quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Aos trancos e barrancos o Mercosul chega lá - por Luiz Carlos Azenha





Tem muita gente torcendo contra. Mas é inevitável, assim como a chuva cai. Os setores mais atrasados da economia são os mais relutantes. Querem preservar privilégios. E tem os que de fato perdem. Porém, é a dinâmica do próprio modelo econômico que empurra o troço adiante. E a política externa do governo Lula vem trabalhando com perícia, sem fazer diplomacia de microfone e sem cair na armadilha dos que querem detonar o bloco.

O mapa acima mostra a rodovia que ligará portos brasileiros aos do Chile, cortando a Bolívia. É mais um passo da integração. O Mercosul fechou acordo com Israel, a crise entre a Argentina e o Uruguai está sendo resolvida, o Brasil se deu conta de que deve pagar a parte maior da conta. Uma Bolívia dividida em alguns pedaços, bem na fronteira do Brasil, interessa a quem? Com certeza não interessa à indústria brasileira, que importa gás boliviano. Aquele papo de trazer gás da Argélia ou de tirá-lo da bacia de Santos a gente sabe que é conversa mole, papo de negociador. O gás boliviano ainda é o mais barato, ainda que tenha encarecido.

Para quem pensa a médio prazo, o que é muito exigir da elite jurássica do Brasil, a ascensão de uma classe média em toda a América Latina interessa a quem? Principalmente ao Brasil, que tem indústria para calçá-la, alimentá-la e transportá-la. A alternativa é deixar tudo como está: a minoria controlando a maior parte da renda, a grande maioria na miséria. Há mais de 200 milhões de latinoamericanos vivendo abaixo da linha da pobreza.

O que eles fazem? Saem em busca de oportunidades. Assim como os brasileiros foram para os Estados Unidos - agora estão voltando em massa -, os guatemaltecos, salvadorenhos e mexicanos estão fazendo qualquer coisa para entrar nos Estados Unidos. Se o Brasil crescer muito mais que a Bolívia e o Paraguai, é inevitável que bolivianos e paraguaios venham procurar oportunidades de trabalho no Brasil.

Assim como o crescimento econômico tirou milhões de brasileiros da classe "D", o mesmo está acontecendo na Venezuela e na Argentina. Se a Bolívia tiver estabilidade e a elite branca e rascista de Santa Cruz tiver juízo, o país também está destinado a crescer. Brasil, Argentina e Chile precisam do gás boliviano para sustentar seu crescimento econômico.

Tenho viajado bastante pela América Latina, que já consome cerca de 25% das exportações brasileiras. México, Colômbia, Cuba, Venezuela e em alguns dias estarei na Costa Rica. A presença de empresas brasileiras, muitas vezes associadas a grupos locais, está crescendo rapidamente. Quando se fala em "segurança energética" todo mundo se joga sob a cama, com medo do Hugo Chávez.

Esta é a chave. A América do Sul tem tudo para se tornar uma União Européia tropical: água, terra, mão-de-obra relativamente barata e energia. Faltam escolas e hospitais. Tem papel para o estado, sim, na economia. Ou vocês acham que o estado não interferiu na economia americana, quando foi preciso? Essa história de estado mínimo é o que eles pregam para os outros. Quanto menos estado dos outros, mais fácil de manobrar os interesses políticos e econômicos alheios.

Porém, a diplomacia americana sob George Bush é tão inepta que eles conseguiram juntar do outro lado aqueles que pretendiam dividir: Brasil, Uruguai, Argentina, Venezuela, Bolívia e até mesmo o Paraguai. A não ser que uma recessão americana das bravas detone o crescimento da China, da Índia, da Rússia e do Brasil, tudo indica que o quadro atual será mantido: pressão sobre recursos energéticos findáveis, como o gás natural e o petróleo.

Mais um motivo para que a região desenvolva um sistema interdependente de troca de energia, com a eletricidade do Paraguai sendo vendida ao Brasil, o gás boliviano abastecendo os vizinhos e a Venezuela, com suas gigantescas reservas, ajudando a regular o preço do petróleo - o que passou a interessar muito mais ao Brasil desde que foi descoberto o campo de Tupi e, a longo prazo, tornou-se factível pensar no país como modesto exportador de petróleo.

Por Luiz Carlos Azenha - fonte: http://viomundo.globo.com


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Guerra permanente: Só falta um quepe no salão Oval da Casa Branca - Por Luiz Carlos Azenha





Quando coloquei os pés nos Estados Unidos como correspondente da TV Manchete, em 1985, o país já estava em guerra. Guerra contra as drogas, lançada pelo governo Reagan para justificar os investimentos militares e, mais tarde, o Plano Colômbia, através do qual a Colômbia foi militarizada e tornou-se consumidora de equipamento militar americano financiado com dinheiro público americano.

Mais de vinte anos se passaram. O tráfico está aí, tão ou mais forte que antes. O governo do Panamá foi derrubado, sob a alegação de que o ex-agente da CIA, Manuel Noriega, era aliado dos traficantes. Desde 1985 os americanos se envolveram em quatro grandes guerras: uma para ajudar Saddam Hussein a derrubar o regime teocrático do Irã, outra para expulsar o ex-aliado do Kuwait, uma terceira para livrar o mundo do terrorismo no Afeganistão e a mais recente para ocupar o Iraque e livrar o país de armas de destruição em massa que não estavam lá.

O cálculo aproximado é de que os Estados Unidos já tenham gasto mais de U$ 2 trilhões de dólares no Afeganistão e no Iraque. E a situação política e militar em ambos é bastante precária. No Afeganistão o cultivo da papoula para produzir heroína está em alta. Osama bin Laden não foi capturado. O necrológio do governo Bush será longo e doloroso, tanto para o mundo quanto para a democracia americana.

Quem é que não perdeu dinheiro nessa brincadeira? O complexo industrial-militar. Dizem que essa frase é coisa de esquerdista. Mentira. Ao deixar o poder Dwight Eisenhower fez um famoso discurso em que deu um alerta aos americanos: se o poder dos fabricantes de armas não fosse colocado em xeque pelos cidadãos, o complexo industrial-militar - a frase foi dita literalmente por ele - destruiria a democracia americana.

Ninguém parece ter forças para enfrentar a máquina da guerra permanente. As empresas fabricantes de armas distribuíram suas filiais por todos os estados americanos e têm presença na maioria dos distritos eleitorais. O congressista pode até ser contra a ocupação do Iraque, mas se falarem em cortar o orçamento do Pentágono e isso tiver impacto na taxa de emprego local o deputado ou senador chia.

Temos agora a guerra contra a imigração ilegal. Guerra, mesmo. Diante de um quadro social bastante complicado no México, como tive a oportunidade de testemunhar numa recente visita ao país - naquela, em que me bateram a carteira no metrô da Cidade do México - o governo mexicano parece ter adotado a postura de "militarizar" o enfrentamento dos problemas sociais. Não é feito diretamente, claro. É feito em nome de combater a escalada do crime e a imigração ilegal. O Plano México, bancado com dinheiro público americano, prevê que os mexicanos comecem a combater os imigrantes já na fronteira com a Guatemala.

Além da Venezuela, onde o "partido do exército" tem muito poder, há um governo fortemente militarizado na Colômbia e outro a caminho, no México. O mais espantoso é que um dos candidatos à Casa Branca, o republicano Mike Huckabee, disparou nas pesquisas e adotou um discurso em que dá pistas de que reduziria o controle dos civis sobre as ações militares americanas. Ou seja, está disposto a abdicar de vez da fiscalização que se exerce sobre o Pentágono por agências de caráter civil, que é cada vez mais mambembe. O próximo passo será botar um quepe na mesa do ocupante do salão Oval.

Por Luiz Carlos Azenha - fonte: http://viomundo.globo.com


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quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Feliz 2008


Gentileza gera gentileza. A união faz a força.Força na peruca.Feliz 2008 para todos. Que o mundo se torne mais gentil e que aprendamos mais com a natureza, que é sábia.Grande abraço a todos que prestigiam esse humilde blog.
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segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

‘Apenas o desmonte da máquina de desigualdade é que pode mudar o Brasil’ - entrevista com Tânia Bacelar - fonte: http://www.adital.com.br

‘Apenas o desmonte da máquina de desigualdade é que pode mudar o Brasil’

IHU - Unisinos *

Adital -
Entrevista especial com a economista Tânia Bacelar, que está participando do Fórum Brasileiro de Economia SolidáriaTânia Bacelar de Araújo é bacharel em Ciências Sociais e em Ciências Econômicas, e doutora em Economia Pública, Planejamento e Organização do Espaço. Lecionou nos cursos de Economia da UNICAP e da UFPE e integra o corpo docente dos cursos de graduação e mestrado em geografia, Ciência Política e Desenvolvimento Urbano e Regional da UFPE. Foi diretora de Planejamento Regional da SUDENE, secretária do Planejamento, secretária da Fazenda do Estado de Pernambuco e diretora do Departamento de Economia da Fundação Joaquim Nabuco. É diretora da CEPLAN (Consultoria Econômica de Planejamento) e atua como consultora de várias entidades nacionais e internacionais.

Ela concedeu a entrevista que segue, por telefone, ontem pela manhã, à redação da IHU On-Line, diretamente de Brasília, onde está participando do Fórum Brasileiro de Economia Solidária, que começou na terça-feira, dia 26 de junho, e termina hoje, dia 29-6-2006. Além de tratar da aplicação da proposta da economia solidária no modelo econômico atual, questionamos a professora Tânia sobre a conjuntura nacional, principalmente no aspecto econômico.


IHU On-Line - Qual é a sua análise do modelo econômico adotado pelo governo Lula? Como o classifica? Ele é um modelo direcionado ao consumo popular?

Tânia Bacelar - Gostaria de fazer uma primeira distinção entre a política macroeconômica e a política econômica mais geral, que inclui outras políticas econômicas que não são o que chamamos de política macro. A política de juros, a política fiscal e a política monetária não estão voltadas para o consumo popular. Elas pretendem garantir a estabilidade da inflação e privilegiam o pagamento da dívida pública, com taxas de juros ainda muito elevadas, embora menores do que as do governo anterior. Mesmo assim, seguiu privilegiando os aplicadores, as pessoas mais ricas, que podem comprar títulos do governo. Com isso, essas pessoas financiam o governo e são muito bem remuneradas.

A política econômica é mais ampla porque ela inclui, por exemplo, a política industrial. O governo anterior não tinha política industrial e o atual tem. Ele inclui a política de apoio à agricultura familiar. Aí o governo atual faz diferença. O Pronaf, quando terminou o governo Fernando Henrique, aplicava R$ 2,4 bilhões por ano. Nessa safra, nós estamos aplicando R$ 9 bilhões. É um aumento muito significativo e isso amplia o consumo popular, porque os produtores agrícolas são pessoas que produzem alimentos para o mercado interno brasileiro.

Uma outra política diferente é a política de crédito, que foi muito ampliada. A participação do crédito no PIB cresceu e isso facilita e mobiliza o consumo das classes médias para a baixa. O aumento real do salário mínimo foi mais significativo, coincidindo com o índice de inflação baixo e com os preços dos alimentos principais sem crescer muito. Eu gosto de fazer uma comparação: quando surgiu o plano real, um salário mínimo comprava 70% da cesta básica. Hoje o salário mínimo compra duas cestas básicas. É inegável que o consumo popular está crescendo no País. Não é a toa que Lula tem uma imensa predominância de intenção de voto nas camadas mais pobres da população.

IHU On-Line - Quais as principais conseqüências que estamos sofrendo do modelo de crescimento adotado nos últimos 50 anos? Como a senhora define esse modelo?

Tânia Bacelar - O modelo hegemônico no mundo é o modelo organizado pelo capitalismo. Ele tem esse traço importante que o distingue, por exemplo, da economia solidária. E, além disso, foi marcado nos últimos anos por uma mudança nos padrões tecnológicos de grande dimensão. Nós ainda vivemos nessa conjuntura de um modelo que busca, principalmente, assegurar lucros. Coincidentemente, vivemos também com uma mudança muito importante nos padrões técnicos, ao ponto de a chamarmos na academia de "revolução científico-tecnológica", pois se trata de uma verdadeira revolução, que se dá pela passagem do paradigma mecânico para o paradigma eletrônico. É nesse paradigma que estamos entrando agora. Na verdade já estamos nele.

E essa é uma mudança que requer um outro tipo de trabalho, outras habilidades dos trabalhadores. Por outro lado, o modelo atual é comandado pela esfera financeira da economia, considerando que ele opera em duas esferas: a produtiva e a financeira. A produtiva está em revolução e os agentes econômicos estão ganhando muito mais dinheiro hoje, aplicando no mercado de moeda e na bolsa de valores. Isso aumenta a contradição do capitalismo: ele é muito bom para aumentar a produtividade e modernizar a economia, mas é muito incompetente para resolver o problema social, que tem aumentado no mundo e no Brasil. O resultado dessas tendências é o agravamento da crise social do mundo.

IHU On-Line - O Brasil tem atualmente um modelo de desenvolvimento? Qual seria esse modelo?

Tânia Bacelar - As elites brasileiras têm um modelo para fazer do Brasil uma economia capitalista, moderna e uma das principais economias capitalistas do mundo. Esse é o projeto hegemônico das elites brasileiras. O grande problema dessa visão é que o Brasil é um país muito desigual e não vai conseguir ser uma grande economia, nem uma das principais potências, com o quadro de desigualdade social que ele tem. Por isso que é preciso, mesmo crescendo um pouco menos, inserir melhor a sociedade brasileira na vida produtiva do País. Eu não conheço nenhum país entre as potências no mundo que tenha o tamanho da exclusão social que o Brasil tem. Esse é o equívoco da elite brasileira. Ela acha que pode fazer do Brasil uma grande potência com o tamanho da desigualdade social que nós temos. E não pode. Basta ver a crise social instalada nas principais capitais do País.

IHU On-Line - Entre os economistas há duas principais correntes de pensamento em relação ao desenvolvimento brasileiro. Uma diz que o Brasil teria um modelo de desenvolvimento capitalista e uma outra que diz que o País não tem um modelo de desenvolvimento, que ele está parado, estagnado, desde a década de 1980. Com qual dessas posturas a senhora mais se alinha?

Tânia Bacelar - Em primeiro lugar, basta juntar dois economistas e teremos duas opiniões. Eu partilho mais da primeira opinião. Nós temos um modelo, que é um modelo típico do capitalismo contemporâneo, só que vivemos uma crise financeira muito profunda do Estado brasileiro, que vem dos anos 1980 e que faz com que o modelo não esteja dinâmico como já foi. Nós temos um modelo, mas ele não está dinâmico. E também concordo com o segundo grupo, na segunda parte da afirmativa, de que estamos crescendo pouco há 25 anos.

IHU On-Line - Como seria um progresso sustentável? Como se podem integrar as possibilidades energéticas no Brasil e na América Latina ao modelo econômico vigente?

Tânia Bacelar - Eu acho que não pode. Nós teríamos que gradualmente mudar esse modelo hegemônico, que não dá conta das necessidades da maioria da população do Brasil, nem dá conta das nossas grandes potencialidades. Ele desperdiça muita potencialidade existente no Brasil, exatamente porque ele é excludente, seletivo, apropriado para o pedaço mais moderno do Brasil. E o País não é só o pedaço mais moderno. Mas essa fatia dita "não moderna" tem muito potencial. Temos que fazer uma mudança desmontando a máquina de desigualdade que foi instalada aqui. Só isso muda o Brasil.

IHU On-Line - Quais são as suas impressões do evento de Economia Solidária em que está participando aí em Brasília? Quais os principais temas que estão sendo discutidos no evento? O que você tira de mais importante até então?

Tânia Bacelar - Primeiro, destaco a força que esse tipo de economia já tem no País. O encontro revela isso. Eu achava que tinha menos. Desse ponto de vista, o encontro é positivo para revelar mesmo para pessoas como eu, que sou interessada no assunto, o potencial e os avanços que já se fez. Isso é muito positivo. Em segundo lugar, o evento mostra que é muito difícil consolidar esse tipo de economia no quadro da hegemonia do capitalismo. É difícil, mas não é impossível.

IHU On-Line - Quais as limitações da economia solidária?

Tânia Bacelar - A principal limitação que ela encontra é o aparato institucional, que está montado para a economia capitalista. Então, temos que atuar com o padrão de economia que se organiza em torno de outros valores, de outras relações sociais e de produção, num ambiente que está organizado para a economia capitalista. Esse é o principal entrave, tanto que há várias faixas no encontro pedindo mudança do aparato institucional, por exemplo, "novo aparato institucional para as cooperativas".

http://www.adital.com.br

IHU On-Line - Qual a importância de se debater sobre Economia Solidária na sociedade contemporânea? Quais as possibilidades da sua aplicação dentro desse modelo conservador neoliberal vigente? O que a senhora pensa dessa proposta?

Tânia Bacelar - Estamos discutindo as suas vantagens, mas o fato é que ela existe e já tem uma dimensão interessante. Pelo que tenho lido recentemente, há uma estimativa que esse tipo de economia já deve representar algo em torno de 1/5 da produção brasileira e está mobilizando muita gente. O grande limite é que ele opera num ambiente desfavorável, organizado para outro tipo de economia, que é a economia capitalista. A base conceitual avançou muito. Hoje já se tem uma produção acadêmica muito mais consistente e as experiências concretas também avançaram muito. Só que o que nós temos hoje ainda é um subsídio do que poderá ser quando isso crescer no futuro. O interessante é que isso não acontece só no Brasil. Esse é um debate mundial.

IHU On-Line - A senhora aposta na proposta da economia solidária?

Tânia Bacelar - Aposto. Tenho paciência. É uma construção lenta, mas consistente. É importante destacar que o governo Lula criou uma secretaria de economia solidária. Essa é outra diferença. E essa secretaria tem hoje uma política, um programa de apoio. Eu não acredito que o governo construa a economia solidária, quem constrói é a sociedade, mas se o governo apoiar, é melhor.


* Instituto Humanitas Unisinos

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As feridas e os feridos - por Flávio Aguiar - fonte: http://www.agenciacartamaior.com.br

As feridas e os feridos

Em meio a promessas de bonança, começam a aparecer os verdadeiros estragos feitos pela derrubada da CPMF. E não parece que seja o governo que esteja chorando mais...

Logo depois da derrubada da CPMF, houve uma gritaria tentando convencer as gentes que “haveria mais dinheiro no bolso”, que “o crédito ia ficar menos caro”, e assim por diante. Mas ao longo dos dias, vão aparecendo os verdadeiros estragos feitos pela votação desastrada da noite de 12 para 13 de dezembro.

É certo que a vitória da rejeição do imposto só foi possível com a sinistra deserção de senadores da base aliada. Sozinhos, PSDB + DEM + PSOL, mais isto e mais aquilo, não conseguiriam rejeitar o imposto. Mas não é só isto. O que vai ficando cada vez mais claro é que, por exemplo, levado pela fúria vingativa de alguns senadores (como apontou Kennedy de Alencar em artigo na Folha de S. Paulo, já em 13/12), aliada a uma estratégia de clarividência duvidosa articulada por Fernando Henrique Cardoso, o PSDB conseguiu uma proeza que em geral só o PT conseguia: derrotar a si mesmo.

Na sexta-feira, no lançamento do novo carro da Ford em S. Bernardo (mostram as fotos dos jornais de sábado), quem estava de cara amarrada era Serra, não era Lula. Para vencer em 2010, Serra precisa conquistar votos que foram petistas em 2002 e em 2006. Para vencer em 2010, ele precisa, por exemplo, manter a Saúde como bandeira sua, ministro que dela foi. Mas a pressa e o açodamento de impor uma derrota a Lula e de conquistar o agrado da Fiesp, na verdade verdadeira das coisas, tirou-lhe a bandeira das mãos. Por quê? Porque se apesar de tudo a Saúde melhorar e se expandir mais neste país, o mérito será do governo federal que, “apesar da perda da CPMF”, a terá feito progredir. Se isso não acontecer, Serra terá de arcar com o contra-argumento de que “foi o seu partido” que se curvou aos “pró-magnatas” do DEM e espandongou as verbas da Saúde.

Por sua vez, a gritaria na Câmara Federal é enorme: deputados e deputadas se sentem apunhalados e abandonados a sangrar pelos senadores dos seus partidos, pois parecer ser inevitável haver o contingenciamento e cortes de verbas nas emendas orçamentárias aprovadas. E a grita maior vem de deputados e deputadas dos próprios PSDB e DEM, que, com razão, se sentem mais ameaçados.

Também na Folha de S. Paulo, só que desta vez na de sábado, 15/12, em artigo de Marcos Cézari na seção Dinheiro, se lê que com o fim do imposto os assalariados de baixa renda terão uma perda, ainda que pequena em termos individuais, porque passarão a ter de pagar mais para a Previdência que antes lhes diminuía o desconto como uma compensação pelo imposto.

Ou seja, enquanto o governo vai remanejar verbas, podendo jogar todos os ônus para as oposições e para a irresponsabilidade de alguns de seus aliados menos aliados, quem se lascou mais foi o PSDB. Parece aquela jogada estúpida: na hora de dar a punhalada, o DEM segurou o punhal pelo cabo e o PSDB pela lâmina. Resultado: no alvo a faca feriu, mas nem entrou tanto. Já um dos esfaqueadores periga perder os dedos, e ainda está na UTI costurando as feridas.

Ainda uma palavra. É verdade que o PSDB está dividido, pelo menos desde a eleição de 2006. Mas agora está estraçalhado. Parece um ator que entrou endomingado em cena e sai em farrapos e andrajos. Qual o sentido de Fernando Henrique ter manejado tanto as cordinhas de Arthur Virgílio? A mim me parece um único. Pelo menos, quero dizer, um único faz sentido, porque o de ter jogado o partido e seus possíveis candidatos numa arapuca não faz. Como aquele cuja era ele queria acabar ao chegar à presidência, Fernando Henrique sabe que um dia ele deixará a vida para entrar na história (esperemos que daqui há muito tempo e de modo não tão trágico como o daquele seu antecessor). E ele está arriscando-se a entrar para a história como um mero prefácio às gestões de Lula e até mesmo de Serra, se este conseguir chegar à presidência. Neste último caso, reconheça-se, há o risco dos incontáveis retrocessos em todas as frentes, da política social à externa, que a sanha de tucanos e democratas trará. O segundo mandato de Fernando Henrique desteceu tudo que ele tecera para seu verbete nas enciclopédias durante o primeiro. Por isso, vanitas vanitatis, faz sentido criar todas as pedreiras possíveis no caminho de Lula.

Mas pressionado tardiamente por Serra e Aécio (que nesse sentido também foram lerdos, como foram o governo e o PT), o ex-presidente tentou jogar toda a responsabilidade pelo acontecido nos ombros de Arthur Virgílio. Mas quem acompanhou desde sempre essa farsesca tragédia anunciada, viu que FHC também ajudou a alevantar o punhal contra César. Só que César, ainda que contrariado, passa bem nos braços do povo. E alguns dos pretensos esfaqueadores também saíram esfaqueados. Por eles mesmos e seus comparsas.

Por Flávio Aguiar - fonte: http://www.agenciacartamaior.com.br
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O Brasil a um passo da ditadura - por Luiz Carlos Azenha - fonte: http://viomundo.globo.com

O Brasil a um passo da ditadura





Michael Deaver, mago do marketing político que serviu ao "Grande Comunicador", o ex-ator Ronald Reagan, dizia que pouco importavam as palavras ditas em uma reportagem de televisão. Para ele, as imagens eram tudo. Por isso, todas as aparições públicas de Reagan eram minuciosamente organizadas, colocando o presidente na luz "boa" para os fotógrafos, em cenários que combinavam com o gosto "frugal" dos eleitores. Com blocos de feno ao fundo, por exemplo, quando Reagan aparecia em seu rancho do Texas vestido de cowboy.

Lesley Stahl, repórter da rede americana CBS que fez uma reportagem a respeito, nos anos 80, relatou que Deaver considerava o conteúdo dos discursos de Reagan menos importante que a imagem que ele projetava. Por isso, o presidente pouco falava de improviso. Quando não usava um teleprompter, aquele aparelho que reflete o texto e dá a impressão de que o discurso é de memória, Reagan levava nas mãos uns cartões brancos com o resumo dos pontos sobre os quais deveria falar.

O jornal O Globo parece avançar na mesma direção, ao oferecer, na primeira página, uma foto-montagem de como ficaria a paisagem do Rio de Janeiro se não fosse combatida, com a ajuda da polícia, a expansão das favelas cariocas. Trata-se de jornalismo de suposição, o testando hipóteses transportado do telejornalismo para o jornal impresso.

Eu sou contra a destruição das florestas do Rio e contra a especulação imobiliária. Mas não me lembro de ter visto o jornal carioca fazer campanha quando o triângulo da construtora Gomes de Almeida Fernandes aparecia em três de cada três obras em torno da Lagoa Rodrigo de Freitas. Ou seja, o Globo é seletivamente contra a especulação imobiliária. Se for dos ricos, tudo bem. Se for dos pobres, polícia neles.



As Organizações Globo são especialistas no ramo de misturar realidade e ficção. De acordo com o diretor de arte da revista Época, ele recebeu da chefia a orientação para fazer uma capa em que Hugo Chávez aparecesse com rosto "ameaçador", embora o empregado - quero dizer, colaborador - da revista tenha considerado isso um desafio, dado que, nas palavras dele, Chávez tem cara de bonachão.

O colaborador se vangloriou de ter produzido, com efeitos especiais, a capa acima, para combinar com a frase mentirosa: "Por que o crescente poderio bélico de Hugo Chávez é uma ameaça à liderança brasileira".

A Época simplesmente desconheceu o ranking de poderio militar da América do Sul, que coloca a Venezuela atrás do Brasil, do Chile e da Colômbia. Fez de conta que não sabe que o Chile é armado pelos Estados Unidos e que os militares chilenos dispõem de um orçamento independente do governo, garantido pela Lei Secreta do Cobre, que destina um percentual do que o país ganha com as exportações do mineral para os gastos militares.

Desconheceu que a Colômbia fabrica seus próprios blindados, que é o país que tem o maior número de helicópteros Apache do continente e assessoria contínua de militares americanos em várias bases do país. Fez de conta que não soube da tentativa da Colômbia de importar tanques pesados da Europa, que não seriam úteis a não ser num combate de fronteira com a Venezuela.



Merval Pereira produziu a seguinte pérola, ao comemorar a derrota da renovação da CPMF: "Teria sido superada (em caso de vitória do governo) a última barreira política que separa a nossa hiperpresidência da ditadura."

Hiperpresidência? Por causa da popularidade do Lula? Não foi o Fernando Henrique Cardoso que, com apoio do Partido da Mídia, investiu pesado e conseguiu aprovar a reeleição? Ditadura? Ele está dizendo que os brasileiros não têm liberdade de imprensa, de manifestação, de reunião, de comércio, de movimento, de botar mulher pelada na televisão às oito da noite? Em que planeta vive esse personagem?

No primo paulista do Globo, o Estadão, é o mesmo rema-rema. Diante das afirmações do presidente Lula, corretas, de que a Venezuela vive uma democracia plena - com 12 processos eleitorais cujos resultados foram respeitados, desde 1998 - José Álvaro Moisés afirma: "A situação justifica as preocupações com o futuro da democracia." Lógico que preocupa. Vai preocupar enquanto faltarem votos aos tucanos. Quando eles enfim reconquistarem o Palácio do Planalto, estará restabelecida a democracia. Em outras palavras, mais de um ano depois da eleição de 2006 eles ainda não se conformam com o resultado, com a decisão da MAIORIA.

Ao lado de Moisés, Ipojuca Pontes se dedica a praticar o macarthismo tropical, ao lembrar que a diretora-presidente do que ele chama de "TV do Lula" é "ex-integrante da facção Convergência Socialista (de orientação trotskista) que trabalhou, nos anos 70, pela fundação do PT. E para ficar à frente da diretoria-geral da empresa foi nomeado o cineasta Orlando Sena, que, por sua vez, dirigiu a Escuela Internacional de Cine y Televisión de Cuba, na localidade de San Antonio de los Baños, a 30 km de Havana."

Será que ele foi consultar alguma ficha do velho Departamento de Ordem Política e Social? Ou os arquivos da CIA? Poderia ter dito que o ex-ministro Antonio Palloci foi da tendência trotskista Liberdade e Luta, assim como o jornalista Paulo Moreira Leite, que saiu da revista Época para o governo de José Serra. Mas não fala. É que esses ex-trotskistas 'estão em casa'.

O mais engraçado - ou trágico - de tudo isso é o trecho do artigo que o Estadão decidiu destacar: "O risco (da TV pública) é virar mais um instrumento ideológico a serviço do pensamento único." É o máximo do cinismo acusar os outros da prática que é cotidiana na mídia brasileira: o discurso consistente de que todos os problemas são federais e de que não há problemas estaduais ou municipais. A prática do compadrio, através da qual o comentarista da CBN diz as mesmas coisas no Estadão e no Jornal da Globo; a comentarista da Globonews se repete na CBN e no UOL; e o psicanalista da Folha dá dica para o diretor da TV Globo sobre um livro didático subversivo que merece ir para a fogueira. Só rindo...

Por Luiz Carlos Azenha - fonte: http://viomundo.globo.com


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Marketing amador - por Alon Feuerwerker - fonte: http://blogdoalon.blogspot.com/

Marketing amador (16/12)

Luiz Inácio Lula da Silva defende bem os interesses políticos dele ao mandar o ministro da Fazenda catar coquinho e esquecer do tal novo imposto para financiar a saúde. Qualquer um que raciocine cinco minutos perceberá que uma nova proposta do Executivo nesse sentido representaria a oportunidade de ouro para a oposição, especialmente o PSDB, saír do banco de areia movediça em que se meteu, ao derrubar a prorrogação de um imposto cujos recursos abastecem a saúde pública e os programas sociais do governo. Recursos que, tonificados, iriam integralmente para o Sistema Único de Saúde (SUS) em futuro próximo. Um novo projeto arrastaria novamente o governo para uma refrega no Senado, terreno desfavorável. Para debater uma agenda que nem a oposição defendeu na última campanha eleitoral. Como Lula é bem mais esperto politicamente do que Guido Mantega, aparentemente decidiu deixar o PSDB em paz na oposição, tendo que responder doravante pela atitude que adotou na votação da última quarta feira. Para quem ainda não percebeu o tamanho do problema político-eleitoral do PSDB, vale ler o artigo semanal do senador José Sarney (PMDB-AP) na Folha de S.Paulo, publicado nesta sexta-feira, a respeito da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF). Destaco um trecho:

O certo é que, com os anos, a aplicação desse imposto foi de boa qualidade. Tem sido uma grande arma, que evitou, a partir de 2001, que fossem sonegados R$ 6 bilhões anuais. Depois, 72% dele são pagos por empresas. Apenas 17% são pagos por quem ganha mais de R$ 100 mil. A metade da população mais pobre contribui com apenas 1,8%. Ele é empregado em Bolsa Família, aposentadoria rural, saúde. Outro aspecto bom é que ele corrige as desigualdades regionais. O Norte e Nordeste, por exemplo, arrecadam 24% e recebem 42%. É uma transferência de renda. Mas a oposição não quis ouvir nada, porque, como se diz no Nordeste, quando boi não quer beber, não adianta assoviar.

Clique aqui para ler a íntegra
. É isso. Quase três quartos da CPMF são pagos por empresas. quase um quinto do dinheiro da contribuição vem da conta bancária dos brasileiros que ganham mais de R$ 100 mil (imagino que por ano), a metade mais pobre da população entra com menos de 2% do total e as regiões mais carentes do país recebem quase o dobro do que arrecadam. Trata-se, portanto, de um imposto marcadamente social. Eu conheço os argumentos contrários. Alguns deles são contorcionistas. Como por exemplo o fato inegável de que os pobres, por serem mais pobres, utilizam percentagem maior de sua renda para pagar o custo da CPMF embutido nos produtos e serviços. Respondi a isso em Quando o antipopulismo encontra a vida real:

Se fosse assim, dever-se-iam adotar alíquotas progressivas, de acordo com a renda do consumidor, nos impostos sobre valor agregado, como por exemplo o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). O rico pagaria uma alíquota maior de ICMS do que o pobre, ainda que ambos comprassem exatamente o mesmo produto. Ninguém propõe isso, por duas razões. A primeira razão é que se trata de uma maluquice. A segunda razão é que a pressão contra o pagamento de impostos provém principalmente de quem poderia e deveria pagar até mais do que paga hoje.

Por que em vez da CPMF não começaram então acabando com o ICMS? Como diria o habitualmente elegante senador Sérgio Guerra (PSDB-PE), trata-se apenas de conversa fiada. Quem ganha muito não quer pagar imposto, pois não precisa do estado para nada. Ou para quase nada, já que do dinheiro a juros subsidiados do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) eles não abrem mão. Como tampouco abrem mão de dar o calote nos generosos empréstimos de bancos estatais para a atividade rural. Nem da publicidade oficial. Etc. Mas chega de lero-lero. Este post é sobre marketing, assunto no qual eu sou amador. É nessa condição que opino. Como observador atento, percebo que a vida política no Brasil tem dois momentos bem distintos, e que se alternam conforme o biorritmo eleitoral. Quando a eleição passa, entra em cena a turma que defende redução de gastos públicos, que ataca o populismo e o assistencialismo, bem como qualquer mecanismo de transferência de renda por meio do estado. Mas, quando a nova eleição vai chegando perto, o mesmo político que cultivou cuidadosamente a ladainha liberal (o que, por sinal, pode ser decisivo para que ele adentre ao panteão dos queridinhos da opinião pública e adquira a necessária imunidade) coloca uma camisa simples e vai ser filmado num restaurante popular (aqueles a R$ 1), num posto de saúde, numa creche ou em outro equipamento público qualquer destinado à população mais pobre. Até o Democratas centrou fogo no viés social de suas prefeituras em seu mais recente programa gratuito no rádio e na televisão. Aí eu fico pensando como vai ser na próxima eleição, se um marqueteiro esperto do situacionismo bolar algo mais ou menos assim. Entra um locutor, com uma cara bem feliz:

- Nos últimos anos, o Brasil melhorou. (Tantos) milhões de pessoas deixaram de ser pobres e entraram na classe média. Isso aconteceu por três motivos. O primeiro é o que o país cresceu e aumentaram muito as oportunidades de trabalho. O segundo é que com a inflação controlada e o salário maior você pode comprar mais coisas para você mesmo e para sua família. E o terceiro é que o governo Lula aumentou muito os investimentos na área social. Na saúde, na educação e no Bolsa Família.

Aí o locutor fica sério e adverte:

- Mas, cuidado. Antes de votar, pense bem. O candidato adversário é de um partido que participou do movimento para derrubar a CPMF, o imposto do cheque. E não propôs nada para colocar no lugar. Muita gente tinha críticas à CPMF, mas ela cumpria uma função importante. Todo o dinheiro ia para a área social. Ia para a saúde, para a aposentadoria rural e para o Bolsa Família. E o imposto era justo: só era cobrado de quem tinha conta em banco. E cada um pagava de acordo com o dinheiro que movimentasse na conta. O rico pagava muito e o pobre não pagava quase nada. Infelizmente, o partido do candidato adversário acabou com o imposto do cheque. Por causa disso, só nos últimos três anos mais de 100 bilhões de reais deixaram de ser aplicados na rede pública de saúde. 100 bilhões a menos em hospitais, postos de saúde, remédios e vacinas.

E conclui:

- Por isso é que é importante pensar bem antes de votar. Se eles fizeram isso quando estavam na oposição, você já imaginou o que eles serão capazes de fazer se ganharem a eleição e chegarem ao governo?

A oposição tem três anos para pensar numa boa resposta. Dada a quantidade de gênios e profissionais em suas fileiras, não vai ser difícil bolar uma que sirva.

por Alon Feuerwerker
http://blogdoalon.blogspot.com/

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MORRER COM OS FILISTEUS?* - por Uri Avnery - fonte: http://blogdobourdoukan.blogspot.com/


MORRER COM OS FILISTEUS?*

Uri Avnery**

Tradução Caia Fittipaldi


AS PALAVRAS mais famosas jamais pronunciadas em Ghaza foram as últimas palavras de Sansão (Juízes, 16, 30): “Que eu morra com os filisteus!”

Conforme a história que a Bíblia narra, Sansão empurrou os pilares centrais do templo dos filisteus e pôs abaixo todo o prédio, sobre os senhores dos filisteus, o povo de Ghazaa e sobre ele mesmo. O narrador resume a história: “Assim, Sansão fez mais mortos, ao morrer, do que fez em vida.”

É uma história de sofrimento, destruição e morte. Pode estar a ponto de repetir-se agora, só que com os papéis trocados: o templo pode estar para ser derrubado pelos palestinos (cujo nome é herdado dos filisteus, filistinos); e entre os mortos podem estar os senhores de Israel.

Mil anos depois de Sansão, na fortaleza de Massada, os judeus que defendiam a fortaleza escolheram o suicídio em massa, para não se render aos romanos. Ghazaa tornar-se-á uma Massada palestina?

O povo de Ghaza está preocupado. Os combatentes do Hamás preparam-se para entrar em ação. Os chefes do exército de Israel, ao mesmo tempo, estão preocupados e preparam-se também para entrar em ação.

Há meses, os líderes políticos e militares israelenses discutem esta “grande operação”: uma invasão em massa, na Faixa de Ghaza, para pôr fim ao lançamento de foguetes contra Israel.

Os chefes militares, que sempre anseiam por batalhas, não parecem muito famintos, desta vez. Não parecem nada famintos. Desejam evitar o combate, desta vez, a quase qualquer custo. Mas são fatalistas. Tudo, agora, depende da sorte, e a sorte é cega. Por exemplo, se amanhã um foguete Qassam cair sobre uma casa em Sderot e matar uma família inteira, haverá tal comoção em Israel que pode acontecer de o governo ser forçado a ordenar a invasão, por mais que a invasão não seja a escolha preferencial do governo.

A Faixa de Ghaza é um pesadelo para todos os estrategistas israelenses, políticos ou militares. A Faixa mede cerca de 40 km de comprimento, por 10 km de largura. Nestes 360 quilômetros quadrados de deserto calcinante, equivalentes a menos que o dobro da área de Washington DC, vivem 1,5 milhão de seres humanos, quase todos miseráveis, que nada têm a perder, comandados por um movimento religioso militante. (Na guerra de 1948, a comunidade de judeus na Palestina não chegava a 650 mil pessoas.)

Já há meses, os líderes do Hamás em Ghazaa estão estocando armas, que chegam à Faixa clandestinamente, pelos muitos túneis que atravessam a fronteira com o Egito (como entraram armas no país, às vésperas da guerra de 1948). É verdade: não têm artilharia nem tanques, mas já possuem armamento antitanque muito eficaz.

Conforme estimativas de nossas autoridades militares, a invasão da Faixa de Ghazaa pode custar a vida de uma centena de soldados israelenses e de milhares de civis e combatentes palestinos. O exército de Israel usará tanques e bulldozers blindados, e o mundo verá fotos terríveis – o mesmo tipo de fotos que nosso exército tentou evitar que fossem divulgadas e que provocaram reações, em todo o mundo, contra “o massacre de Jenin” em 2002, durante a operação "Defensive Shield".

Ninguém pode prever o desenrolar desta operação. Talvez a resistência palestina entre em rápido colapso, e não se confirme o número previsto de baixas no exército israelense. Mas também é possível que Ghazaa converta-se em algum tipo de Massada Palestina, em algum tipo de mini-Stalingrado. Esta semana, numa das incursões ‘de rotina’ do exército israelense, um foguete RPG (rocket-propelled grenade, granada lançada por foguete) perfurou um dos renomados tanques Merkava Mark-3, produzidos em Israel, e só por milagre não matou os quatro soldados que o conduziam. Num grande combate, não se pode confiar neste tipo de milagre.

Ali, o pesadelo é sem fim. Não se duvida que o exército vencerá a resistência, seja qual for o preço que os dois lados tenham de pagar, e mesmo que chegue a demolir quarteirões inteiros e à matança, à morte em massa. Mas... e depois?

Se o exército evacuar imediatamente a Faixa, a situação voltará ao que havia antes, e recomeçará o lançamento de foguetes Qassam (se chegar a ser suspenso, em algum momento). Assim, toda a operação terá sido inútil. Se o exército permanecer na Faixa – e que alternativa haveria? – será forçado a assumir a total responsabilidade por um regime de ocupação: terá de alimentar a população, oferecer serviços de assistência social, cuidar da segurança. E, isto, em contexto de guerra de guerrilhas ativa e vigorosa, o que fará da vida de todos, forças de ocupação e resistentes, um inferno.

Para quem tenha de ocupá-la, a Faixa de Ghaza sempre foi problema grave. O exército de Israel já ocupou e desocupou a Faixa três vezes – nas três vezes, a desocupação foi um alívio. "Ghazaa, goodbye, que alívio!" sempre foi slogan muito popular. Quando Israel fez a paz com os egípcios, eles declaradamente se recusaram a aceitar a devolução de Ghaza.

Não por acaso, as duas intifadas começaram em Ghaza. (A primeira, há exatos 20 anos esta semana, eclodiu quando um tanque israelense colidiu com dois carros que transportavam trabalhadores palestinos, colisão que os palestinos interpretaram como proposital, deliberada, pelos israelenses. A segunda eclodiu depois da visita-provocação que Ariel Sharon fez ao Monte do Templo, quando policiais israelenses atiraram contra e mataram muçulmanos que participavam de protestos violentos.)

O próprio movimento Hamás, que hoje festeja o 20º aniversário, também nasceu – não por acaso – em Ghaza.

Não surpreende que nossos chefes militares encolham-se ante a iminência de ter de ocupar a Faixa de Ghazaa. Não lhes interessa a idéia de fazerem o papel dos senhores dos filisteus, na história do Sansão palestino.

O PROBLEMA é que ninguém sabe como desatar o nó górdio que Ariel Sharon deixou atado, ele, o mestre atador de nós górdios.

Sharon deu início ao “Plano de Separação” ("Separation Plan") – uma das maiores tolices nos anais deste Estado, tão rico em tolices.

Como todos lembramos, Sharon demoliu colônias na Faixa, sem qualquer diálogo com os palestinos e sem devolver os territórios à Autoridade Palestina. Não deu aos habitantes da Faixa qualquer possibilidade de levarem vida normal. Em vez disto, converteu o território numa gigantesca prisão. Todas as conexões com o mundo exterior foram cortadas – a marinha de Israel patrulhava as saídas por mar, a fronteira com o Egito foi completa e eficazmente fechada, o aeroporto foi deixado em ruínas, evitou-se, pela força, que se construísse um porto. A prometida “passagem segura” entre a Faixa e a Cisjordânia foi hermeticamente bloqueada, todas as vias para entrar e sair da Faixa ficaram sob total controle israelense, abertas e fechadas arbitrariamente. Desapareceu completamente a possibilidade de trabalho para dezenas de milhares de habitantes da Faixa que trabalhavam em Israel – e destes empregos dependia a sobrevivência de praticamente todos os habitantes da Faixa.

O capítulo seguinte foi inevitável: o Hamás assumiu o controle militar em toda a Faixa, sem que nenhum dos desamparados políticos em Ramállah pudessem intervir. Da Faixa, lançavam-se foguetes Qassam e morteiros sobre as cidades e vilas israelenses próximas, sem que o exército israelense pudesse contê-los. Um dos mais poderosos exércitos do mundo, com o armamento mais sofisticado, não consegue neutralizar uma das armas mais primitivas que há.

Assim se construiu um círculo vicioso: os israelenses sufocam a população na Faixa, os combatentes de Ghazaa bombardeiam a cidade israelense de Sderot, o exército israelense reage e mata combatentes e civis palestinos, habitantes de Ghazaa lançam morteiros contra os kibbutzim, o exército israelense faz incursões diárias e diariamente, dia e noite, mata combatentes palestinos, o Hamás introduz armamento antitanque mais efetivo – e não há solução à vista.

UM CIDADÃO ISRAELENSE comum não tem idéia do que está acontecendo na Faixa de Ghazaa. A desconexão é total. Nenhum israelense pode entrar na Faixa, praticamente nenhum palestino pode sair.

A maioria dos israelenses vê as coisas do seguinte modo: saímos de Ghazaa. Destruímos todas as colônias que havia lá, mesmo que isto nos tenha custado uma profunda crise nacional. E o que aconteceu? Os palestinos continuam nos agredindo e atiram contra nós, do lado de lá da Faixa, e a vida em Sderot é um inferno. Não nos resta outra saída, além de nós também convertemos em absoluto inferno a vida deles, até que parem de atirar em nós.

Esta semana ouvi um depoimento de uma das fontes mais confiáveis que há em Ghazaa – o Dr. Eyad Sarraj – psiquiatra muito conhecido e ativista de movimentos pelos Direitos Humanos e pela paz. Eis parte do que ele contou a um pequeno grupo de ativistas israelenses pela paz:

Israel bloqueia todas as importações da Faixa, exceto uma meia dúzia de itens básicos. Eram usados 900 caminhões, diariamente, para transportar produtos importados e exportados para e da Faixa de Ghazaa; hoje são apenas 15. Por exemplo: sabão não entra.

A água local não é potável. Não entra água engarrafada. Israel não permite que se importem bombas para água. O preço dos filtros de água subiu de 40 para 250 dólares, e não há peças de reposição para todos os filtros. Só os muito ricos podem comprar filtros. Mas, sim, deixam entrar cloro.

É impossível importar cimento. Se surge uma rachadura numa casa, é impossível reconstruir. A campanha para construir o hospital infantil está suspensa. Não há peças de reposição de nenhum tipo. Um instrumento médico que quebre não pode ser consertado nem trocado. Não há incubadoras para recém-nascidos nem equipamento para diálise.

Os doentes graves não encontram hospital – nem em Israel nem no Egito nem na Jordânia. As poucas autorizações só aparecem depois de muita espera, muitas vezes mortal. Em vários casos, os doentes são condenados à morte.

Os estudantes não podem chegar às suas universidades no exterior. Cidadãos estrangeiros que estejam em visita à Faixa não podem sair, se tiverem identidade palestina. Palestinos contratados para trabalhar no exterior não obtêm visto de saída. Alguns palestinos são autorizados a passar por Israel a caminho do Egito, mas não obtêm visto para entrar no Egito e têm de voltar a Ghazaa.

Praticamente todas as empresas foram fechadas e os empregados demitidos, por falta de matérias-primas. Por exemplo, a fábrica da Coca Cola já fechou. Depois de 60 anos de ocupação – primeiro pelos egípcios, depois pelos israelenses –, praticamente nada é produzido na Faixa, além de laranjas, morangos, tomates.

Os preços chegam à estratosfera – multiplicados por cinco, por 10. A vida hoje é muito mais cara em Ghazaa do que em Telavive. O mercado negro expande-se.

Como vivem as pessoas? Nas grandes famílias, uns ajudam os outros. Parentes mais ricos sustentam os demais. A UNRWA (United Nations Relief and Works Agency, Agência de Atendimento Humanitário das Nações Unidas) fornece itens básicos de alimentação, distribuídos entre os refugiados, que são a maioria da população.

HÁ ALTERNATIVA que não seja a invasão massiva? Claro que há. Mas exige imaginação, coragem, capacidade e prontidão para agir contra os padrões estabelecidos.

É preciso obter, imediatamente, um cessar-fogo. Tudo indica que também o Hamás está pronto para isto, desde que o cessar-fogo seja geral: os dois lados têm de suspender todas as ações militares, inclusive os ataques por “bombas inteligentes” e o lançamento de Qassams e morteiros. Os postos de fronteira devem ser abertos à livre circulação de produtos, nas duas direções. A passagem entre a Faixa e a Cisjordânia deve ser aberta, e aberta deve ser também a fronteira entre a Faixa e o Egito.

Uma distenção na situação geral encorajará os dois grupos que competem pelo governo da Palestina – o Fatah na Cisjordânia, e o Hamás em Ghazaa – a iniciar um novo diálogo, sob os auspícios do Egito ou da Arábia Saudita, para ultrapassar o despenhadeiro e construir uma liderança nacional palestina unificada, com autoridade para assinar acordos de paz.

Em vez do grito de Sansão “Que eu morra com os filisteus!”, ouçamos as palavras de Dylan Thomas: And death shall have no dominion! “E que não nos domine a morte!”

**Uri Avnery é membro fundador do Gush Shalom (Bloco da Paz israelense). Adolescente, Avnery foi combatente no Irgun e mais tarde soldado no exército israelita. Foi três vezes deputado no Knesset (parlamento). Foi o primeiro israelense a estabelecer contato com a liderança da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) em 1974. Foi durante quarenta anos editor-chefe da revista noticiosa Ha'olam Haze. É autor de numerosos livros sobre a ocupação israelense da Palestina, incluindo My Friend, the Enemy (Meu amigo, o inimigo) e Two People, Two States (Dois povos, dois Estados).

* To die with the Philistines?, 15/12/2007, em Gush Shalom, em http://zope.gush-shalom.org/index_en.html. Copyleft.

Tradução de Caia Fittipaldi

Reprodução autorizada pelo autor e pela tradutora.
http://blogdobourdoukan.blogspot.com/

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CHAUÍ: VIOLÊNCIA, RACISMO E DEMOCRACIA - fonte: http://conversa-afiada.ig.com.br

CHAUÍ: VIOLÊNCIA, RACISMO E DEMOCRACIA


A filósofa e professora da Faculdade de Letras e Ciências Humanas da USP, Marilena Chauí, participou no dia 3 de dezembro, em São Paulo, do ciclo de debates “Ações Afirmativas: Estratégias para Ampliar a Democracia”, promovido pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, chefiada pela Ministra Matilde Ribeiro.

A professora Chauí tratou da questão da violência, do racismo e da democracia no Brasil.

O texto que serviu de base à palestra da professora Chauí já foi publicado no site do PT: http://www.pt.org.br/portalpt/index.php?option=com_content&task=view&id=5816&Itemid=239

A professora Chauí autorizou o Conversa Afiada a reproduzi-lo:


Contra a violência
1. Ética, violência e racismo
Numa perspectiva geral, podemos dizer que a ética procura definir, antes de mais nada, a figura do agente ético e de suas ações e o conjunto de noções (ou valores) que balizam o campo de uma ação que se considere ética. O agente ético é pensado como sujeito ético, isto é, como um ser racional e consciente que sabe o que faz, como um ser livre que decide e escolhe o que faz, e como um ser responsável que responde pelo que faz. A ação ética é balizada pelas idéias de bom e mau, justo e injusto, virtude e vício, isto é, por valores cujo conteúdo pode variar de uma sociedade para outra ou na história de uma mesma sociedade, mas que propõem sempre uma diferença intrínseca entre condutas, segundo o bem, o justo e o virtuoso. Assim, uma ação só será ética se for consciente, livre e responsável e só será virtuosa se for realizada em conformidade com o bom e o justo. A ação ética só é virtuosa se for livre e só será livre se for autônoma, isto é, se resultar de uma decisão interior ao próprio agente e não vier da obediência a uma ordem, a um comando ou a uma pressão externos. Enfim, a ação só é ética se realizar a natureza racional, livre e responsável do agente e se o agente respeitar a racionalidade, liberdade e responsabilidade dos outros agentes, de sorte que a subjetividade ética é uma intersubjetividade. A ética não é um estoque de condutas e sim uma práxis que só existe pela e na ação dos sujeitos individuais e sociais, definidos por formas de sociabilidade instituídos pela ação humana em condições históricas determinadas.
A ética se opõe à violência, palavra que vem do latim e significa: 1) tudo o que age usando a força para ir contra a natureza de algum ser (é desnaturar);2) todo ato de força contra a espontaneidade, a vontade e a liberdade de alguém (é coagir, constranger, torturar, brutalizar);3) todo ato de violação da natureza de alguém ou de alguma coisa valorizada positivamente por uma sociedade (é violar);4) todo ato de transgressão contra aquelas coisas e ações que alguém ou uma sociedade define como justas e como um direito;5) conseqüentemente, violência é um ato de brutalidade, sevícia e abuso físico e/ou psíquico contra alguém e caracteriza relações intersubjetivas e sociais definidas pela opressão, intimidação, pelo medo e pelo terror.
A violência se opõe à ética porque trata seres racionais e sensíveis, dotados de linguagem e de liberdade como se fossem coisas, isto é, irracionais, insensíveis, mudos, inertes ou passivos. Na medida em que a ética é inseparável da figura do sujeito racional, voluntário, livre e responsável, tratá-lo como se fosse desprovido de razão, vontade, liberdade e responsabilidade é tratá-lo não como humano e sim como coisa, fazendo-lhe violência nos cinco sentidos em que demos a esta palavra.
É sob este aspecto (entre outros, evidentemente), que o racismo é definido como violência. Não é demais lembrar quando essa idéia aparece.
De fato, não se sabe muito bem qual é a origem da palavra “raça” - os antigos gregos falavam em etnia e genos, os antigos hebreus, em povo, os romanos, em nação;e essas três palavras significavam o grupo de pessoas descendentes dos mesmos pais originários. Alguns dicionários indicam que, no século XII, usava-se a palavra francesa “haras” para se referir à criação de cavalos especiais e pode-se supor que seu emprego se generalizou para outros animais e para vegetais, estendendo-se depois aos humanos, dando origem à palavra “raça”. Outros julgam que a palavra se deriva de um vocábulo italiano, usado a partir do século XV, “razza”, significando espécie animal e vegetal e, posteriormente, estendendo-se para as famílias humanas, conforme sua geração e a continuidade de suas características físicas e psíquicas (ou seja, ganhando o sentido das antigas palavras etnia, genos e nação). Quando, no século XVI, para seqüestrar as fortunas das famílias judaicas da Península Ibérica, a fim de erguer um poderio náutico para criar impérios ultramarinos, a Inquisição inventou a expressão “limpeza de sangue”, significando a conversão dos judeus ao cristianismo. Com isso, a distinção religiosa, que separava judeus e cristãos, recebeu pela primeira vez um conteúdo étnico.
É interessante observar, porém, que a palavra “racial” surge apenas no século XIX, particularmente com a obra do francês Gobineau, que, inspirando-se na obra de Darwin, introduziu formalmente o termo “raça” para combater todas formas de miscigenação, estabelecendo distinções entre raças inferiores e superiores, a partir de características supostamente naturais. E, finalmente, foi apenas no século XX que surgiu a palavra “racismo”, que, conforme Houaiss, é uma crença fundada numa hierarquia entre raças, uma doutrina ou sistema político baseado no direito de uma raça, tida como pura e superior, de dominar as demais. Com isso, o racismo se torna preconceito contra pessoas julgadas inferiores e alimenta atitudes de extrema hostilidade contra elas, como a separação ou o apartamento total - o apartheid - e a destruição física do genos, isto é, o genocídio.
Seja no caso ibérico, seja no da colonização das Américas, seja no de Gobineau, seja no do apartheid, no do genocídio praticado pelo nazismo contra judeus, ciganos, poloneses e tchecos, ou o genocídio atual praticado pelos dirigentes do Estado de Israel contra os palestinos, a violência racista está determinada historicamente por condições materiais, isto é, econômicas e políticas. Em outras palavras, o racismo é uma ideologia das classes dominantes e dirigentes, interiorizada pelo restante da sociedade.
Ora, o fato de que no Brasil não tenha havido uma legislação apartheid, nem formas de discriminação como as existentes nos Estados Unidos, e que tenha havido miscigenação em larga escala, faz supor que, entre nós, não há racismo. O fato de que tenha sido necessária a promulgação da Lei Afonso Arinos e que o racismo tenha sido incluído pela Constituição de 1988 entre os crimes hediondos, deve levar-nos a tratar a suposição da inexistência do racismo num contexto mais amplo, qual seja, no de um mito poderoso, o da não-violência brasileira. Trata-se da imagem de um povo ordeiro, pacífico, generoso, alegre, sensual, solidário que desconhece o racismo, o sexismo, o machismo e o preconceito de classe, que respeita as diferenças étnicas, religiosas e políticas, não discrimina as pessoas por sua posição econômico-social nem por suas escolhas sexuais, etc.
2. O mito da não-violência brasileira
Por que mito? Porque:
a) um mito opera com antinomias, tensões e contradições que não podem ser resolvidas sem uma profunda transformação da sociedade no seu todo e que por isso são transferidas para uma solução imaginária, que torna suportável e justificável a realidade. Em suma, o mito nega e justifica a realidade negada por ele;
b) um mito cristaliza-se em crenças que são interiorizadas num grau tal que não são percebidas como crenças e sim tidas não só como uma explicação da realidade, mas como a própria realidade. Em suma, o mito substitui a realidade pela crença na realidade narrada por ele e torna invisível a realidade existente;
c) um mito resulta de ações sociais e produz como resultado outras ações sociais que o confirmam, isto é, um mito produz valores, idéias, comportamentos e práticas que o reiteram na e pela ação dos membros da sociedade. Em suma, o mito não é um simples pensamento, mas formas de ação;
d) um mito tem uma função apaziguadora e repetidora, assegurando à sociedade sua auto-conservação sob as transformações históricas. Isto significa que um mito é o suporte de ideologias: ele as fabrica para que possa, simultaneamente, enfrentar as mudanças históricas e negá-las, pois cada forma ideológica está encarregada de manter a matriz mítica inicial. No nosso caso, o mito fundador é exatamente o da não-violência essencial da sociedade brasileira.
Muitos indagarão como o mito da não-violência brasileira pode persistir sob o impacto da violência real, cotidiana, conhecida de todos e que, nos últimos tempos, é também ampliada por sua divulgação e difusão pelos meios de comunicação de massa. Ora, é justamente no modo de interpretação da violência que o mito encontra meios para conservar-se. Se fixarmos nossa atenção ao vocabulário empregado pelos mass media, observaremos que os vocábulos se distribuem de maneira sistemática:
- fala-se em chacina e massacre para referir-se ao assassinato em massa de pessoas indefesas, como crianças, favelados, encarcerados, sem-terra;
- fala-se em indistinção entre crime e polícia para referir-se à participação de forças policiais no crime organizado, particularmente o jogo do bicho, o narcotráfico e os seqüestros;
- fala-se em guerra civil tácita para referir-se ao movimento dos sem-terra, aos embates entre garimpeiros e índios, policiais e narcotraficantes, aos homicídios e furtos praticados em pequena e larga escala, mas também para referir-se ao aumento do contingente de desempregados e habitantes das ruas, aos assaltos coletivos a supermercados e mercados, e para falar dos acidentes de trânsito;
- fala-se em fraqueza da sociedade civil para referir-se à ausência de entidades e organizações sociais que articulem demandas, reivindicações, críticas e fiscalização dos poderes públicos;
- fala-se em debilidade das instituições políticas para referir-se à corrupção nos três poderes da república, à lentidão do poder judiciário, à falta de modernidade política;
- fala-se, por fim, em crise ética.
Essas imagens têm a função de oferecer uma imagem unificada da violência. Chacina, massacre, guerra civil tácita e indistinção entre polícia e crime pretendem ser o lugar onde a violência se situa e se realiza;fraqueza da sociedade civil, debilidade das instituições e crise ética são apresentadas como impotentes para coibir a violência. As imagens indicam a divisão entre dois grupos: de um lado, estão os grupos portadores de violência, e de outro, os grupos impotentes para combatê-la.
Essas imagens baseiam-se em alguns mecanismos ideológicos por meio dos quais se dá a conservação da mitologia.
O primeiro mecanismo é o da exclusão: afirma-se que a nação brasileira é não-violenta e que, se houver violência, esta é praticada por gente que não faz parte da nação (mesmo que tenha nascido e viva no Brasil). O mecanismo da exclusão produz a diferença entre um nós-brasileiros-não-violentos e um eles-não-brasileiros-violentos. "Eles" não fazem parte do "nós".
O segundo é o da distinção: distingue-se o essencial e o acidental, isto é, por essência, os brasileiros não são violentos e, portanto, a violência é acidental, um acontecimento efêmero, passageiro, uma "epidemia" ou um "surto" localizado na superfície de um tempo e de um espaço definidos, superável e que deixa intacta nossa essência não-violenta.
O terceiro é jurídico: a violência fica circunscrita ao campo da delinquência e da criminalidade, o crime sendo definido como ataque à propriedade privada (furto, roubo e latrocínio). Esse mecanismo permite, por um lado, determinar quem são os "agentes violentos" (de modo geral, os pobres e, entre estes, os negros) e legitimar a ação da polícia contra a população pobre, os negros, as crianças de rua e os favelados. A ação policial pode ser, às vezes, considerada violenta, recebendo o nome de "chacina" ou "massacre" quando, de uma só vez e sem motivo, o número de assassinados é muito elevado. No restante das vezes, porém, o assassinato policial é considerado normal e natural, uma vez que se trata da proteger o "nós" contra o "eles".
Finalmente, o último mecanismo é o da inversão do real, graças à produção de máscaras que permitem dissimular comportamentos, idéias e valores violentos como se fossem não-violentos. Assim, por exemplo, o machismo é colocado como proteção à natural fragilidade feminina, proteção inclui a idéia de que as mulheres precisam ser protegidas de si próprias, pois, como todos sabem, o estupro é um ato feminino de provocação e sedução;o paternalismo branco é visto como proteção para auxiliar a natural inferioridade dos negros, os quais, como todos sabem, são indolentes e safados;a repressão contra os homossexuais é considerada proteção natural aos valores sagrados da família e, agora, da saúde e da vida de todo o gênero humano ameaçado pela Aids, trazida pelos degenerados, etc..
No caso desse mecanismo de inversão, foi sintomática a reação de uma parte da classe média diante do Prouni. De fato, muitos disseram, pasmem!, que se tratava de “opressão racial contra os brancos”, no momento da entrada na universidade, e de “estímulo ao ódio contra os negros”, durante a permanência universitária. Em suma, o Prouni seria a criação do racismo no Brasil!
Mais clara e ainda mais paradigmática do mecanismo da inversão é o que acaba de ocorrer com a Ministra Matilde Ribeiro pela entrevista concedida à BBC: para puni-la por todas as políticas de ações afirmativas e de criação democrática de direitos sociais, econômicos e culturais, para puni-la por sua luta contra a violência racial, os meios de comunicação de massa tentam transformá-la em agente da violência. Ora, ao isolar suas palavras do contexto, os defensores da “não-violência” praticam uma ato de violência psíquica, intelectual e política, pois deformam e traem o que ela disse. Usando essa violência, declaram que não há racismo no Brasil, a não ser este que, segundo eles, ela teria instituído. E, suprema ironia, um dos jornais atacantes e pretensamente não racista costumava referir-se a FHC como “presidente mulatre”!
Em resumo, no Brasil, a violência não é percebida ali mesmo onde se origina e ali mesmo onde se define como violência propriamente dita, isto é, como toda prática e toda idéia que reduz um sujeito à condição de coisa, que viola interior e exteriormente o ser de alguém, que perpetua relações sociais de profunda desigualdade econômica, social e cultural. Mais do que isto, a sociedade não percebe que as próprias explicações oferecidas são violentas porque está cega ao lugar efetivo de produção da violência, isto é, a estrutura da sociedade brasileira, que, em sua violência cotidiana, reitera, alimenta e repete o mito da não-violência.
3. Uma sociedade violenta
Conservando as marcas da sociedade colonial escravista, a sociedade brasileira é determinada pelo predomínio do espaço privado (ou os interesses econômicos) sobre o público e, tendo o centro na hierarquia familiar, é fortemente hierarquizada em todos os seus aspectos: nela, as relações sociais e intersubjetivas são sempre realizadas como relação entre um superior, que manda, e um inferior, que obedece. As diferenças e assimetrias são sempre transformadas em desigualdades, que reforçam a relação mando-obediência. O outro jamais é reconhecido como sujeito nem como sujeito de direitos, jamais é reconhecido como subjetividade nem como alteridade. As relações, entre os que julgam iguais, são de “parentesco”, isto é, de cumplicidade;e, entre os que são vistos como desiguais, o relacionamento toma a forma do favor, da clientela, da tutela ou da cooptação, e, quando a desigualdade é muito marcada, assume a forma da opressão. Há, assim, a naturalização das desigualdades econômicas e sociais, do mesmo modo que há naturalização das diferenças étnicas (consideradas desigualdades raciais entre superiores e inferiores), religiosas e de gênero, bem como naturalização de todas formas visíveis e invisíveis de violência.
A violência está de tal modo interiorizada nos corações e mentes que alguém pode usar a frase "um negro de alma branca" e não ser considerado racista. Pode referir-se aos serviçais domésticos com a frase "uma empregada ótima: conhece seu lugar” e considerar-se isento de preconceito de classe. Pode dizer, como disse certa vez Paulo Maluf, “a professorinha não deve gritar por salário, mas achar um marido mais eficiente” e não ser considerado machista.
Podemos resumir, simplificadamente, os principais traços de nossa violência social considerando a sociedade brasileira oligárquica, autoritária, vertical, hierárquica, polarizada entre a carência e o privilégio e com bloqueios e resistências à instituição dos direitos civis, econômicos, sociais e culturais.
Nossa sociedade conheceu a cidadania através de uma figura inédita: o senhor (de escravos)-cidadão, e concebe a cidadania com privilégio de classe, fazendo-a ser uma concessão da classe dominante às demais classes sociais, podendo ser-lhes retirada quando os dominantes assim o decidirem. O caso da mídia contra a Ministra Matilde exprime exatamente essa idéia de cidadania concedida e retirada ao sabor dos interesses dos dominantes. Pelo mesmo motivo, no caso das camadas populares, os direitos, em lugar de aparecerem como conquistas dos movimentos sociais organizados, são sempre apresentados como concessão e outorga feitas pelo Estado, dependendo da vontade pessoal ou do arbítrio do governante.
Em nossa sociedade, as diferenças e assimetrias sociais e pessoais são imediatamente transformadas em desigualdades, e estas, em relação de hierarquia, mando e obediência. Os indivíduos se distribuem imediatamente em superiores e inferiores, ainda que alguém superior numa relação possa tornar-se inferior em outras, dependendo dos códigos de hierarquização que regem as relações sociais e pessoais. Todas as relações tomam a forma da dependência, da tutela, da concessão e do favor. Isso significa que as pessoas não são vistas, de um lado, como sujeitos autônomos e iguais, e, de outro, como cidadãs e, portanto, como portadoras de direitos. É exatamente isso que faz a violência ser a regra da vida social e cultural. Violência tanto maior porque invisível sob o paternalismo e o clientelismo, considerados naturais e, por vezes, exaltados como qualidades positivas do "caráter nacional".
Nela, as leis sempre foram armas para preservar privilégios e o melhor instrumento para a repressão e a opressão, jamais definindo direitos e deveres concretos e compreensíveis para todos. Essa situação é claramente reconhecida pelos trabalhadores quando afirmam que "a justiça só existe para os ricos". O Poder Judiciário é claramente percebido como distante, secreto, representante dos privilégios das oligarquias e não dos direitos da generalidade social. Para os grandes, a lei é privilégio;para as camadas populares, repressão. A lei não figura o pólo público do poder e da regulação dos conflitos, nunca define direitos e deveres dos cidadãos porque, em nosso país, a tarefa da lei é a conservação de privilégios e o exercício da repressão. Por este motivo, as leis aparecem como inócuas, inúteis ou incompreensíveis, feitas para serem transgredidas e não para serem transformadas - situação violenta que é miticamente transformada num traço positivo, quando a transgressão é elogiada como “o jeitinho brasileiro”.
Em nossa sociedade, não existem nem a idéia nem a prática da representação política autêntica. Os partidos políticos tendem a ser clubes privados das oligarquias locais e regionais, sempre tomam a forma clientelística na qual a relação é de tutela e de favor. É uma sociedade, conseqüentemente, na qual a esfera pública nunca chega a constituir-se como pública, pois é definida sempre e imediatamente pelas exigências do espaço privado (isto é, dos interesses econômicos dos dominantes). A indistinção entre o público e o privado não é uma falha acidental que podemos corrigir, pois é a estrutura do campo social e do campo político que se encontra determinada por essa indistinção.
É uma sociedade que por isso bloqueia a esfera pública da opinião como expressão dos interesses e dos direitos de grupos e classes sociais diferenciados eou antagônicos. Esse bloqueio não é um vazio ou uma ausência, mas um conjunto de ações determinadas que se traduzem numa maneira determinada de lidar com a esfera da opinião: os mass media monopolizam a informação, e o consenso é confundido com a unanimidade, de sorte que a discordância é posta como ignorância ou atraso.
As disputas pela posse da terra cultivada ou cultivável são resolvidas pelas armas e pelos assassinatos clandestinos. As desigualdades econômicas atingem a proporção do genocídio. Os negros são considerados infantis, ignorantes, safados, indolentes, raça inferior e perigosa, tanto assim, que numa inscrição gravada até há pouco tempo na entrada da Escola de Polícia de São Paulo dizia: "Um negro parado é suspeito;correndo, é culpado". Os índios, em fase final de extermínio, são considerados irresponsáveis (isto é, incapazes de cidadania), preguiçosos (isto é, mal-adaptáveis ao mercado de trabalho capitalista), perigosos, devendo ser exterminados ou, então, "civilizados" (isto é, entregues à sanha do mercado de compra e venda de mão-de-obra, mas sem garantias trabalhistas porque "irresponsáveis"). Os trabalhadores rurais e urbanos são considerados ignorantes, atrasados e perigosos, estando a polícia autorizada a parar qualquer trabalhador nas ruas, exigir a carteira de trabalho e prendê-lo "para averiguação", caso não esteja carregando identificação profissional (se for negro, além de carteira de trabalho, a polícia está autorizada a examinar-lhe as mãos para verificar se apresentam "sinais de trabalho" e a prendê-lo caso não encontre os supostos "sinais"). Há casos de mulheres que recorrem à Justiça por espancamento ou estupro, e são violentadas nas delegacias de polícia, sendo ali novamente espancadas e estupradas pelas “forças da ordem". Isto para não falarmos da tortura, nas prisões, de homossexuais, prostitutas e pequenos criminosos. Numa palavra, as classes populares carregam os estigmas da suspeita, da culpa e da incriminação permanentes. Essa situação é ainda mais aterradora quando nos lembramos de que os instrumentos criados durante a ditadura (1964-1975) para repressão e tortura dos prisioneiros políticos foram transferidos para o tratamento diário da população trabalhadora e que impera uma ideologia segundo a qual a miséria é causa de violência, as classes ditas "desfavorecidas" sendo consideradas potencialmente violentas e criminosas.
É uma sociedade na qual a estrutura da terra e a implantação da agroindústria criaram não só o fenômeno da migração, mas figuras novas na paisagem dos campos: os sem-terra, volantes, bóias-frias, diaristas sem contrato de trabalho e sem as mínimas garantias trabalhistas. Bóias-frias porque sua única refeição - entre as três da manhã e as sete da noite - consta de uma ração de arroz, ovo e banana, já frios, pois preparados nas primeiras horas do dia. E nem sempre o trabalhador pode trazer a bóia-fria, e os que não trazem se escondem dos demais, no momento da refeição, humilhados e envergonhados.
É uma sociedade na qual a população das grandes cidades se divide entre um "centro" e uma "periferia", o termo periferia sendo usado não apenas no sentido espacial-geográfico, mas social, designando bairros afastados nos quais estão ausentes todos os serviços básicos (luz, água, esgoto, calçamento, transporte, escola, posto de atendimento médico). Condição, aliás, encontrada no "centro", isto é, nos bolsões de pobreza, os cortiços e as favelas. População cuja jornada de trabalho, incluindo o tempo gasto em transportes, dura de 14 a 15 horas, e, no caso das mulheres casadas, inclui o serviço doméstico e o cuidado com os filhos.
É uma sociedade que não pode tolerar a manifestação explícita das contradições, justamente porque leva as divisões e desigualdades sociais ao limite e não pode aceitá-las de volta, sequer através da rotinização dos "conflitos de interesses" (à maneira das democracias liberais). Pelo contrário, a classe dominante exorciza o horror às contradições produzindo uma ideologia da indivisão e da união nacionais, a qualquer preço. Por isso recusa perceber e trabalhar os conflitos e contradições sociais, econômicas e políticas enquanto tais, uma vez que conflitos e contradições negam a imagem mítica da boa sociedade indivisa, pacífica e ordeira. Contradições e conflitos não são ignorados e sim recebem uma significação precisa: são considerados sinônimo de perigo, crise, desordem e a eles se oferece uma única resposta: a repressão policial e militar.
Nela vigora o fascínio pelos signos de prestígio e de poder, como se observa no uso de títulos honoríficos sem qualquer relação com a possível pertinência de sua atribuição, o caso mais corrente sendo o uso de "Doutor" quando, na relação social, o outro se sente ou é visto como superior ("doutor" é o substituto imaginário para os antigos títulos de nobreza);ou como se observa na importância dada à manutenção de criadagem doméstica, cujo número indica aumento de prestígio e de status, etc..
A desigualdade salarial entre homens e mulheres, entre brancos e negros, a exploração do trabalho infantil e dos idosos são consideradas normais. A existência dos sem-terra, dos sem-teto, dos desempregados é atribuída à ignorância, à preguiça e à incompetência dos "miseráveis". A existência de crianças de rua é vista como "tendência natural dos pobres à criminalidade". Os acidentes de trabalho são imputados à incompetência e ignorância dos trabalhadores. As mulheres que trabalham (se não forem professoras, enfermeiras ou assistentes sociais) são consideradas prostitutas em potencial e as prostitutas são tidas como degeneradas, perversas e criminosas, embora, infelizmente, indispensáveis para conservar a santidade da família.
A sociedade brasileira está polarizada entre a carência absoluta das camadas populares e o privilégio absoluto das camadas dominantes e dirigentes, bloqueando a instituição e a consolidação da democracia.
4. Democracia: criação de direitos
De fato, uma sociedade é democrática quando institui algo profundo, que é condição do próprio regime político, ou seja, quando institui direitos. Essa instituição é uma criação social, de tal maneira que a atividade democrática realiza-se socialmente como luta social e, politicamente, como um contra-poder social que determina, dirige, controla, limita e modifica a ação estatal e o poder dos governantes. Fundada na noção de direitos, a democracia está apta a diferenciá-los de privilégios e carências.
Um privilégio é, por definição, algo particular que não pode generalizar-se nem universalizar-se sem deixar de ser privilégio. Uma carência é uma falta também particular ou específica que desemboca numa demanda também particular ou específica, não conseguindo generalizar-se nem universalizar-se. Um direito, ao contrário de carências e privilégios, não é particular e específico, mas geral e universal, seja porque é o mesmo e válido para todos os indivíduos, grupos e classes sociais, seja porque embora diferenciado é reconhecido por todos (como é caso dos chamados direitos das minorias).
Uma das práticas mais importantes da política democrática consiste justamente em propiciar ações capazes de unificar a dispersão e a particularidade das carências em interesses comuns e, graças a essa generalidade, fazê-las alcançar a esfera universal dos direitos. Em outras palavras, privilégios e carências determinam a desigualdade econômica, social e política, contrariando o princípio democrático da igualdade, de sorte que a passagem das carências dispersas em interesse comuns e destes aos direitos é a luta pela igualdade. Avaliamos o alcance da cidadania popular quando tem força para desfazer privilégios, seja porque os faz passar a interesses comuns, seja porque os faz perder a legitimidade diante dos direitos e também quando tem força para fazer carências passarem à condição de interesses comuns e, destes, a direitos universais.
É neste contexto que a práxis da ministra Matilde precisa ser percebida e compreendida. É inconcebível que seu papel na instituição da democracia no Brasil possa ser diminuído ou contestado seja lá por quem for e muito menos pelos agentes da violência institucionalizada neste país.

Marilena Chauí é filósofa e professora da Faculdade de Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH)


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sábado, 15 de dezembro de 2007

Frias explica - por Eduardo Guimarães - fonte: http://edu.guim.blog.uol.com.br/

Frias explica


Você quer saber por que a oposição precisava derrubar a CPMF de qualquer jeito? O jornal da família Frias, em editorial, explica tudo.

O título do texto é "Depois da queda" (14/12). Já sugere a "grande derrota" de Lula que a Folha "explicará", pois "queda" e derrota são irmãs. Além disso, o texto tripudiará sobre o "derrotado".

Há, entretanto, que ler as entrelinhas. Não tem jeito. Eu gostaria de pegar um jornal, abrí-lo e lê-lo com uma certa dose de confiança de que seu conteúdo me traria rapidamente as informações de que necessito. Porém, quando um meio de comunicação, pretensamente "isento", publica textos que suscitam mais perguntas do que respostas - se forem lidos atentamente -, alguma coisa está errada.
Assim sendo, adoto, a seguir, uma prática que está sendo cada vez mais comum nos EUA, por exemplo. O que seja, a prática de se fazer o contraponto sistemático de notícias de meios de comunicação autocráticos como a Folha de São Paulo e outros até piores do eixo Rio-São Paulo, que são os mais perigosos hoje em dia por conta de sua capacidade de gerar crises e de interferir (modificando) na governança do país e no funcionamento das instituições.
Para fazer esse contraponto, optei por comentar em negrito depois de cada parágrafo do editorial, materializando a leitura "nas entrelinhas" à qual me referi acima.

Folha de São Paulo, 14 de dezembro de 2007 - editorial

Depois da queda

Fim da CPMF requer corte emergencial no gasto público e retomada de negociação para mudar a estrutura tributária.
Já começo pelo subtítulo: li ontem na mesma Folha, e assisti no jornal da Globo e no Bom Dia Brasil, que o país está crescendo aceleradamente ao mesmo tempo em que a inflação vem caindo. Os veículos disseram também que este país conta hoje com a maior taxa de investimentos (internos e externos) privados dos últimos onze anos. Ora, nada contra "mudar a estrutura tributária", contanto que se saiba que "mudança" é essa que a Folha propõe, mas eu me apego mesmo é ao "corte emergencial de gasto público". Essa afirmação, genericamente como foi feita, esconde que gasto o jornal quer que o governo interrompa. Mais adiante, porém, descobre-se o que pretende a Folha - e em favor de quem.
O FIM abrupto da cobrança da CPMF não foi o melhor desfecho. Retirar de chofre R$ 40 bilhões do Orçamento, sem programa negociado de corte de despesas, não é o modo indicado para obrigar o setor público a gastar melhor o dinheiro dos impostos. De positivo, a sessão encerrada na madrugada de ontem mostrou que o Executivo nem sempre pode tudo no Congresso.
"O fim abrupto da CPMF não foi o melhor desfecho"? Bem, então, como foi a aposição tucano-pefelista que propôs - e conseguiu - esse "fim abrupto da CPMF", por que raios a Folha - e o resto da mídia - não fez uma daquelas monumentais campanhas que sempre faz quando está contra o governo? Se tirar "de chofre" 40 bilhões de reais do Orçamento da União foi ruim, isso foi ruim para quem? É claro que foi para o país. Assim, a oposição agiu contra o país. Pergunta: cadê a crítica à oposição?

Todo o processo de negociação conduzido pelo Planalto foi de um amadorismo espantoso. A soberba de quem julgava a renovação do tributo um evento de fim de ano tão certo como os fogos em Copacabana deu lugar, nos últimos dias, ao pasmo diante da derrota possível. A chegada de uma carta do presidente Lula que prometia 100% da CPMF para a saúde, quando a sessão no Senado rumava para o final, fechou a novela em cena patética.
Aí está: em vez de críticas a quem fez acontecer alguma coisa que a Folha considera, no parágrafo anterior, que não foi boa para o país, o jornal prefere criticar o governo por seu "amadorismo espantoso". Mas... "amadorismo" em quê? São as perguntas que vão surgindo, pessoal. O amadorismo é em enfrentar um ataque contra os interesses do país. Amadorismo, aliás, é o contrário de profissionalismo. Haveria que ser "profissa", como diz a juventude. Em política. O governo Lula, tão acusado de fazer da política um balcão de negócios, é amador e patético. E sobre os que criaram essa situação inoportuna num momento em que o país passa pelo único bom momento econômico desde o fim dos anos 1970, não será dito nada? Não, não será.
Controle de gastos públicos, destinação total da CPMF à saúde, baixa gradual da alíquota do imposto, redução de outros tributos, abatimento no Imposto de Renda, isenção para a baixa renda... A dispersão de "propostas" que circularam nas últimas semanas indica que nem governo nem oposição entraram nesse jogo para confrontar visões de Orçamento, tributação, gasto público e política econômica.
Mais uma vez, aparece o tal "controle de gastos públicos" sem que se diga que gastos querem que se corte. Mas vamos em frente, que, mais adiante, Frias explica isso.
Essa tal "destinação total da CPMF à Saúde" nunca ocorreu, até porque dinheiro, como diz a Miriam Leitão, não tem "carimbo". O dinheiro entra nos cofres do governo e destiná-lo totalmente à Saúde poderia até configurar redução nos gastos com essa rubrica do Orçamento, pois poder-se-ia fazê-lo inclusive retirando dinheiro proveniente de outros impostos.
Já propor "redução de outros tributos" (que tributos?) num momento em que o Estado está investindo - com excelentes resultados - para fazer o país crescer, e inclusive fazendo acontecer o crescimento que a mídia vem cobrando incessantemente, é demagogia pura. Em nenhum país desenvolvido toma-se medida de corte de impostos dessa forma, mudando o orçamento nacional em cima da hora. As sociedades desenvolvidas cobram responsabilidade da oposição para que não atrapalhe o funcionamento dos países.
Mas o que é escandaloso é que a Folha afirma a enormidade de que "nem governo nem oposição entraram nesse jogo para confrontar visões de Orçamento, tributação, gasto público e política econômica". Ah, é? Entraram para quê, então? O editorial não diz por que a oposição entrou "nesse jogo", mas, dizendo por que os Frias acham que o governo entrou, o texto deixa saber os motivos oposicionistas. Vejam só o próximo parágrafo.

O único interesse do Planalto era manter os cofres cheios por mais três anos. A oposição no Senado fixou-se no objetivo tático de impor uma derrota ao governo, contra a vontade explícita, no caso dos tucanos, de cinco governadores de Estado do PSDB. Não havia ninguém disposto a conciliar o imperativo de baixar os impostos e os gastos públicos com a necessidade de fazê-lo de forma ordenada e paulatina.
O que sugere a Folha, quando diz que "o único interesse do Planalto era manter os cofres cheios por mais três anos", é que o governo Lula pretendia ter dinheiro para gastança no período que antecede a eleição presidencial de 2010. Só que insinua-se gastança, mas o governo está gastando de forma que o país está crescendo aceleradamente, progressivamente, e isso, para a oposição, é péssimo eleitoralmente, pois com o país crescendo de forma sustentada - e até os "especialistas" da Globo dizem que esse crescimento é sustentado - o poder do presidente da República de influir na própria sucessão será arrasador, pois as pessoas quererão continuar com o grupo político com o qual o país está se desenvolvendo de forma tão consistente, por mais que a mídia tente atribuir todos os méritos aos tucanos, que governaram antes de Lula e entregaram o país em frangalhos, e todos os deméritos ao PT.

É importante que o governo Lula demonstre, após a derrota, a maturidade que lhe faltou ao longo do processo. Optar pela vingança e pela manipulação atabalhoada de outros impostos e de rubricas orçamentárias seria piorar as coisas. Agiu bem o ministro da Fazenda, Guido Mantega, ao assegurar as metas de superávit primário -a poupança para abater dívida pública.
Tradução: o governo deve arcar com a redução de suas despesas, mas não deve se vingar de quem é dos partidos que lhe retiraram receita, ou melhor, dos governadores da oposição ao governo federal que têm projetos para 2010, que, como todos sabem, são Aécio Neves e José Serra. E o governo também não deve aumentar impostos para substituir a CPMF a fim de ter como dar curso a um crescimento acelerado da economia que pode favorecê-lo eleitoralmente.

A adaptação emergencial à falta da CPMF deveria começar pela suspensão de gastos novos previstos para 2008, tais como aumentos reais para servidores e salário mínimo. Um pente fino nas emendas parlamentares se justifica. Na regulamentação da emenda 29, que tramita no Senado, pode-se trocar o indexador de gastos para a saúde: em vez do PIB nominal, um índice de inflação. A economia está crescendo com força, o que facilita a diluição dos custos do ajuste.
É aí, pessoal, que a Folha finalmente abre o jogo. E desprezemos os tais "aumentos reais para servidores" públicos. O que a oposição teme são aumentos anuais fortes no salário mínimo como os que o governo vem dando nos últimos anos. Esses aumentos estão distribuindo renda fortemente. Melhorarão a posição do Brasil no índice de Gini e farão dezenas e dezenas de milhões de pessoas ficarem satisfeitas com o governo Lula e com medo de trazer de volta ao poder políticos que quando estiveram no poder achataram o salário mínimo e mantiveram intocada a concentração de renda. É esse o sentido de "controle de gastos públicos" que você leu lá em cima. E não nos esqueçamos do PAC, que será fortemente prejudicado com o fim da CPMF. E trata-se de um programa que está funcionando, logrando acelerar o crescimento, como se está vendo pelos números recentemente divulgados.

Mas é preciso, sobretudo, que governo e oposição voltem logo às negociações com espíritos desarmados e ambições mais elevadas. A maneira de solucionar esse impasse de modo duradouro é reformar a estrutura da tributação e do gasto público no Brasil. Nesse diálogo o governo poderia recuperar parte do que perdeu na CPMF. O imposto do cheque poderia ganhar status permanente, no lugar de tributos mais perversos. E poderia ser costurado um pacto suprapartidário a fim de conter as despesas de custeio, mediante um programa para aumentar a qualidade e a produtividade dos serviços que o Estado presta à população"
Finalmente, a Folha dá o recado de Serra e Aécio ao governo federal: "Conceda-nos meios de também produzirmos benesses ao eleitorado e deixaremos vocês implementarem parte do vosso projeto de forma calculada, de forma que um de nós não herde um país em dificuldades e nos atribuam a derrocada do país depois dos anos de ouro de Lula".
Os tucanos acham que podem calcular como fazer o país chegar "morno" a 2010. O problema é que a experiência que tivemos com eles no poder mostra que eles são ruins de cálculo. A fórmula que usaram para calcular o câmbio fixo custou o sangue dos brasileiros.
E tem mais uma coisinha que muita gente talvez não tenha percebido: diante da pregação de que o governo não aumente o salário mínimo, quem pagará a conta, como sempre, serão os mais pobres. A menos que Lula tenha peito e faça exatamente o contrário do que recomenda o jornal.
*
Leiam, logo abaixo, o excelente comentário da profa. Vera Pereira, vice-presidente do MSM, sobre o assunto deste post. Um texto curto, divertido, inteligente, que diz tudo e mais um pouco. Parabéns, Vera.
"Tô pasma: O Globo online tem uma enquete mostrando que "artistas, celebridades e leitores" aprovam o fim da CPMF. O Faustão, a Xuxa, a Ana Maria "Brega", que devem ganhar aí uns 100 milhões ou mais por ano, certamente pagam uma baba! Segundo um site de tributaristas, uma conta bancária que movimenta 100 mil por ano, sem a CPMF, deixará de recolher tão somente 380 reais por ano. Se movimentar um milhão, poupará R$ 3.800 anuais; 10 milhões produzirão uma folga de 38 mil ao ano. Fiz minhas contas e concluí que no mês passado paguei justos R$ 19,25. E foi um mês excepcional. Por ano, dá quanto? Uns duzentos e poucos. Procurei uma sandália numa boutique de Ipanema e custava mais do que isso. Desisti da sandália. Daquela.Comprei outra pela metade do preço. Taí, graças ao PSDB/DEM vou poder comprar uma sandália chique no fim do ano que vem. E graças a eles vou ter de continuar pagando mais de mil (MIL) reais por MÊS de Unimed. E são esses cínicos que querem eleger o presidente em 2010 ! "


Escrito por Eduardo Guimarães - http://edu.guim.blog.uol.com.br/

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