De como nos roubaram a bomba*Uri Avnery
FOI COMO uma bomba atômica, detonada em Israel.
A terra tremeu. Os nossos líderes políticos e militares, todos eles, em estado de choque. As manchetes urraram de fúria.
O que houve?
A mais completa catástrofe: a comunidade de inteligência dos EUA, 16 diferentes agências, chegou a um veredito unânime: já em 2003, os iranianos suspenderam completamente os esforços para produzir a bomba nuclear e, depois, nunca mais voltaram a tentar. Ainda que algum dia mudem de idéia, precisarão de no mínimo cinco anos de trabalho para chegar lá.
NÃO DEVERÍAMOS festejar muito? As massas, em Israel, não deveriam dançar nas ruas, como em 29 de novembro de 1947, há 60 anos? Afinal de contas… fomos salvos!
Até esta semana, ouvimos regularmente que – a qualquer instante, agora mesmo! – os iranianos terão uma bomba que ameaça nossa própria existência. Exatamente isto. Nada menos do que isto. Máhmoud Ahmadinejad, o novo Hitler do Oriente Médio, que anuncia a cada segundo que Israel será varrido do mapa, estaria a um dia de fazer acontecer sua própria profecia.
Uma pequena bomba nuclear, uma bombinha, como as lançadas sobre o Japão, bastaria para apagar do mundo toda a empreitada sionista. Detonada na Praça Rabin, em Telavive, o centro econômico, cultural e militar de Israel viraria cinza, com centenas de milhares de judeus. Um segundo Holocausto.
E, de repente, sem mais nem menos... a qualquer instante... nada de bomba! O maldito Ahmadinejad pode ameaçar quanto queira, que não conseguirá nos ferir. É razão para celebrar.
Mas, então... por que a coisa soou como um desastre nacional?
QUALQUER PSICÓLOGO de dois neurônios (como eu) dirá que os judeus habituaram-se à ansiedade. Depois de centenas de anos de perseguições, expulsões, inquisição e pogroms e então o Holocausto, temos luzinhas vermelhas na cabeça, que se acendem ao menor sinal de perigo. Então, nos sentimos em casa. Sabemos o que fazer.
Mas quando as luzes permanecem apagadas e não se vê sinal de perigo no horizonte, sentimos uma espécie de suspeita vaga. Algo de errado há. Talvez a lâmpada esteja queimada. Talvez seja mesmo uma armadilha!
Não houve nenhum consolo, na nova situação, por menor que fosse. Parece que, desaparecido o imediato perigo de aniquilação, sentimo-nos sós, entregues, sós, a nós mesmos.
Este é outro traço específico dos judeus: encaramos o mundo inteiro, sozinhos. Como nos dias do Holocausto: todos os Goyim desertaram, nos abandonaram. Cara à cara com o monstro iraniano que ameaça devorar-nos, cá estamos nós, sós, só nós.
Toda a imprensa israelense repete isto, em uníssono, como orquestra que dispensa maestro porque já decorou a música.
Sim, é verdade, há outros povos que extraem prazer da solidão. Não esqueço um cartaz britânico, que andava em todas as nossas paredes na Palestina, naqueles dias negros, depois de os nazistas invadirem a França, quando a Grã-Bretanha ficou só, na guerra. Sob o rosto sombrio de Winston Churchill, o slogan orgulhoso: "Alright then, Alone!"[1][1]
Entre nós, contudo, a coisa converteu-se quase em ritual nacional. Como costumávamos cantar, nos bons velhos tempos de Golda Meir: "O mundo está contra nós / Esta história é velha / Quem estiver contra nós / Que vá pro inferno…" Naquele tempo, um dos grupos que oferecia entretenimento às tropas chegou a converter este ‘hino’ em espetáculo de dança folclórica.
Em anos mais recentes, constituiu-se uma ampla coalizão contra o Irã. A bomba iraniana foi convertida em coração de um consenso internacional, liderado pelos EUA, Reis do Mundo. Com o consentimento dos cinco membros permanentes, o Conselho de Segurança da ONU impôs sanções a Teerã.
Agora, aí, diante dos nossos olhos, esta coalizão faz-se em pedaços. O presidente Bush gagueja. Adeus, desculpas para atacar militarmente o Irã, sonho do governo de Israel e dos neoconservadores. Adeus, também, o pretexto para sanções mais duras. Sabe-se lá! Amanhã, talvez, até as fracas sanções ainda existentes sejam abolidas.
A PRIMEIRA reação dos líderes israelenses foi vigorosa e decidida: negaram tudo.
O relatório norte-americano estaria errado, simplesmente, como proclamou toda a imprensa. Baseado em informes falsos. Nossa inteligência, que dispõe de dados muito melhores, provará que a bomba existe, que está a caminho.
Será? Toda a inteligência do Mossad é automaticamente transferida à CIA. Os dados do Mossad são parte da massa de dados em que se baseou o relatório norte-americano. E vale lembrar que só se publicaram 3% das informações que há no documento completo.
Então... as agências norte-americanas de inteligência teriam mentido deliberadamente. Não haveria dúvidas de que haveria motivos políticos sórdidos, que justificariam os relatórios, sempre infalíveis. Talvez quisessem encobrir os relatórios falsos em que o presidente Bush baseou-se para justificar a invasão do Iraque. Hoje subestimariam... o que ontem superestimaram. Talvez quisessem vingar-se de Bush e aproveitam o momento em que o ‘pato manca’ – o governo chega ao fim. Ou, então, estar-se-iam adaptando à opinião pública dominante, que não tolerará outra guerra. Além do quê, é claro, todo mundo, eles todos, são anti-semitas.
Ainda que os agentes da inteligência dos EUA estejam convencidos, ingenuamente, de que o Irã suspendeu a construção da bomba, isto só mostra o quanto são simplórios. Não lhes passa pela cabeça que o Irã possa enganá-los. Quem, melhor que nós, saberia como é fácil esconder uma bomba atômica e enganar o mundo inteiro? Afinal... fizemos isto por tanto tempo!
Mas nada disto altera o fato: o relatório empurra a política norte-americana para outro rumo e muda toda a constelação internacional.
A invasão do Irã, prevista para ser o evento definitivo de 2008, passou a ser, pelo menos por enquanto, um não-evento.
QUAIS OS RESULTADOS disto, no que tenha a ver com Israel? Por que nossos líderes estão em estado de choque, desde a publicação do relatório?
A possibilidade de um ataque militar independente, de Israel contra o Irã, sumiu. Israel não pode ir à guerra sem o apoio incondicional dos EUA. Tentamos uma vez – na Guerra do Sinai, em 1956 – e o então presidente Dwight D. Eisenhower chutou-nos o traseiro. Desde então, temos tomado muito cuidado; não podemos ir à guerra (qualquer guerra), sem as bênçãos dos EUA.
Para os serviços militares e de inteligência, o relatório é completo desastre também por outra razão. A bomba iraniana era personagem importantíssima, também, na luta anual que aqueles serviços travam para defender a massiva fatia que lhes cabe no bolo do orçamento nacional.
Para os demagogos de direita, o efeito é ainda mais calamitoso. Binyamin Netanyahu construiu toda sua estratégia baseada na ameaça iraniana, na esperança de entrar, montado na bomba, diretamente no gabinete de Primeiro Ministro.
Além do mais, quando a questão iraniana esfria, a questão palestina esquenta. É verdade, sobretudo, em Washington DC. O presidente Bush está em dificuldades, seus fiascos no Afeganistão e no Iraque não saem das manchetes. Todo e qualquer esforço para instalar um governo estável no Iraque, com sua maioria xiita, depende do apoio do governo (xiita) do Irã. O sonho de Bush, de cair como raio sobre o Irã, para assim deixar sua marca na história, está virando fumaça.
O que pode Bush fazer, para deixar algum legado positivo, qualquer um? A alternativa-padrão é a paz entre israelenses e palestinos. Talvez agora ele passe a apoiar Condoleezza, a coitada, mais decididamente. Talvez o próprio Bush envolva-se mais diretamente. Fato: Bush visitará Israel em breve, pela primeira vez desde que assumiu a Casa Branca.
Sim, é verdade que este esforço não tem muitas chances de sucesso, mas as pessoas em Jerusalém, sim, estão preocupadas. Não faltaria mais nada! Bush comportar-se como Jimmy Carter, o anti-semita, que dobrou o braço de Begin e obrigou-o a fazer a paz com o Egito!
Então... O que fazer? Pode-se pensar em instruir os diplomatas israelenses para que aumentem os esforços para convencer outros governos de que nada mudou, que sempre se pode combater a bomba iraniana, mesmo que a bomba não exista. Só não esqueçam de avisar os russos e os chineses! Todos os governos, em todo o mundo, estão gostando de verem-se livres das pressões de Bush – todos, menos a dupla contente, Nicolas Sarkozy e Angela Merkel, os neo-poodles da Casa Branca, agora que Tony Blair foi-se.
A NOVA SITUAÇÃO impõe um espinhoso dilema a Ehud Olmert.
Voltando de Annapolis, Olmert andou dizendo coisas estranhas. Se “a solução dos dois Estados fracassar”, disse ele, “o Estado de Israel está acabado”. Ninguém, no campo da paz, jamais se atreveu a ir tão longe.
Olmert acredita no que disse, ou está apenas lançando ‘balões de ensaio’, falando para a mídia? Esta é a pergunta que domina hoje o discurso, em Israel. Em outras palavras: Olmert tenta apenas ganhar tempo, ou está disposto, mesmo, a trabalhar para um acordo de paz?
Tudo sugere que Olmert não tem saída, seja para que lado for. Se tentar levar avante a primeira fase do Mapa do Caminho, e demolir alguns postos avançados das colônias, enfrentará não apenas a oposição determinada dos colonos e seus apoiadores, e a oposição silenciosa (mas altamente efetiva) dos militares, como enfrentará também a obstrução que será feita pelos seus colegas de governo. Antes de que seja demolido o primeiro posto avançado, terá ruído a coalizão de governo de Olmert.
Olmert não conta hoje com qualquer outra possibilidade de coalizão. Ehud Barak nunca desiste de tentar derrotá-lo pelo flanco da direita e não merece confiança, em situação de crise. O Partido Trabalhista é um corpo sem princípios, sem espinha dorsal, um caos. O partido Meretz, reduzido, conta com apenas cinco representantes no Parlamento, quatro dos quais disputam entre eles a liderança do partido. Os membros das facções árabes (assim chamados, genericamente, apesar de um deles ser judeu) são vistos como marginais, e nenhum governo “sionista” aceitaria aparecer abertamente como dependente do apoio deles. E no próprio grupo de Olmert há vários representantes da extrema direita que sempre obstruirão qualquer esforço de paz.
Nesta situação, a tendência natural de um político como Olmert é nada fazer, lançar pronunciamentos à direita e à esquerda (em ambos os sentidos) e tentar ganhar tempo.
Esta semana, o governo anunciou planos para construir 300 novas casas na odiosa colônia de Har Homa, próxima de Jerusalém. Para alguém que, como eu, passou dias e noites em manifestações contra a construção desta específica colônia, a notícia é amarga, muito amarga. Nada, aí, sugere mudança para melhor.
Por outro lado, ouvi idéias interessantes, saídas de um dos círculos mais próximos de Olmert. Diz-se ali que, sabendo que perderá poder, Olmert talvez pense: se tenho de cair, por que não entrar para a história como alguém que se sacrificou pessoalmente, em nome de um princípio elevado, em vez de deixar-me evanescer, como um político inútil, insosso, inodoro, sem refinamento?
Se não encontrar outra saída, é possível que opte por esta solução – e parece que seu círculo familiar mais íntimo tem insistido nisto.
Pessoalmente, eu avaliaria esta possibilidade como “pouco provável” – mas coisas estranhas têm acontecido.
Seja como for, talvez seja hora de as forças da paz deixarem de lado sua tradicional e compreensível reserva, para tentar influenciar a opinião pública, de modo que ela ajude a empurrar Olmert para este rumo.
Para um lado ou para outro, uma coisa é certa: Ahmadinejad, este desgraçado, nos ferrou, outra vez. O cara roubou de nós o nosso bem mais precioso: a Ameaça da Bomba Iraniana.
* How They Stole The Bomb From Us, 8/12/2007, original, em inglês, em Gush Shalom, em http://zope.gush-shalom.org/home/en/channels/avnery/1197157608. Tradução de Caia Fittipaldi. COPYLEFT. Publicação autorizada pelo autor e pela tradutora.
[1][1] Aproximadamente, “Estamos sós. Que seja!”
De como nos roubaram a bomba* - por Uri Avnery - fonte: http://blogdobourdoukan.blogspot.com/
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