariz? Então façamos dele nosso farol, limite e também baluarte ético.
Como se posicionar diante dos acontecimentos na Tailândia, em que grupos se digladiavam misturando posições de um governo corrupto, de um exército que só não assalta de novo o poder porque caiu em descrédito e agentes avançados de um líder midiático, em cujas hostes pululavam desde reivindicações de puros favores pessoais até saudades da fanada monarquia?
A lista de perplexidades é longa, enquanto o tirocínio disponível é curto. É verdade que sob os escombros do socialismo ainda jaz a única esperança para que a humanidade não se destrua, como atesta a presente crise financeira que, mutatis mutandis ao revés, está prevista nas páginas do nosso opúsculo preferido, “Do socialismo utópico ao socialismo científico”. Mas o que jaz sob esses escombros é, sobretudo, a mensagem ética da construção de uma melhor página para a história humana, com suas contradições e limites. Por isso, fica o convite para se reler o livro de Engels, mas de fato dialeticamente, isto é de trás para diante mas também de diante para trás, para que nas contradições que o socialismo científico nos deixou como legado possamos encontrar o perdido, mas não desaparecido, veio da utopia socialista.
*Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior.
Fonte: Agência Carta Maior
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