Em prefácio a Raízes do Brasil, Antonio Candido, nosso mais importante crítico literário, destacou a importância das obras de Gilberto Freyre (Casa- grande e senzala), de Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil) e de Caio Prado (Formação do Brasil contemporâneo) para a compreensão e a reflexão sobre nossa formação. Esses três demiurgos do Brasil elaboraram interpretações que moldaram, definitivamente, nossa maneira de compreender a formação da sociedade, do Estado e da nação, com suas formas sociais, econômicas, políticas e culturais, com seus estigmas e modos de relacionamento que nos imprimiram um selo especial.
De acordo com o sociólogo Francisco de Oliveira, Celso Furtado junta-se, com justiça, àquele seleto grupo. Devido à originalidade de sua obra e às suas contribuições como intelectual e homem de ação, Celso Furtado deve ser considerado o quarto demiurgo do Brasil.
O novo em Celso Furtado, assim como nos outros autores já citados, é a construção de uma complexa relação entre teoria e história, que não se limita à mera justaposição mecânica e simplista. Assim, Furtado e sua obra se distanciam da tradição que ficou conhecida no Brasil como bacharelesca, que buscava enquadrar a realidade, a história, em pré-conceitos, em modelos abstratos (Oliveira, 2003).
Em sua obra clássica, Formação econômica do Brasil, é possível observar as influências teóricas que foram recebidas e retrabalhadas por Celso Furtado. A primeira e mais importante foi o trabalho teórico da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), do qual ele mesmo foi também um formulador, ao lado de Raúl Prebisch. A influência da historiografia brasileira também foi relevante, desde Capistrano de Abreu até Gilberto Freyre e Caio Prado. Da herança recebida da literatura internacional de economia e demais ciências humanas, destacam-se autores como Karl Manheim, Max Weber, Karl Marx e, sobretudo, John Maynard Keynes.
É importante que se estabeleça a relação entre Formação e a consolidação do pensamento estruturalista da Cepal. Embora não fosse seu objetivo teorizar sobre a abordagem estruturalista, a clareza do texto reforçou a mensagem teórica que a Cepal vinha transmitindo aos economistas latino-americanos. Ademais, Furtado fornecia o estudo histórico decisivo para a legitimação da referida abordagem (Bielschowsky, 2000).
Formação Econômica do Brasil: um clássico de nascença
Formação econômica do Brasil está completando 50 anos. Em depoimento ao belo filme O longo amanhecer: cinebiografia de Celso Furtado, do diretor José Mariani, o professor João Manuel Cardoso de Melo afirma que, Fernand Braudel, o maior historiador econômico do século 20, considerava Formação um livro importante para a história do pensamento econômico mundial. Trata-se de uma obra completamente criativa e sem paralelo. Nela, Celso Furtado combina com maestria a teoria econômica keynesiana com a análise histórica. Sua originalidade repousa na junção entre teoria macroeconômica e história, para realizar uma espécie de dinâmica das estruturas, que vão constituindo progressivamente o capitalismo no Brasil.
Para Bielschowsky (2000), Formação deve ser visto muito mais como um ensaio de interpretação histórico-analítica de orientação estruturalista e keynesiana do que uma pesquisa histórica em grande profundidade. Assim, o objeto da obra seria a análise dos processos econômicos, sua interpretação, e não a reconstituição dos eventos históricos.
No livro, Celso Furtado redefine a clássica divisão de períodos da história econômica brasileira (os ciclos econômicos), complementando-a com o processo de industrialização, a cuja especificidade dará brilho e clareza excepcionais.
Formação e a originalidade do pensamento de Celso Furtado
Em Formação, há uma comparação entre as chamadas “colônias de povoamento”, a exemplo dos EUA, do Canadá e da Austrália, e as “colônias de produção”, entre as quais se encontravam o Brasil e as Antilhas. Estes últimos casos seriam considerados exitosos, e o êxito fundou uma estrutura de produção escravista, muito concentrada em termos de propriedade da terra e das rendas produzidas. Esse êxito se tornaria, contraditoriamente, um dos maiores obstáculos futuros. Já as “colônias de povoamento” seriam um rotundo fracasso comercial. No entanto, Furtado observou que o próprio fracasso seria responsável pela criação de estruturas sociais mais maleáveis, que contariam com trunfos no futuro, a exemplo do acesso mais fácil à terra, com a centralidade da pequena propriedade.
Analisando a “economia escravista de agricultura tropical”, Furtado foi além de seus predecessores na história econômica da colônia e da nação ao conceder especial atenção ao que ele chamará de “complexo econômico nordestino”. Este se caracterizaria por uma estrutura dualista, com um setor exportador de alta lucratividade e elevadíssima concentração da propriedade da terra e das rendas, sustentado sobre o trabalho escravo, em articulação com um setor de subsistência de baixa produtividade, assentado no trabalho servil. Esse complexo marcaria definitivamente o Nordeste até nossos dias. Segundo Chico de Oliveira, a concepção de desenvolvimento para o Nordeste, que daria lugar à criação da Sudene, em 1959, seria inteiramente calcada na interpretação do “complexo econômico nordestino”. Não por acaso, Celso Furtado tornou-se o formulador desse projeto para o Nordeste e o primeiro superintendente desta instituição, até o golpe de 1964, que cassou seus direitos políticos (Oliveira, 2003).
Em relação à economia cafeeira, Celso Furtado considerava que sua especificidade residiria na forma pela qual foi resolvido o problema da mão-de-obra. Disso decorreu a criação de uma economia monetária, na qual o pagamento das remunerações do trabalho se daria em moeda e não mais em espécie. Assim, formar-se-ia um fluxo de renda diferente do até então experimentado pela economia brasileira em formação, além de uma divisão social do trabalho mais rica e diversificada do que a encontrada nos ciclos anteriores.
Ao longo da obra é possível observar a construção teórica do dual-estruturalismo cepalino-furtadiano, com a economia do café representando o setor moderno, enquanto as economias de subsistência de Minas e do Nordeste representariam o setor atrasado. Para Chico de Oliveira, estavam lançadas “as bases teórico-históricas para a emergência do padrão de relações centro-periferia e a constituição do subdesenvolvimento como formação histórica singular, e não uma fase do desenvolvimento capitalista primitivo em direção à maturidade” (Oliveira, 2003, p.95).
Ao analisar a crise de 1929 e seus efeitos no Brasil, Furtado mostrou como as classes sociais internas, buscando defender seus interesses centrados no café, transformaram a ousada façanha de queima dos estoques, ordenada e executada pelo governo provisório de Vargas, num movimento de transformação rumo à industrialização. Iniciou-se o processo de deslocamento do centro dinâmico, no qual o mercado interno passava a oferecer melhores oportunidades de inversão do que o setor exportador. Assim, segundo Celso Furtado, criava-se “uma situação praticamente nova na economia brasileira, que era a preponderância do setor ligado ao mercado interno no processo de formação de capital” (Furtado, 2003, p.205).
Os últimos capítulos de Formação contêm a explicitação dos problemas exacerbados pela industrialização periférica: a tendência ao desequilíbrio externo, a tensão inflacionária, a concentração da renda e o aumento das desigualdades regionais. Para lidar com tais desafios, Furtado propõe um programa reformista que enfrenta a questão regional nordestina, o problema da concentração fundiária e a necessidade de distribuição da riqueza e da renda. Em suma, apresenta uma proposição para um desenvolvimento capitalista nacional, autônomo e com justiça social.
Legado
Formação econômica do Brasil influenciou sucessivas gerações de economistas e cientistas sociais que teimam em descobrir e redescobrir o Brasil, tornando-se o paradigma de muitos formuladores e pesquisadores de política em toda a América Latina.
Por fim, é inegável que o pensamento de Celso Furtado foi marcado pela originalidade e pela abrangência. Ele pensou a questão regional, as relações do Brasil com o mundo, a América Latina. Furtado teorizou sobre a especificidade do subdesenvolvimento, fazendo-nos um alerta: ou os países da periferia ‘inventam’ suas estratégias de desenvolvimento ou entregam seu destino aos processos de reprodução das condições que geram a dependência e o atraso.
Referências Bibliográficas:
BIELSCHOWSKY, Ricardo. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo. 4ª ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000.
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 32ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2003.
OLIVEIRA, Francisco de. A navegação venturosa: ensaios sobre Celso Furtado. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.
* Tiago Nery é mestre pelo Instituto de Relações Internacionais (IRI) da PUC-RioFonte: Le Monde Diplomatique Brasil
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