segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

MORRER COM OS FILISTEUS?* - por Uri Avnery - fonte: http://blogdobourdoukan.blogspot.com/


MORRER COM OS FILISTEUS?*

Uri Avnery**

Tradução Caia Fittipaldi


AS PALAVRAS mais famosas jamais pronunciadas em Ghaza foram as últimas palavras de Sansão (Juízes, 16, 30): “Que eu morra com os filisteus!”

Conforme a história que a Bíblia narra, Sansão empurrou os pilares centrais do templo dos filisteus e pôs abaixo todo o prédio, sobre os senhores dos filisteus, o povo de Ghazaa e sobre ele mesmo. O narrador resume a história: “Assim, Sansão fez mais mortos, ao morrer, do que fez em vida.”

É uma história de sofrimento, destruição e morte. Pode estar a ponto de repetir-se agora, só que com os papéis trocados: o templo pode estar para ser derrubado pelos palestinos (cujo nome é herdado dos filisteus, filistinos); e entre os mortos podem estar os senhores de Israel.

Mil anos depois de Sansão, na fortaleza de Massada, os judeus que defendiam a fortaleza escolheram o suicídio em massa, para não se render aos romanos. Ghazaa tornar-se-á uma Massada palestina?

O povo de Ghaza está preocupado. Os combatentes do Hamás preparam-se para entrar em ação. Os chefes do exército de Israel, ao mesmo tempo, estão preocupados e preparam-se também para entrar em ação.

Há meses, os líderes políticos e militares israelenses discutem esta “grande operação”: uma invasão em massa, na Faixa de Ghaza, para pôr fim ao lançamento de foguetes contra Israel.

Os chefes militares, que sempre anseiam por batalhas, não parecem muito famintos, desta vez. Não parecem nada famintos. Desejam evitar o combate, desta vez, a quase qualquer custo. Mas são fatalistas. Tudo, agora, depende da sorte, e a sorte é cega. Por exemplo, se amanhã um foguete Qassam cair sobre uma casa em Sderot e matar uma família inteira, haverá tal comoção em Israel que pode acontecer de o governo ser forçado a ordenar a invasão, por mais que a invasão não seja a escolha preferencial do governo.

A Faixa de Ghaza é um pesadelo para todos os estrategistas israelenses, políticos ou militares. A Faixa mede cerca de 40 km de comprimento, por 10 km de largura. Nestes 360 quilômetros quadrados de deserto calcinante, equivalentes a menos que o dobro da área de Washington DC, vivem 1,5 milhão de seres humanos, quase todos miseráveis, que nada têm a perder, comandados por um movimento religioso militante. (Na guerra de 1948, a comunidade de judeus na Palestina não chegava a 650 mil pessoas.)

Já há meses, os líderes do Hamás em Ghazaa estão estocando armas, que chegam à Faixa clandestinamente, pelos muitos túneis que atravessam a fronteira com o Egito (como entraram armas no país, às vésperas da guerra de 1948). É verdade: não têm artilharia nem tanques, mas já possuem armamento antitanque muito eficaz.

Conforme estimativas de nossas autoridades militares, a invasão da Faixa de Ghazaa pode custar a vida de uma centena de soldados israelenses e de milhares de civis e combatentes palestinos. O exército de Israel usará tanques e bulldozers blindados, e o mundo verá fotos terríveis – o mesmo tipo de fotos que nosso exército tentou evitar que fossem divulgadas e que provocaram reações, em todo o mundo, contra “o massacre de Jenin” em 2002, durante a operação "Defensive Shield".

Ninguém pode prever o desenrolar desta operação. Talvez a resistência palestina entre em rápido colapso, e não se confirme o número previsto de baixas no exército israelense. Mas também é possível que Ghazaa converta-se em algum tipo de Massada Palestina, em algum tipo de mini-Stalingrado. Esta semana, numa das incursões ‘de rotina’ do exército israelense, um foguete RPG (rocket-propelled grenade, granada lançada por foguete) perfurou um dos renomados tanques Merkava Mark-3, produzidos em Israel, e só por milagre não matou os quatro soldados que o conduziam. Num grande combate, não se pode confiar neste tipo de milagre.

Ali, o pesadelo é sem fim. Não se duvida que o exército vencerá a resistência, seja qual for o preço que os dois lados tenham de pagar, e mesmo que chegue a demolir quarteirões inteiros e à matança, à morte em massa. Mas... e depois?

Se o exército evacuar imediatamente a Faixa, a situação voltará ao que havia antes, e recomeçará o lançamento de foguetes Qassam (se chegar a ser suspenso, em algum momento). Assim, toda a operação terá sido inútil. Se o exército permanecer na Faixa – e que alternativa haveria? – será forçado a assumir a total responsabilidade por um regime de ocupação: terá de alimentar a população, oferecer serviços de assistência social, cuidar da segurança. E, isto, em contexto de guerra de guerrilhas ativa e vigorosa, o que fará da vida de todos, forças de ocupação e resistentes, um inferno.

Para quem tenha de ocupá-la, a Faixa de Ghaza sempre foi problema grave. O exército de Israel já ocupou e desocupou a Faixa três vezes – nas três vezes, a desocupação foi um alívio. "Ghazaa, goodbye, que alívio!" sempre foi slogan muito popular. Quando Israel fez a paz com os egípcios, eles declaradamente se recusaram a aceitar a devolução de Ghaza.

Não por acaso, as duas intifadas começaram em Ghaza. (A primeira, há exatos 20 anos esta semana, eclodiu quando um tanque israelense colidiu com dois carros que transportavam trabalhadores palestinos, colisão que os palestinos interpretaram como proposital, deliberada, pelos israelenses. A segunda eclodiu depois da visita-provocação que Ariel Sharon fez ao Monte do Templo, quando policiais israelenses atiraram contra e mataram muçulmanos que participavam de protestos violentos.)

O próprio movimento Hamás, que hoje festeja o 20º aniversário, também nasceu – não por acaso – em Ghaza.

Não surpreende que nossos chefes militares encolham-se ante a iminência de ter de ocupar a Faixa de Ghazaa. Não lhes interessa a idéia de fazerem o papel dos senhores dos filisteus, na história do Sansão palestino.

O PROBLEMA é que ninguém sabe como desatar o nó górdio que Ariel Sharon deixou atado, ele, o mestre atador de nós górdios.

Sharon deu início ao “Plano de Separação” ("Separation Plan") – uma das maiores tolices nos anais deste Estado, tão rico em tolices.

Como todos lembramos, Sharon demoliu colônias na Faixa, sem qualquer diálogo com os palestinos e sem devolver os territórios à Autoridade Palestina. Não deu aos habitantes da Faixa qualquer possibilidade de levarem vida normal. Em vez disto, converteu o território numa gigantesca prisão. Todas as conexões com o mundo exterior foram cortadas – a marinha de Israel patrulhava as saídas por mar, a fronteira com o Egito foi completa e eficazmente fechada, o aeroporto foi deixado em ruínas, evitou-se, pela força, que se construísse um porto. A prometida “passagem segura” entre a Faixa e a Cisjordânia foi hermeticamente bloqueada, todas as vias para entrar e sair da Faixa ficaram sob total controle israelense, abertas e fechadas arbitrariamente. Desapareceu completamente a possibilidade de trabalho para dezenas de milhares de habitantes da Faixa que trabalhavam em Israel – e destes empregos dependia a sobrevivência de praticamente todos os habitantes da Faixa.

O capítulo seguinte foi inevitável: o Hamás assumiu o controle militar em toda a Faixa, sem que nenhum dos desamparados políticos em Ramállah pudessem intervir. Da Faixa, lançavam-se foguetes Qassam e morteiros sobre as cidades e vilas israelenses próximas, sem que o exército israelense pudesse contê-los. Um dos mais poderosos exércitos do mundo, com o armamento mais sofisticado, não consegue neutralizar uma das armas mais primitivas que há.

Assim se construiu um círculo vicioso: os israelenses sufocam a população na Faixa, os combatentes de Ghazaa bombardeiam a cidade israelense de Sderot, o exército israelense reage e mata combatentes e civis palestinos, habitantes de Ghazaa lançam morteiros contra os kibbutzim, o exército israelense faz incursões diárias e diariamente, dia e noite, mata combatentes palestinos, o Hamás introduz armamento antitanque mais efetivo – e não há solução à vista.

UM CIDADÃO ISRAELENSE comum não tem idéia do que está acontecendo na Faixa de Ghazaa. A desconexão é total. Nenhum israelense pode entrar na Faixa, praticamente nenhum palestino pode sair.

A maioria dos israelenses vê as coisas do seguinte modo: saímos de Ghazaa. Destruímos todas as colônias que havia lá, mesmo que isto nos tenha custado uma profunda crise nacional. E o que aconteceu? Os palestinos continuam nos agredindo e atiram contra nós, do lado de lá da Faixa, e a vida em Sderot é um inferno. Não nos resta outra saída, além de nós também convertemos em absoluto inferno a vida deles, até que parem de atirar em nós.

Esta semana ouvi um depoimento de uma das fontes mais confiáveis que há em Ghazaa – o Dr. Eyad Sarraj – psiquiatra muito conhecido e ativista de movimentos pelos Direitos Humanos e pela paz. Eis parte do que ele contou a um pequeno grupo de ativistas israelenses pela paz:

Israel bloqueia todas as importações da Faixa, exceto uma meia dúzia de itens básicos. Eram usados 900 caminhões, diariamente, para transportar produtos importados e exportados para e da Faixa de Ghazaa; hoje são apenas 15. Por exemplo: sabão não entra.

A água local não é potável. Não entra água engarrafada. Israel não permite que se importem bombas para água. O preço dos filtros de água subiu de 40 para 250 dólares, e não há peças de reposição para todos os filtros. Só os muito ricos podem comprar filtros. Mas, sim, deixam entrar cloro.

É impossível importar cimento. Se surge uma rachadura numa casa, é impossível reconstruir. A campanha para construir o hospital infantil está suspensa. Não há peças de reposição de nenhum tipo. Um instrumento médico que quebre não pode ser consertado nem trocado. Não há incubadoras para recém-nascidos nem equipamento para diálise.

Os doentes graves não encontram hospital – nem em Israel nem no Egito nem na Jordânia. As poucas autorizações só aparecem depois de muita espera, muitas vezes mortal. Em vários casos, os doentes são condenados à morte.

Os estudantes não podem chegar às suas universidades no exterior. Cidadãos estrangeiros que estejam em visita à Faixa não podem sair, se tiverem identidade palestina. Palestinos contratados para trabalhar no exterior não obtêm visto de saída. Alguns palestinos são autorizados a passar por Israel a caminho do Egito, mas não obtêm visto para entrar no Egito e têm de voltar a Ghazaa.

Praticamente todas as empresas foram fechadas e os empregados demitidos, por falta de matérias-primas. Por exemplo, a fábrica da Coca Cola já fechou. Depois de 60 anos de ocupação – primeiro pelos egípcios, depois pelos israelenses –, praticamente nada é produzido na Faixa, além de laranjas, morangos, tomates.

Os preços chegam à estratosfera – multiplicados por cinco, por 10. A vida hoje é muito mais cara em Ghazaa do que em Telavive. O mercado negro expande-se.

Como vivem as pessoas? Nas grandes famílias, uns ajudam os outros. Parentes mais ricos sustentam os demais. A UNRWA (United Nations Relief and Works Agency, Agência de Atendimento Humanitário das Nações Unidas) fornece itens básicos de alimentação, distribuídos entre os refugiados, que são a maioria da população.

HÁ ALTERNATIVA que não seja a invasão massiva? Claro que há. Mas exige imaginação, coragem, capacidade e prontidão para agir contra os padrões estabelecidos.

É preciso obter, imediatamente, um cessar-fogo. Tudo indica que também o Hamás está pronto para isto, desde que o cessar-fogo seja geral: os dois lados têm de suspender todas as ações militares, inclusive os ataques por “bombas inteligentes” e o lançamento de Qassams e morteiros. Os postos de fronteira devem ser abertos à livre circulação de produtos, nas duas direções. A passagem entre a Faixa e a Cisjordânia deve ser aberta, e aberta deve ser também a fronteira entre a Faixa e o Egito.

Uma distenção na situação geral encorajará os dois grupos que competem pelo governo da Palestina – o Fatah na Cisjordânia, e o Hamás em Ghazaa – a iniciar um novo diálogo, sob os auspícios do Egito ou da Arábia Saudita, para ultrapassar o despenhadeiro e construir uma liderança nacional palestina unificada, com autoridade para assinar acordos de paz.

Em vez do grito de Sansão “Que eu morra com os filisteus!”, ouçamos as palavras de Dylan Thomas: And death shall have no dominion! “E que não nos domine a morte!”

**Uri Avnery é membro fundador do Gush Shalom (Bloco da Paz israelense). Adolescente, Avnery foi combatente no Irgun e mais tarde soldado no exército israelita. Foi três vezes deputado no Knesset (parlamento). Foi o primeiro israelense a estabelecer contato com a liderança da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) em 1974. Foi durante quarenta anos editor-chefe da revista noticiosa Ha'olam Haze. É autor de numerosos livros sobre a ocupação israelense da Palestina, incluindo My Friend, the Enemy (Meu amigo, o inimigo) e Two People, Two States (Dois povos, dois Estados).

* To die with the Philistines?, 15/12/2007, em Gush Shalom, em http://zope.gush-shalom.org/index_en.html. Copyleft.

Tradução de Caia Fittipaldi

Reprodução autorizada pelo autor e pela tradutora.
http://blogdobourdoukan.blogspot.com/

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