terça-feira, 4 de dezembro de 2007

O fim da picada - Vai nevar no Ibirapuera - por Flavio Aguiar - fonte: http://www.agenciacartamaior.com.br

O fim da picada

Em dezembro vai nevar no Parque Ibirapuera, em São Paulo. Mudança no clima? Não, é de novo o clima mental que se recusa a se desfazer do passado e se abrir para o presente. É a nossa “élite” de visão colonizada, a mesma capaz de acolher a palavra de um rei europeu mandando um chefe de estado latino-americano calar a boca.

Numa das aulas de alemão que estou freqüentando em Berlim, o simpático professor comentou que “não havia neve no Brasil”. Tanto quanto meu alemão ainda pequerrucho permitia, corrigi a informação, como sulino que sou. Disse que havia sim neve no Brasil, embora esporádica e restrita a um Brasil relativamente pouco conhecido pela maioria dos europeus, o do paralelo 30 e arredores.

Mal sabia eu o que me esperava agora de retorno ao Natal paulistano. No primeiro fim de semana de dezembro inaugura-se a decoração de Natal no Parque Ibirapuera. Trata-se de gigantesca árvore de Natal, como sempre iluminada à noite. E leio, estarrecido, a informação de que todas as noites, durante dez minutos, canhões especiais despejarão neve artificial sobre a árvore.

Lembrei-me dos pinheiros natalinos decorados com algodão para imitar a neve do hemisfério norte nesta época do ano. Patópolis é o ideal de um certo Brasil, de uma certa élite do nosso país. Antes do fato “accompli”, penso que alguém imaginou isso. Levou para uma mesa de discussão, na esfera pública. Houve argumentações, melhorias foram feitas ao projeto, até chegarmos a essa imagem de... De quê, mesmo? De lugar nenhum, de um não-lugar, daquele eternamente “fora de nós” para onde jogamos nosso ponto de vista quando não queremos reconhecer a nossa identidade.

Essa árvore de natal decorada com neve artificial... Artificial? Não! A neve espalhada a canhonaços em pleno verão brasileiro é “de verdade”, é fabricada sim, “made in Brazil”, mas pouco importa. É a democracia cultural que nossa élite imagina: trazer aos brasileiros uma paisagem de sonho, que poucos podem conhecer...

Sempre desconfio que a imagem eufórica do “país tropical” tem uma outra face disfórica, aquela que a gente sempre tem quando não se suporta o que de fato se é. Essa árvore nevada em pleno verão é uma imagem tributária daquela teoria de que nossa desgraça é estar ao sul do Equador, assim como nossa desgraça foi sermos um país de tradição ibérica e católica, ao invés de protestante e anglo-saxã, visão que conta até com a bênção de antropólogos e sociólogos.

Essa árvore, que é o kitsch do kitsch do kitsch, ela se afasta de tudo aquilo que podemos ou queremos ser de fato, ela é uma negação do futuro, do presente, ela se refugia num passado de visão colonial, que é o que Brasil, a duras penas, está abandonando.

Podemos achar que um mandatário como Hugo Chávez exagera na retórica. Mas ver gente, como se viu e leu na imprensa brasileira, saudando o “porque no te callas?”, dirigido por um rei europeu a um mandatário latino-americano, é de doer na alma. Mas há um lastro cultural para isso, expresso nesta árvore cheia de neve em pleno verão paulistano. Esse lastro fala de uma visão sempre desfocada de nós mesmos, de não reconhecimento quando não de ódio ou desprezo diante do que de fato somos. Esse lastro fala de um sentimento que habita corações povoados por calendários (folhinhas, como se dizia antigamente) impressos na Suíça, com paisagens invertidas em relação às do nosso hemisfério sul.

Até mesmo corações de esquerda enveredam por esses sentimentos, querendo ver em nossas vicissitudes históricas imagens de acontecimentos outros, sem perceber nelas a especificidade ou mesmo a originalidade que contém, para o bem e para o mal. Assim se fala, por exemplo, das missões jesuíticas do então chamado “Paraguai”, do século XVIII, como uma antecipação do comunismo do século XX. Ou descreve-se a comunidade de Canudos como a “nossa Comuna de Paris”. No mesmo diapasão especula-se, em outra ponta, se Hugo Chávez, para retomar o exemplo venezuelano, é um Hitler, um Stálin, ou até mesmo um Lênin condutor dos povos...

Essa árvore de Natal, por melhores que tenham sido as intenções em torno da mesa onde ela foi planejada, é a imagem que na verdade nos quer calar. Quer nos roubar o dom da multiplicidade, ajuda a nos ver numa esquizofrenia entre o “tropical abençoado por Deus” e a saudade de uma página de calendário cheia de neve que, na verdade, não existe em lugar nenhum, em nenhum hemisfério norte real, talvez, quem sabe, em Patópolis, em policromia tão artificial quanto essa neve que se jogará sobre a iluminação no Ibirapuera.

Bem mais difícil é reconhecer o Brasil como ele é: um espaço múltiplo de identidade e de identidades múltiplas, contendo florestas, pantanais, planaltos, escarpas, rios, muitos rios e lagos e lagoas, um litoral extenso, e numa de suas pontas um começo (ou fim?) de pampa. Bem mais difícilo é reconhecer que o litoral do Brasil é belo extenso, e merece a admiração do mundo inteiro, mas que o Brasil não é um país litorâneo. E que o Brasil é um estuário de paisagens, de climas diferenciados, de culturas, de etnias, de origens e futuros conflitantes, e que é nessa paisagem que temos de fazer escolhas que nos construirão enquanto cultura voltada para a multiplicidade e para a convivência. Para a democracia feita de nós, em todos os sentidos. O “nós” do “nosso povo”, aquele com uma multiplicidade de cores e de caras, e dos “nós” que temos de desatar para termos um futuro “nosso”, não emoldurado pelo que jamais seremos, não por incapacidade, mas simplesmente porque nossas especificidades e nossas pluralidades são as nossas, e não “outras”.


Flávio Aguiar é editor-chefe da Carta Maior.


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