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por Equipe Terra Magazine
A crise mundial concentra as atenções em sua face mais hipnótica: a economia, os estragos nos cascos das nações hegemônicas. Mas outro processo, menos ruidoso, mas ainda assim perceptível, corre numa dimensão antropológica, cultural. O geógrafo Milton Santos diagnosticava, na década de 90, uma mudança global "qualitativa", onde tudo se submeteria ao homem e não à técnica.
O diagnóstico de Milton Santos se apresenta certeiro, se compreendermos a desregulação dos mercados como parte desse império da técnica. A atual crise da globalização financeira pode abrir caminho para transformações culturais - nas bolsas de valores, nas corporações, no consumo; por conseqüência, na essência das relações humanas mais primárias.
Para prospectar essa mudança, ou a fumaça dessa transformação, Terra Magazine traz ao debate vozes antenadas à técnica e, especialmente, sensíveis ao homem. Na série Por um Mundo Novo, publicada a partir desta terça-feira, 16, economistas, escritores, antropólogos e artistas colocam suas reflexões na roda.
Confira a série de entrevistas, inaugurada pela economista Maria da Conceição Tavares: "Caminhamos para um mundo multipolar":
por Claudio Leal
Do Rio de Janeiro
A crise da globalização financeira não permite ilusões à economista Maria da Conceição Tavares. Crítica de primeira hora do neoliberalismo, ela não vê um éden oriental como alternativa à hegemonia dos Estados Unidos.
Nesta entrevista a Terra Magazine - que integra uma série sobre as transformações irrompidas pela crise financeira -, a professora identifica sinais de mudanças culturais, mas acredita que os efeitos do caos em Wall Street ainda vão se aprofundar antes de produzir um novo cenário.
- Hoje há uma cultura de massa. E, como tal, todo mundo copiou o modelo americano, inclusive os chineses, em matéria de consumo.
Maria da Conceição identifica laços entre a crise do capitalismo inglês, no século 19, e a atual turbulência na economia, apontada como a maior desde a década de 1930. Há diferenças notáveis. Em substituição à cultura de elites da Inglaterra, os EUA ajudaram a fundar uma cultura de massa. Isso se reflete na adesão do Oriente ao modelo de desenvolvimento ocidental e ao consumismo. Por ironia, a reação é mais evidente na Corte.
- De alguma forma, os Estados Unidos vêm reagindo a esse modelo cultural. Isso não é rápido, não é imediato. O Oriente ainda não oferece uma reação.
Para professora-emérita da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), o mundo caminha para ser multipolar. Numa avaliação histórica, crava:
- Os ingleses passaram a hegemonia para os americanos, mas os americanos não têm pra quem passar a hegemonia.
Confira a entrevista concedida por Maria da Conceição Tavares na Câmara de Vereadores do Rio, antes de um debate sobre a esquerda e a crise financeira global.
Terra Magazine - Essa crise não é apenas econômica, há também traços comportamentais, de uma era de fazedores de fumaça. A senhora acredita em uma mudança radical nas relações financeiras e humanas?
Maria da Conceição Tavares - Depois que a crise terminar, sempre há. Mas tem que esperar. Por isso que ela é duradoura. Tem que eliminar trilhões de dólares que não valem nada, são uma sombra, as finanças-sombra. Depois disso, tem que fazer de novo a regulação do sistema. Mas eu não creio que agora, este ano, nas reuniões que estão por haver não saia nada. Não chegou ao fim da crise. E tem trilhões de prejuízos. Nunca houve uma crise dessa extensão financeira. Quer dizer, não sei se vai dar uma depressão no estilo do século 19 e de 1930. Mas é certo que não é uma recessão e, depois, uma recuperação em V. Não é. Todo mundo diz que vai ser perna cumprida, uma coisa em L. Mas a recessão nem começou. É o primeiro trimestre que o Japão e a Alemanha apresentam. Nem os Estados Unidos estão em recessão técnica. Ainda demora.
Mas quais marcas ela já deve deixar?
Estourou o oba-oba da desregulação. Os mais ilustres reguladores americanos tiveram outros planos depois de passarem 15 anos dizendo que era uma maravilha, que o mercado resolvia tudo, tudo se auto-regulava. Agora estão pregando a regulação. O próprio (Alan) Grespan (ex-presidente do Federal Reserve), o autor dessa brincadeira, ele que deixou os bancos expandirem essa malucagem. Se os Estados Unidos já estão dispostos a nacionalizar bancos, a emprestar... O Banco Central já virou uma espécie de banco comercial. Obviamente, já não vale a ideologia. A primeira pancada foi na ideologia neoliberal. Uma porrada muito forte.
E ainda há resistências no governo...
Resistências de boca. Nenhuma. Ao contrário. Isso que estou falando são os conservadores que falam, não são os progressistas. Os progressistas vinham falando há muito tempo. O Grespan é um conservador. Todos eles falam que tem que regular. Agora, isso todo mundo sabe. É um consenso. O problema é que as reuniões de governo não resolvem, dado que cada país está sendo afetado de maneira diferente. Em resumo: primeiro, os Estados Unidos têm que resolver a crise dele e eles mesmos se regularem. A partir daí, você faz uma regulação mais geral, adaptativa. Porque são sempre eles que dão as regras. Claro que não tem mais força para impor o seu modelo. Eles entraram em decadência, óbvio. Mas também ninguém tem força. A Europa não tem, a China não tem, ninguém tem força. O sistema é multipolar, mas não tem hegemonia de ninguém pra dizer: "é por aqui". Não estamos em Bretton Woods, está claro?
O bode maior foram as nossas exportadores. Mas não fomos contaminados pela crise. Nós inventamos uma moda que não tem no mundo também. Imagine: apostaram na valorização do Real! Nunca protestaram quanto ao fato de o Real estar valorizado. "É uma questão de eficiência...". Não era nada. Estavam fazendo derivativos. Isso é que desencadeou nossa crise. Os exportadores fazem essa jogatina no câmbio. Nossos bancos não estão metidos nisso, não há suprime.
Depois dessa crise, que vai se prolongar, a senhora acha que vai haver uma mudança cultural? O individualismo não é também um reflexo desse modelo?
Isso não acontece rapidamente. De alguma forma, os Estados Unidos vêm reagindo a esse modelo cultural. Isso não é rápido, não é imediato. O Oriente ainda não oferece uma reação, de modo que é difícil responder a essa questão. Ainda não há uma resposta.
Pode haver uma redistribuição de poder entre as potências após essa crise?
Uma distribuição na margem. Mas já houve uma redistribuição de poder. Desde 2001, o poder americano está diminuindo, e aumento os chineses. E os chineses, comparados aos americanos, ainda são uma coisa deste tamanho.
E os países emergentes?
Você acha que eles têm poder? Só a China e a Rússia. São potências atômicas, além do mais. Mas a crise bateu pesadíssimo na Rússia, que estava na reivindicação do poder e agora tomou uma trombada.
A China tomará uma trombada?
Não vai tomar. Trombada, nem a China, nem a Índia, nem nós vamos tomar. Só uma desaceleração. A Rússia, porque é petroleira. Trombada vai levar a Venezuela. Essa vai levar... Trombada é cobre. A Coréia está precisando das exportações de cobre. Trombada leva o país que é primário exportador. Nós não somos primário exportador. Exportamos mais de 50% em manufaturas.
Como fica a América do Sul? Como sustentar uma rede de auto-proteção?
Já estão criando. Os países já estão se reunindo. O comércio já está praticamente em moeda local. Ninguém mais está usando o dólar como referência. Isso é uma das coisas, nesta crise, dado que os postos de negociação do Mercosul estão avançando, o Banco Sul... Agora, a América do Sul é o Pólo Sul. É o Mercosul.
No modelo de crescimento brasileiro, há o risco de que a concessão exagerada de crédito - por exemplo, de carros?
Mas isso é de todos os modelos. Não tivemos uma bolha de crédito comparável a nenhum dos emergentes. Crédito, a China dá mais que nós. A Índia dá mais que nós. Quanto aos Estados Unidos e a Inglaterra, já disse: eles dão 170% de endividamento à famílias. Há uma bolha em toda parte. E agora há uma crise de crédito em toda parte. Só que ela congelou. E aqui diminuiu pra 70%.
Qual papel será ocupado pelos Estados Unidos?
Você está preocupado, no fundo, com a hegemonia americana. Como a crise de 30 obrigou os Estados Unidos a intervir pesado e entrar na Segunda Guerra Mundial, saíram dela com a hegemonia mundial. Esta é o contrário. Parece com a crise que a Inglaterra teve em 1880. Aí começou a decadência inglesa. Se é isso que você quer dizer, começa. Só que não tem candidato a país hegemônico. Os ingleses passaram a hegemonia para os americanos, mas os americanos não têm pra quem passar a hegemonia.
Houve uma hegemonia maior que a americana?
A inglesa foi maior e mais demorada. A pax britânica durou cem anos. Essa começou em 1930. E durou 70 anos.
Os Estados Unidos pegaram o momento em que os meios de comunicação interligaram o mundo.
Isso apenas multiplica. Mas o domínio inglês foi maior. Todas as colônias estudaram em Londres. O Império Britânico era tão grande que todos os líderes - hindus, africanos - iam estudar lá. O problema é que era uma cultura de intelectuais de elites. Agora há uma cultura de massa. Essa é a diferença. No tempo do império britânico, era uma cultura de elites. Só as elites do mundo participavam daquela cultura. O povo não tinha nada com isso. O povo nem estava lá. Nem votava. Hoje há uma cultura de massa. E, como tal, todo mundo copiou o modelo americano, inclusive os chineses, em matéria de consumo.
E agora Keynes borbulha nos jornais...
É normal. Como não inventaram outro...
A senhora sente falta de uma auto-crítica dos neoliberais?
Ah, isso eu acho que tem fazer! Todos eles falaram, durante muitos anos, em muita asneira. Agora dizem: "não, tem que ser keynesiano!". Ora... Mas o capitalismo tem 300 anos. Só houve duas hegemonias: a inglesa e a americana. Nós caminhamos para um mundo multipolar.
Fonte: Terra Magazine
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