terça-feira, 16 de dezembro de 2008

República e direitos humanos para o século XXI

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CONDIÇÃO DA LIBERDADE - Renda básica universal é direito a escolher própria forma de vida

A concepção republicana de liberdade é muito exigente. Liberdade e igualdade são dois fatores indissociáveis. Hoje, grandes fortunas convivem com milhões de miseráveis. As desigualdades sociais são causa da falta de liberdade para milhões de pessoas. A proposta de uma renda básica universal não se reduz à invocação de um direito humano a uma subsistência mínima. Ela se baseia numa concepção de justiça que assegure a cada pessoa não apenas a possibilidade de consumir, mas também de escolher sua forma de vida.

No começo de novembro de 2007, no marco do Fórum das Culturas que se celebrou na cidade mexicana de Monterrey, aprovou-se mais ou menos solenemente uma declaração intitulada “Declaração Universal de Direitos Humanos Emergentes” (1). Esta declaração era na realidade a continuação, depois de amplos e, em minha opinião, muito oportunos retoques e esclarecimentos de uma primeira, que já havia sido anunciada em Barcelona três anos antes, em setembro de 2004, também no marco do Fórum das Culturas. No terceiro item do primeiro artigo pode ler-se:

“O direito à renda básica ou renda cidadã universal, que assegura a toda pessoa, independente de sua idade, sexo, orientação sexual, estado civil ou condição laboral, o direito a viver em condições materiais de dignidade. Com esse fim se reconhece o direito a uma renda monetária incondicional, sufragada com reformas fiscais e a cargo dos orçamentos do Estado, como direito de cidadania, a cada membro residente da sociedade, independentemente de suas outras fontes de renda, que seja adequada para arcar com suas necessidades básicas.”

Se este artigo da Declaração de Monterrey tem alguma importância (por ora, quiçá apenas simbólica) é porque não fala de um direito à subsistência ou a ter o mínimo para viver assegurados ou algo parecido, senão que explicitamente defende “o direito à renda básica ou renda cidadã universal”. “Renda básica” é como se conhece na Europa, Canadá, África do Sul, Austrália e Estados Unidos, principalmente, a proposta que o mesmo artigo define; “renda cidadã universal” é como a mesma proposta é mais conhecida em países da América Latina (especialmente Argentina, Brasil e México, onde há seções oficiais do Basic Income Earth Network (2) ou em processo de serem estabelecidas).

A importância da concretização desse “novo direito emergente” numa renda básica ou renda cidadã universal, tão evidentemente claro na Declaração de Monterrey, pode resumir-se indiretamente com as palavras com as quais Philippe Van Parijs, um dos principais motores do BIEN, respondeu numa entrevista a Benedetta Giovanola (3), no final de 2005:

“A invocação de um direito humano a uma subsistência mínima não bastaria para justificar uma proposta dessas, pois um direito desse tipo poderia ver-se cumprido através dos sistemas de assistência social convencionais, focalizados sobre os pobres e que requerem desses a disposição para trabalhar. Uma justificação adequada requer o chamamento a uma concepção de justiça ancorada na aspiração de dotar cada um não apenas da possibilidade de consumir, mas também de escolher sua forma de vida.”

Phillippe Van Parijs disse claramente que, para defender a renda básica, é preciso uma aproximação a uma concepção de justiça; o apelo à defesa “de um direito humano a uma subsistência mínima para justificar uma proposta dessas”. Pense-se o que for a respeito, mas a Declaração de Monterrey não apela a uma subsistência mínima em abstrato ou de maneira geral, mas diretamente ao direito humano à renda básica ou à renda cidadã universal. Ainda assim, creio que a observação do filósofo belga não deve ser abandonada rapidamente. Se se pode mostrar que a renda básica é justa, maior realce ganha sua inclusão como novo direito humano emergente na declaração da cidade mexicana. Mas, antes de abordar essa tarefa é o caso de fazer alguma breve introdução para deixar bem assentado aquilo de que se está tratando.

1. Alguns esclarecimentos
A definição que o terceiro ponto do primeiro artigo da Declaração de Monterrey oferece da renda básica é clara. Mas, para não incorrermos nas confusões mais habituais sobre essa proposta e ao mesmo tempo para explicá-la, ainda que brevemente, me servi da definição que costumo utilizar (4). É a seguinte:

“A renda básica é uma renda paga pelo Estado, como direito de cidadania, a cada membro de pleno direito ou residente da sociedade, inclusive se não querem trabalhar de forma remunerada, sem levar em conta se é rico ou pobre ou, dito de outra forma, independentemente de quais possam ser as outras fontes possíveis de renda, e sem importar com quem conviva.”

Na primeira parte da definição, “uma renda paga pelo Estado”, “Estado” pode incluir uma instituição jurídico-política maior – como seria o caso da União Européia – que a dos Estado-nação realmente existentes; ou pode referir-se a âmbitos jurídico-políticos menores que o do Estado-nação. As Comunidades Autômomas do Reino de Espanha ou os Länder da República alemã são exemplos desses âmbitos jurídico-políticos menores. A renda básica poderia ser paga tanto por uma só instituição como por parte de uma combinação de algumas delas.

“A cada membro de pleno direito da sociedade ou residente”. A renda básica é uma quantia em dinheiro que os cidadãos receberiam individualmente (não as famílias, por exemplo) e universalmente (sua obtenção não estaria condicionada ao padecimento de determinados níveis de pobreza, ou de necessidade, ou de ausência de trabalho remunerado, para tomar alguns exemplos). Este é um dos pontos mais característicos da renda básica. Por “residente”, nessa parte da definição, há que se entender, claro está, “residentes acreditados.” Por razões óbvias, uma pessoa que não estivesse numa situação de residência acreditada (seja qual for nosso parecer sobre a justiça ou falta dela nas condições exigidas por determinadas legislações para ter acesso a essa residência acreditada) não poderia receber a renda básica.

“Inclusive nem sequer trabalhar de forma remunerada”. Amiúde se interpreta “trabalho” como sinônimo de “trabalho remunerado” ou “emprego”. O trabalho assalariado não é coextensivo com “trabalho”. Há boas razões para defender a seguinte tipologia do trabalho: 1) trabalho com remuneração no mercado; 2) trabalho doméstico e 3) trabalho voluntário.

“Sem levar em consideração se é rico ou pobre ou, dito de outra forma, independentemente de quais possam ser as outra fontes possíveis de renda”. À diferença dos subsídios condicionados a um nível de pobreza ou de renda, tanto o rico como o pobre recebem a renda básica. Isso não quer dizer, obviamente, que todos, ricos e pobres, ganhem com a renda básica. Em boa parte das propostas de financiamento os ricos perdem e os pobres ganham. Uma proposta de renda básica em que esses termos se invertam teria pouco interesse. Com maior precisão: seria uma renda básica desastrosa, em minha opinião, e que deveria ser combatida. Como o direito cidadão ao sufrágio universal, a proposta da renda básica não impõe condições adicionais às de cidadania. E, à diferença do sufrágio universal, poderia receber-se a renda básica com a condição de residência acreditada.

“Sem se importar com quem conviva”. A renda básica seria recebida independentemente da forma de convivência escolhida. Quer se trate de uma união heterossexual, ou de pessoas de várias gerações, ou um grupo de amigos ou um casal homossexual, todas são formas de convivência que em caso algum condicionam ou modificam o direito a receber a renda básica.

Pode-se dizer também que a renda básica é formalmente laica, incondicional e universal. Seria recebida, com efeito, independentemente do sexo a que se pertencesse, do nível de renda que se possua, da confissão religiosa que se professe (se alguma) e da orientação sexual que se tenha.

Esta característica tão própria à renda básica, a de não estar condicionada a requisito algum distinto da cidade ou residência acreditada, distingue-a claramente de outras propostas, quer se trate das que gozam de anos de aplicação, quer se trate das que não passaram do estado teórico.

2. Os apelos à justiça
Lembre-se que a objeção de Van Parijs dizia que uma apelação à defesa “de um direito humano a uma subsistência mínima não bastaria para justificar uma proposta dessas”. Van Parijs está se referindo à necessidade de demonstrar a justiça da renda básica. Para apelar a sua necessidade, há que se demonstrar que a renda básica tem algumas vantagens substanciais sobre outras medidas candidatas a garantir a “subsistência mínima”. Assim, pois, deveremos agora responder à seguinte pergunta: é justa a proposta da renda básica?

Haverá quem prefira formulá-la desta outra forma: a renda básica é ética? Suponhamos que cada pessoa tenha sua própria moral. Algumas morais podem ser muito pouco pensadas, outras podem ser muito sofisticadas e outras dificilmente defensáveis. A ética está muito relacionada com a moral, mas não é o mesmo. A ética pode definir-se como a “análise crítica dos conteúdos ou regras morais e a elaboração de critérios racionais para escolher entre morais alternativas” (5). Creio que, com relação à renda básica, é mais adequado falar de “justiça” que de “ética”, ainda que frequentemente se utilizem os termos indistintamente. E da justiça ou da de sua falta numa determinada proposta social tratam as chamadas teorias da justiça.

Em todo caso, perguntar-nos pela justiça da proposta de renda básica é muito relevante. De pouco serviria uma medida social que fosse política ou economicamente viável não o fosse em termos de justiça. Por exemplo, a proposta de que postos de trabalho remunerados deveriam ser ocupados de preferência por homens cujas idades estivessem entre os 30 e os 45 anos ou, por outro exemplo, que não se devesse jamais contratar a mulher alguma ou pessoa estrangeira enquanto houvesse homens da região em idade legal para trabalhar em situação de desocupação involuntária.

Tornar tecnicamente factíveis essas propostas não seria nada complicado, mas entraria em choque com idéias amplamente (que não são unânimes) compartilhadas do que deveria ser uma medida social justa. Se bem, é certo, que não se há de alegar em excesso a desejabilidade normativa das viabilidades política e econômica (a renda básica não tem qualquer possibilidade de êxito se não a consideramos de forma socialmente ampla, como uma medida justa ou eticamente aceitável), é saudável fazê-lo no plano conceitual.

Há diferentes estratégias de fundamentação normativa da renda básica. A objeção mais potente que se poderia fazer à renda básica não é que fosse materialmente impossível, mas socialmente injusta.

Precisamente, para fundamentar a justiça da renda básica se tem tentado estratégias distintas. Teorias liberais e teorias republicanas se mostraram candidatas a justificar uma renda básica definida no modo como se fez mais acima. Creio que são necessária algumas precisões.

A primeira precisão se refere à própria palavra “liberalismo”. Com essa palavra podem fazer-se muitíssimas distinções, divisões e subdivisões. Por exemplo, entre liberalismo proprietarista e liberalismo solidário (ou igualitarista); ou entre liberalismo econômico e liberalismo social. Aqui não interessam essas subdivisões de divisões. Em troca, o que pode ser de interesse é, sim, uma breve reflexão sobre uma distinção que considero fundamental para meu atual propósito: a relativa ao liberalismo político e ao liberalismo acadêmico. O primeiro, com uma vida de dois séculos, é o liberalismo que realmente tem existido ao longo dos séculos XIX, XX e aonde chegamos no XXI. É papel dos historiadores continuar analisando seu papel, assim como sua velha inimizade com a democracia, a liberdade e a igualdade (6). O liberalismo acadêmico, por outro lado, é uma amálgama em que podem entrar autores que politicamente se situariam muito à direita, outros no centro e, finalmente, outros na esquerda mais ou menos moderada.

Interessa também, para desfazer confusões habituais, reter algumas supostas “verdades” repetidas à exaustão, que diferenciariam distintas teorias liberais da justiça das teorias republicanas. Muito resumidamente: segundo esta caricatura, o liberalismo acadêmico não está comprometido com a virtude, razão pela qual não é uma doutrina política moralmente perfeccionista, e por isso mesmo pode ter uma concepção neutra do Estado. Finalmente, continua esse raciocínio, o liberalismo acadêmico é uma doutrina política não-sectária, que fomenta a tolerância.

Segundo essa forma de argumentar e de maneira simétrica, o republicanismo está comprometido com a virtude dos cidadãos, extremo que o torna moralmente perfeccionista e, por isso mesmo, incompatível com que o estado seja neutro entre as distintas concepções de bem. Finalmente, o republicanismo é uma doutrina politicamente sectária, comprometida com uma vita activa furibunda e com o superativismo compulsivo, e incompatível com a tolerância entre as distintas concepções de bem.

Este raciocínio, com distintas e sofisticadas versões, pode ler-se em muitíssimos livros e artigos acadêmicos e pode escutar-se em não poucas universidades do mundo (especialmente anglo-saxão). E é realmente assim? Francamente, creio que não. Vejamos de perto.

A tradição histórica republicana não se pôs nunca a questão da virtude de forma a-institucional, isto é, como um problema de mera psicologia moral. Já desde Aristóteles, toda referência à virtude vinha acompanhada de considerações institucionais e relativas às bases sociais e materiais que tornam (ou não) possíveis essa virtude. A virtude tem, evidentemente, uma dimensão psicológico-moral, mas o republicanismo sempre acompanhou a análise dessa dimensão com a afirmação de que somente sobre o solo de uma existência sócio-material aquela pode brotar. Aristóteles nega que o pobre livre (quer dizer, não escravo) tenha uma base autônoma de existência, pois não dispõe de propriedade. Esta carência de base autônoma de existência impede que se possa ser efetivamente livre e, por essa razão, Aristóteles defende que os pobres livres sejam privados dos direitos políticos.

A partir dessa constatação, a virtude republicana não tem nada a ver com o perfeccionismo moral, nem apela a uma concepção de bem ilhada das instituições sociais. Muito pelo contrário: a tradição republicana defende que, quando a cidadania tem garantida pela República uma base material para sua existência social autônoma, pode desenvolver uma capacidade para autogovernar-se em sua vida privada. E, além disso, essa garantia de uma base material para a existência social autônoma dos indivíduos possibilita que eles possam avivar sua capacidade para a atividade pública.

Claro que essa base material também pode levar alguns cidadãos a se empanturrarem de bebidas alcoólicas, de nicotina e de comida dieteticamente horrorosa, enquanto contemplam os programas televisivos mais infames. Os defensores do republicanismo não negam essa eventualidade; o que afirmam é esta base material da possibilidade (em muito maior grau que a situação na qual vivem quem dela carece) para desenvolver a virtude cívica, que não é outra coisa – repito a formulação anterior – que a capacidade para autogovernar-se na vida privada e, a partir de então, chegar à via pública exercendo plenamente sua condição de cidadãos, isto é, de indivíduos materialmente independentes.

Feitos esses esclarecimentos, a seguir vai-se ver como se pode mostrar o caráter republicano da renda básica.

3. A existência material garantida como condição de liberdade ou a justificação republicana (7)

Muitas são as diferenças que os autores republicanos – desde Aristóteles a Robespierre, desde Cícero a Marx, desde Marsilio de Padua a Adam Smith, desde Maquiavel a Kant (8) – apresentam entre si. Sejam quais forem as diferenças, todos eles compartilham ao menos duas convicções:

Ser livre significa não depender de outro particular para viver, não ser arbitrariamente violado por esse outro particular; quem depende de outro para viver não é livre. Quem não tem assegurado o “direito à existência” por carecer de propriedade não é sujeito de direito próprio – sui iuris -, vive à mercê dos outros e não é capaz de cultivar – e menos ainda de exercitar – a virtude cidadã; e o é assim porque esta dependência com respeito a outro particular o converte num sujeito de direito alheio, um alieni iuris, um “alienado”.

A liberdade republicana pode alcançar a muitos (democracia plebéia, como defendem os republicanos democráticos) ou a poucos (oligarquia plutocrática como defenderam os republicanos oligárquicos), mas sempre está fundada na propriedade e na independência material que dela deriva. E esta liberdade não poderia se manter se a propriedade estivesse tão desigual e polarizadamente distribuída, de modo que uns poucos particulares pudessem desafiar a república e lutar com êxito contra a cidadania para impor sua concepção de bem público. Quando a propriedade está distribuída muito desigualmente, há pouco espaço, se há algum, para a liberdade do resto, dos que estão dela privados.

A independência, a existência material, a base autônoma (aqui, expressões perfeitamente permutáveis) que a propriedade confere é condição indispensável para o exercício da liberdade. Recordemos que imediatamente depois de declarar, no artigo 17.1 que “toda pessoa tem direito à propriedade individual e coletivamente”, o artigo 17.2 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 diz: “Ninguém será privado arbitrariamente de sua propriedade”. Também o artigo 17 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 dizia de forma meridiana: “Sendo a propriedade um direito inviolável e sagrado, ninguém pode ser dela privado, salvo quando a necessidade pública legalmente comprovada o exija de modo evidente, e sob a condição de uma justa e prévia indenização”. Aqui são decisivas as palavras “quando a necessidade pública legalmente comprovada o exija de modo evidente(9).

Também a Constituição vigente do Reino de Espanha diz em seu artigo 33 de forma bastante similar: “1. Reconhece-se o direito à propriedade privada e à herança. 2. A função social desses direitos delimitará seu conteúdo, de acordo com as leis. 3. Ninguém poderá ser privado de seus bens e direitos, senão por causa justificada de utilidade pública ou interesse social, mediante a correspondente indenização e em conformidade com o disposto nas leis”. Partindo de pontos parecidos, alguns defensores republicanos da renda básica sugeriram a idéia de “universalizar a propriedade”. Universalizar a propriedade deve entender-se de forma metafórica. Não se trata literalmente de repartir a propriedade de um dado país, ou do mundo, entre os habitantes do país em questão, no primeiro caso, ou do mundo inteiro, no segundo. Universalizar a propriedade deve ser entendido aqui de forma equivalente a garantir a todos a existência material.

A instauração de uma renda básica suporia uma independência socioeconômica, uma base autônoma de existência muito maior que a atual para boa parte da cidadania, sobretudo para os setores mais vulneráveis da cidadania e mais dominados nas sociedades atuais (boa parte dos trabalhadores assalariados, pobres em geral, desempregados, mulheres, etc.). Em resumo, a introdução de uma renda básica faria com que a liberdade republicana, para alguns grupos de vulnerabilidade, vissem suas possibilidades alargadas. Vejamos isso mais de perto. Por grupo de vulnerabilidade aqui se vai entender aquele conjunto de pessoas que têm em comum serem suscetíveis à interferência arbitrária por parte de outros conjuntos de pessoas ou de alguma pessoa em particular.

3.1 A dependência material das mulheres

Em primeiro lugar, vou me referir a este grande e heterogêneo grupo que formam as mulheres. Seria um insulto à inteligência do leitor ou da leitora deter-me, ainda que brevemente, na evidência de que todas as mulheres não se encontram na mesma situação social. Mas tampouco parece muito discutível a afirmação de que uma renda básica conferiria a esse grande e heterogêneo grupo de vulnerabilidade social que formam as mulheres uma independência econômica de que atualmente não dispõem. Mesmo que a renda básica, por definição, seja independente da contribuição em trabalho que se possa realizar, creio que é necessário assinalar aqui que, em que pese que não recebam qualquer remuneração monetária em troca, a maior parte das mulheres trabalha. Assim como se apontou, o trabalho remunerado no mercado constitui somente um dos tipos de trabalho existentes. Mas não é o único; como já se disse, há que se acrescer o doméstico e o voluntário.

Apresento a seguir algumas das razões que avalizam, de modo republicano, a renda básica em relação às mulheres.

a) Em primeiro lugar, cabe assinalar que a renda básica dá uma resposta contundente à necessidade de que a política social se adapte às mudanças nos modos de convivência, em especial ao incremento das famílias monoparentais encabeçadas por mulheres.

b) Em segundo lugar, ao constituir uma renda individual, a renda básica melhoraria a situação econômica de muitas mulheres casadas ou que vivem em união estável, sobretudo aquelas que se encontram nos extratos mais empobrecidos da sociedade. Efetivamente, boa parte dos subsídios condicionados existentes têm como unidade de atribuição a família.

Normalmente, quem recebe e administra é chefe de família – os homens, majoritariamente – de forma que se privam as pessoas que ocupam a posição mais débil – as mulheres, majoritariamente – do acesso e do controle dessas receitas. Nas palavras de Carole Paterman: “Uma renda básica é importante para o feminismo e a democratização precisamente porque é paga não aos lares, mas aos indivíduos como cidadãos.”(10)

c) Em terceiro lugar, a independência econômica que a renda básica possibilita pode fazer dela um tipo de “contrapoder” doméstico capaz de modificar as relações de dominação entre sexos e de incrementar a força de negociação de muitas mulheres dentro dos lares, especialmente daquelas que dependem do marido ou que recebem muito menos que eles, por estarem empregadas de modo descontínuo e em tempo parcial.

d) Em quarto lugar, como muitas autoras e alguns autores vêm mostrando ao longo das últimas décadas, o sistema de seguridade social dos países ricos foi erguido com base no assentimento de que as mulheres eram econômico-dependentes de seus maridos. Isso implicava que os benefícios obtidos da seguridade social eram contribuições de seus maridos, não de sua condição de cidadãs. Num contexto de crescente questionamento do estereótipo male breadwinner, não é capricho supor que as escolhas sobre o trabalho doméstico poderiam ser tomadas de um modo muito mais consensualizado do que o são majoritariamente hoje.

Porém, junto a esses quatro pontos, pode se fazer uma reflexão de maior envergadura sobre o papel da renda básica para favorecer, desde um ponto de vista republicano, a existência material das mulheres. Esta reflexão tem sido sugerida pela já mencionada Carole Paterman.

Resumidamente, pode ser exposta da seguinte maneira: muitos problemas relacionados à questão da reciprocidade na filosofia política dos últimos anos têm referência unicamente nas atividades diretamente vinculadas ao trabalho remunerado. Viola-se a reciprocidade quando uma pessoa recebe uma renda incondicional, a renda básica no nosso caso, inclusive quando essa pessoa está em perfeitas condições para trabalhar remuneradamente, e simplesmente não quer fazê-lo, incorrendo clamorosamente numa situação de parasita. Paterman opina que está é uma forma muito limitada de analisar o problema ao se focar apenas no trabalho com remuneração. Resta ignorado, em troca, o problema da reciprocidade que se produz num tipo de trabalho não-remunerado, mas muito mais amplo, majoritariamente desempenhado pelas mulheres: o doméstico.

E isto, no meu entendimento, está ligado a um problema de muito maior envergadura que é motivo de atenção por parte do republicanismo democrático: a situação de dependência em que, historicamente, inclusive depois da abolição das leis do Antigo Regime, as mulheres têm estado sujeitas aos homens. Vou me valer de um caso histórico para tornar mais rápida a exposição do ponto exato onde quero chegar. Em 1792, Robespierre aboliu a distinção entre cidadãos ativos e passivos, quer dizer, entre os cidadãos que podiam ter direito a voto e os que não – tal distinção se estabelecia em função da quantidade de impostos que os indivíduos podiam pagar.

Dito de outro modo, cidadão ativo era aquele que tinha determinado nível de riqueza, enquanto que cidadão passivo era aquele que não chegava a esse nível. Tudo isso, obviamente, referido aos homens. As mulheres permaneciam patriarcalmente excluídas, dada a sua condição de sujeitos dependentes dos homens. Aqui é onde entra em cena a preocupação de Paterman reproduzida um pouco mais acima. A renda básica, por seu caráter universal de cidadania (ou residência acreditada, como se dizia explicitamente na definição), não se dirige nem a lares nem a pessoas com características específicas (ser homens, por exemplo). Por essa razão, a renda básica pode ser um meio eficaz para assegurar a base autônoma de uma parte importante de mulheres que, atualmente, dependem para sua existência material de seus maridos ou amantes.

3.2 O poder de negociação da classe trabalhadora e a desmercantilização do trabalho

Em segundo lugar, vou me referir ao que de interesse tem para a perspectiva republicana a instauração de uma renda básica para a classe trabalhadora, outro grupo dentre os de vulnerabilidade a que me referia mais acima.

Comecemos por algo a que alguns autores se referiram: a renda básica e a desmercantilização da força de trabalho. Nas economicas capitalistas, as pessoas que não dispõem das propriedades de terras ou de meios de produção devem vender sua força de trabalho no mercado laboral a um proprietário de terras ou de meios de produção, chamado de empregador, para poder adquirir todos aqueles meios que permitirão sua subsistência. Essa situação recebeu o nome de “mercantilização da força de trabalho”(às vezes, diretamente, “mercantilização do trabalho”), uma vez que essa capacidade de trabalhar dos que não tem outra propriedade que lhes permita abrir mão do trabalho assalariado é tratada como mercadoria.

Os trabalhadores podem ter suas necessidades de subsistência cobertas fora do mercado de trabalho mediante alguns mecanismos de provisão social. Neste caso, sua força de trabalho é desmercantilizada. Podemos assim falar de graus distintos de mercantilização (e de desmercantilização) da força de trabalho. A renda básica teria um efeito importante como ferramenta para a desmercantilização da força de trabalho, sempre que fosse ao menos de uma quantidade que permitisse abandonar, mesmo que temporalmente, o trabalho assalariado.

Mas a renda básica também teria outro efeito sobre a classe trabalhadora que, desde a perspectiva republicana, resulta particularmente interessante: o aumento do poder de negociação que os membros da classe trabalhadora conseguiriam frente ao empresário ou empregador.(11) A segurança nas receitas que a garantia de uma renda básica comportaria impediria que os trabalhadores vivessem obrigados a aceitar uma oferta de trabalho sob uma condição qualquer. A partir do momento em que sua saída do mercado de trabalho se torna praticável, estaria em posição de negociar (ou de resistência, como às vezes se chama) muito maior que aquela que os trabalhadores possuem agora.

Não é o mesmo conduzir as negociações trabalhistas ao limite da ruptura quando se conta, como é o caso dos empresários, com a possibilidade real de substituir os trabalhadores empregados por máquinas ou por trabalhadores atualmente desempregados – os que alimentam as filas do outrora chamado “exército industrial de reserva” - que fazê-lo sabendo que a subsistência depende de forma direta e praticamente exclusiva, das retribuições obtidas dos indivíduos no outro lado da mesa de negociação, como ocorre aos trabalhadores e trabalhadoras hoje em dia. A relação laboral sob o capitalismo é claramente assimétrica. Uma renda básica tornaria praticável não apenas a possibilidade de negar-se de forma efetiva e convincente a aceitar situações não desejadas por parte de muitos trabalhadores, senão também poderiam ser construídas formas alternativas de organização do trabalho que permitiram aspirar a graus mais elevados de realização pessoal.

Ademais, a renda básica suporia, em caso de greve, uma espécie de caixa de resistência incondicional cujos efeitos para o fortalecimento do poder de negociação dos trabalhadores são fáceis de medir. Por esse motivo, entre outros, um destacado autor (12) caracterizou a renda básica de um “projeto socialista”. O fato de que em caso de conflito de greve os trabalhadores disponham de uma renda básica permitiria lidar com as greves de uma forma muito menos insegura que na atualidade: nos dias de hoje, dependendo dos dias de greve, os salários podem chegar a serem reduzidos de forma dificilmente suportável se, como costuma ocorrer para a imensa maioria da classe trabalhadora, não se tem outros recursos.

A concepção republicana de liberdade é muito exigente. Igualdade e liberdade não são duas variáveis a escolher entre uma ou outra. Não. As grandes desigualdades sociais são causas da falta de liberdade. Por essa razão, o republicanismo democrático promove mecanismos institucionais para que a cidadania tenha existência material, fundamento da liberdade, plenamente garantida. Num mundo como o de princípios do século XXI, onde a acumulação privada de grandes fortunas convive com a mais absoluta das misérias e, portanto, em que a liberdade para centenas de milhões de pessoas está seriamente ameaçada, quando não completamente suprimida, a renda básica aparece como um mecanismo institucional que, dadas as condições socioeconômicas do novo século, seria capaz de garantir ao conjunto da cidadania (e a dos residentes acreditados) existência material.

4. A importância da Declaração de Monterrey para a renda básica

Chegamos aqui, façamos uma breve recapitulação. Em primeiro lugar, mostrava-se a novidade que a Declaração de Monterrey mencionasse, quase no princípio de seu conjunto de artigos, o direito humano emergente a uma renda básica ou renda cidadã universal. Em segundo lugar, depois de fazer alguns esclarecimentos sobre a concepção republicana de liberdade e tomando como pretexto uma interessante observação feita por Phillippe Van Parijs, mostrou-se a justiça da renda básica ou, mais exatamente, apelou-se às credenciais que o republicanismo pode aportar em sua defesa. Agora resta, somente, à luz dos outros pontos anteriores, avaliar a importância da Declaração de Monterrey para a renda básica como novo direito emergente.

Um direito não é uma pretensão sem fundamento ou arbitrária. No dizer de Aparicio e Pisarello, “é uma expectativa que alega razões e argumentos, que se estima 'fundada', 'legítima' ou, se se quer, 'justa'.”(13) O caráter generalizável de um direito o distingue de um privilégio de grupo, classe ou casta. Os autores mencionados afirmam: “enquanto um direito comporta uma expectativa tendencialmente generalizável, inclusiva, igualitária, um privilégio comporta uma pretensão tendencialmente restritiva, excludente e desigualitária”. A renda básica, na Declaração de Monterrey e por alguns dos argumentos expostos mais acima, é uma expectativa que alega razões e argumentos de sua justiça, além de que é generalizável, inclusiva e igualitária. Mas, para passar ao estado de “expectativa” ao de direito, a renda básica deve ainda passar pelo amparo de um ordenamento jurídico.

Da mesma maneira que é difícil conceber o direito humano à propriedade sem uma forma jurídica, o direito humano à renda básica também não pode ser imaginado sem alguma tradução jurídica. Assim como alguns direitos humanos proclamados na Declaração de 1948, que faz agora 60 anos, que posteriormente foram incorporados em maior ou menor medida a mais de 90 constituições – passando, portanto, da expectativa a direito, propriamente -, o direito humano emergente à renda básica ou renda cidadã universal ainda tem um longo caminho a percorrer. É óbvio que a Declaração de Monterrey está ainda muito longe de alcançar o reconhecimento a que chegou a ter a Declaração de 1948. Ainda assim, sou da opinião de que a Declaração de Monterrey deve ser vista como um passo acertado, entre outros vários, que seguramente também serão necessários até o reconhecimento, um dia, do direito efetivo a uma renda básica.

Com efeito, [é] um bom passo prévio ao reconhecimento jurídico. E esse reconhecimento jurídico do direito a uma renda básica ou renda cidadã universal e as medidas para assegurar sua tutela, como a dos outros muitos direitos humanos anteriormente reconhecidos e outros ainda hoje por reconhecer – daí quem sabe a principal razão de ser da Declaração universal dos direitos humanos emergentes de Monterrey, quer dizer, sua vontade de adequação a uma situação social e política diferente da que havia em 1948 -, serão produto da luta de pessoas, movimentos sociais e partidos políticos que estejam dispostos a dedicar tempo, esforço e inteligência a este objetivo. Ou, para expressá-lo com as palavras de Thomas Pogge: “O que necessita para garantir verdadeiramente o conteúdo de um direito é uma cidadania vigilante que se comprometa profundamente com esse direito e que esteja disposta a trabalhar em prol de sua realização política”(14).

(*) Daniel Raventós Pañella é doutor em Ciências Econômicas, professor titular do departamento de Teoria Sociológica, Filosofia do Direito e Metodologia das Ciências Sociais na Facultad de Económicas da Universidade de Barcelona, e membro do grupo de pesquisa GREECS (Grup de Recerca em Ètica economicosocial i Epistemologia de les Ciènces Socials). É um dos fundadores e membro do comitê de redação da revista SinPermiso. Publicou diversos trabalhos sobre republicanismo e renda básica. Atualmente é presidente da Red Renta Básica, seção oficial da Basic Income Earth Network (BIEN), e coordenador da web dessa associação.

Também é membro do conselho científico da ATTAC na Cataluña e Madrid, de várias fundações (entre elas Nous Horitzons e Instituto de Cultura del Sur), bem como do International Board da BIEN e do Internacional Advisory Board da Basic Income Studies. É um dos introdutores da proposta de renda básica, tanto social como academicamente. É autor de El derecho a la existencia (Ariel, 1999) e Las condiciones materiales de la libertad (El Viejo Topo, 2007)


Tradução: Katarina Peixoto

Notas
(1) Este texto, com algumas poucas mudanças, faz parte de um livro que, pela ocasião do 60º aniversário da Declaração dos Direitos Humanos, será publicado em dezembro de 2008 pela Federação das Associações de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos.

(2) A Basic Income Earth Network [Rede Mundial da Renda Básica] (BIEN) é a organização que agrupa boa parte de coletivos e de pessoas ao redor do mundo que defendem a proposta da renda básica. Foi fundada em 1986, chamando-se originalmente Basic Income European Network. No X Congreso, realizado em Barcelona em 2004, foi aprovado que passasse a ser uma rede mundial e não circuncrita apenas a Europa, como até aquele momento havia sido.

(3) Que pode ser lido em espanhol aqui: :http://www.sinpermiso.info/textos/index.php?id=287.

(4) Por exemplo, em: Daniel Raventós, Las condiciones materiales de la libertad, Barcelona, El Viejo Topo, 2007.

(5) Jesús Mosterín, La naturaleza humana, Pozuelo de Alarcón, Gran Austral, 2006. O autor acrescenta: “Há morais religiosas, mas não existe (seria um oxímoro) uma ética religiosa. Alguns chamados comitês de ética às vezes são meras vozes de uma determinada moral religiosa e deveriam chamar-se comitês de moral católica, por exemplo. Assim se entenderiam melhor suas afetações de entidades tão pouco merecedoras de consideração moral como as células tronco ou blástulas de que procedem”.

(6) Uma análise magistral pode ler-se em Antoni Domènech, El eclipse de la fraternidad, Barcelona, Crítica, 2004. “Sou antidemocrata, porque sou liberal”, dirá de forma dificilmente mais gráfica o poeta Mathew Arnould.

(7) Este aparte está baseado em grande parte no terceiro capítulo de Las Condiciones materiales de la libertad, op cit.

(8) É frequente ler que Immanuel Kant, John Locke e Adam Smith foram liberais. Na época em que viveram, dificilmente poderiam sê-lo. Para uma justificação pormenorizada da concepção de liberdade republicana de John Locke, veja-se Jordi Mundó “Locke y Aristóteles”, em M.J.Bertomeu, E.Di Castro e A. Velasco (eds), La vigencia del republicanismo, México, Universidade Nacional Autónoma de México, 2006. sobre a de Immanuel Kant veja-se Maria Julia Bertomeu, “Las raíces republicanas del mundo moderno: em torno a Kant”, em M.J.Bertomeu, A..Domènech e A. de Francisco (eds), Republicanismo e Democracia, Buenos Aires, Miño y Dávila, 2005. para o caso de Adam Smith, veja-se a tese de doutorado de David Casassas “La ciudad em llamas: la vigencia del republicanismo comercial de Adam Smith, que será publicada em breve pela editorial Montesinos.

(9) Declarações ou constituições à parte, muitos governantes do século XX e do que chamamos de século XXI têm agido como se o artigo 17 da Declaração de 1789, origem direta dos artigos 17.1 e 17.2 da Declaração de 1948, tivesse sido redigido assim: “Sendo a propriedade um direito inviolável e sagrado, ninguém pode ser dela privado, inclusive quando a necessidade pública legalmente comprovada o exija de modo evidente”.

(10) Carole Paterman, “Democratizing Citizenship: Some Advantages of a Basic Income”, em B.Ackerman, A. Alstott e P.Van Parijs (eds.), Redesignig Distribution, London-New York, Verso, 2006.

(11) Sempre que esta renda básica fosse de um nível equivalente ou superior à linha da pobreza.

(12) Erik Olin Wright, "Basic Income as a Socialist Project", Basic Income Studies núm. 1. Em espanhol se traduziu por “La renta básica como um proyeto socialista” e pode ler-se em Sin Permiso núm. 1.

(13) Marco Aparicio y Gerardo Pisarello, "Els drets humans i les seves garanties" en Jordi Bonet y Víctor M. Sánchez (dir.), Els drets humans al segle XXI, Barcelona, Huygens, 2007.

(14) Thomas Pogge, World Poverty and Human Rights, Cambridge, Polity Press, 2002.

Fonte: Agência Carta Maior

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