Os bilhões que nos tomaram
O debate sobre a Proposta de Emenda Constitucional (PEC 50), que trata da prorrogação da CPMF, inclui um assunto que não tem merecido a devida atenção da imprensa. O mesmo instrumento legislativo que prorroga a CMPF também estende, até o final de 2011, a Desvinculação das Receitas da União (DRU). Ela permite que 20% da arrecadação tributária da União sejam alocados sem levar em conta os artigos da Constituição e as leis que vinculam receitas públicas a determinadas despesas, fundos ou órgãos. Na prática, os recursos são transferidos das políticas sociais para realização do superávit primário — destinado ao pagamento de juros e amortização da dívida.
A vinculação de recursos para as políticas sociais é uma importante conquista da Constituição de 1988. A década de 1980 foi marcada pela luta contra a ditadura e pelas reivindicações e pressões dos trabalhadores e movimentos sociais. A convocação de uma Assembléia Constituinte, eleita em 1986, permitiu que diversas demandas de expansão dos direitos sociais e políticos fossem incorporadas à Carta Magna. Para que fossem efetivados na prática, surgiu a idéia da vinculação de receitas.
Era uma forma de enfrentar a tradição fiscal perversa do Brasil, onde a aplicação dos recursos do orçamento público sempre priorizou a acumulação do capital, submetendo as políticas sociais à lógica econômica. No período da industrialização (1937-1980), por exemplo, os recursos do fundo previdenciário foram canalizados para investimentos nas empresas estatais e na construção da infra-estrutura no país. Vincular recursos significava, portanto, impedir esta prática, assegurando que parte da receita fosse obrigatoriamente destinada à área social e permitisse universalizar direitos importantes, como os ligados à Saúde e Educação.
Os fundos sociais foram criados neste processo. Além disso, tinham um papel democratizador. [1] Buscou-se um modelo em que os recursos reservados para executar certas políticas fossem administrados por conselhos de composição paritária. Neles, representantes governamentais e não-governamentais somam-se para acompanhar e fiscalizar políticas públicas.
Por terem recursos originados na cobrança de taxas ou contribuições especialmente criadas para alimentá-los, estes fundos são formados por fluxos financeiros como lucros, receitas brutas, faturamentos, folhas de pagamentos. Têm em comum uma relativa estabilidade na captação de recursos, deixando de depender de escolhas arbitrárias por parte do governo de plantão.
Criada por recomendação do FMI, desvinculação pode completar 17 anos, se prorrogada pela PEC 50
A desvinculação desses recursos, com a utilização de instrumentos como a DRU, caminha na direção oposta à das conquistas sociais da Constituição. Tudo começou nos peparativos para a adoção do Plano Real, no início dos anos 1990. A política fiscal foi, como se sabe, parte determinante das decisões macroeconômicas que deram sustentação ao Plano. Seguiu-se à risca as recomendações dos organismos multilaterais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI). Uma das estratégias utilizadas foi a criação de mecanismos de desvinculação orçamentária. O objetivo era realocar recursos dos fundos públicos para livre aplicação pelos condutores das políticas econômicas.
Em 1993, os economistas formuladores do Plano Real, defendem, a pretexto de garantir o equilíbrio das contas públicas, a criação de um “Fundo Social de Emergência (FSE)”. Tal fundo acabou sendo instituído por meio da Emenda Constitucional de Revisão 01, de 1994, que permitiu desvincular 20% dos recursos arrecadados dos tributos, independentemente do seu destino orçamentário.
A desvinculação prosseguiu, nos exercícios financeiros de 1994 e 1995, por meio do Fundo de Estabilização Fiscal (FEF) [2]. Logo a seguir, veio a Desvinculação das Receitas da União (DRU) [3]. Instituída pela Emenda Constitucional 27, ela determinou a desvinculação de 20% da arrecadação de impostos e contribuições sociais até o final de 2003.
Dando seqüência à mesma política fiscal do governo anterior, sob alegação de que a “economia brasileira ainda requeria cuidados”, a equipe econômica do primeiro mandato do presidente Lula seguiu a mesma trilha. A Emenda Constitucional 42 (reforma tributária) determinou a prorrogação da DRU até 2007. O que o Congresso discute hoje é estender mais uma vez este período, agora até 2011. Seriam, portanto, dezessete anos de descumprimento do que determina a sentido geral da Constituição.
Alimentar o capital rentista, como recomendam os dogmas do capitalismo contemporâneo
Na América Latina, os fundos "sociais" de emergência seguem recomendações do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Destinam-se a ações meramente emergenciais, temporárias, de combate à pobreza e para financiar os projetos e programas, públicos ou não-governamentais, destinados aos pobres “estruturais” e aos “novos pobres” afetados pelo ajuste econômico neoliberal. [4] A experiência brasileira mostrou, contudo, que o FSE não tinha nada de “social” e muito menos de “emergência”, pois o fundo e seus sucessores (FEF e DRU) assumem a função estratégica de desviar recursos da área social para o interior do orçamento fiscal à disposição do ministério da Fazenda para o equilíbrio das contas públicas, contribuindo para a “estabilidade econômica”, assegurando a “bolsa mercado” dos rentistas no Brasil.
No capitalismo contemporâneo os juros da dívida pública pagos com recursos públicos, beneficiam os chamados “investidores institucionais”, um conceito que engloba fundos de pensão, fundos coletivos de aplicação, sociedades de seguros e bancos que administram sociedades de investimentos. O capital que se multiplica por meio de juros está localizado no centro das relações econômicas e sociais da atualidade. [5]
No Brasil, segundo dados da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), os juros da dívida pública significaram a transferência de R$ 151,1 bilhões para o setor financeiro da economia. Estima-se que 80% destes juros sejam destinados a 20 mil famílias de rentistas [6], que vivem dos recursos do orçamento público brasileiro. Enquanto isso, os benefícios pagos no âmbito da seguridade social — incluindo o pagamento de aposentadoria, pensões e benefícios da assistência social — responderam por 20,2% do orçamento de 2006 (R$ 161,7 bilhões). Porém, destinam-se a um universo centenas de vezes maior, beneficiando 25 milhões de pessoas.
Dezenas de bilhões retirados da Previdência, Saúde, Assistência Social e Educação
A Dívida Líquida do Setor Público (DLSP) cresceu quase cinco vezes em valores correntes, no período de 1994 a 2002. Em termos reais, praticamente triplicou. A soma de juros incidentes sobre a DLSP na última década equivale a um PIB médio no período. Para fazer frente a tamanha transferência de riqueza para os aplicadores em títulos públicos — principalmente o capital financeiro —, o governo teve de comprometer parcela considerável dos recursos que arrecada, deixando de realizar os gastos necessários nas políticas sociais. A partir de 1999, por força dos acordos com o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Brasil comprometeu-se a produzir elevados superávits primários na execução dos orçamentos anuais.
As políticas sociais mais prejudicadas pelo mecanismo da DRU são as da Seguridade Social e da Educação. Vejamos alguns números. Após determinação da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2005, a Secretaria do Tesouro Nacional (STN) passou a explicitar o montante de recursos desvinculados da Seguridade Social. Em 2005, foram desvinculados R$ 32 bilhões da Seguridade Social — portanto, das políticas de Saúde, Previdência e Assistência Social. Em 2006, os dados divulgados pela STN indicam que as receitas desviadas da Seguridade Social, por meio da DRU, alcançaram de R$ 33,8 bilhões. Portanto, em apenas dois anos foram retirados R$ 65,8 bilhões. Esses recursos entraram nos cofres públicos para serem aplicados nas políticas de Assistência Social, Previdência e Saúde, mas foram canalizados para o orçamento fiscal, principalmente a composição do superávit primário. Até setembro de 2007, já foram desviados das políticas da seguridade social, por meio da DRU, R$ 29 bilhões.
Na Educação estima-se que os mecanismos de desvinculação de recursos (FSE, FEF e DRU) retiraram, em 12 anos e em valores corrigidos pela inflação, R$ 72 bilhões. [7] Apenas no período de vigência da DRU (2000 a 2007), R$ 45,8 bilhões deixaram de ser aplicados na Educação. Somente neste ano, o ministério da Educação (MEC) deixou de contar com R$ 7,1 bilhões. O mecanismo é muito simples: a Constituição determina que 18% dos recursos arrecadados em impostos federais sejam aplicados em Educação, mas esse valor é calculado após a retirada dos recursos da DRU. Por conseqüência, ao invés dos 18% previstos na Carta Magna são aplicados somente 13% na educação.
Por meio da DRU, portanto, ocorre uma perversa alquimia, [8] que transforma os recursos destinados às políticas sociais em dinheiro usado para compor o superávit primário e, por conseqüência, pagar juros da dívida pública.
Encerrar a DRU para recompor políticas sociais e assegurar transparência nas contas públicas
Com aprovação da DRU, a partir de 2000, também não é mais possível à sociedade civil organizada, aos pesquisadores, enfim à população em geral, visualizar explicitamente os recursos que são desvinculados no orçamento. A DRU não está vinculada a nenhum fundo, ainda que somente contábil, como era o FEF. Essa regra impossibilita distinguir, na execução orçamentária, qual parcela de recursos é originária de impostos gerais, e qual é referente à desvinculação de recursos, já que ambas agora compõem a mesma fonte de Recursos Ordinários. Essa situação fere os princípios orçamentários da discriminação e da clareza. [9]
Historicamente, os recursos fiscais no Brasil foram usados para subsidiar e financiar a acumulação de capital, enquanto os recursos contributivos, cobrados na folha de salários, financiavam o social. Ao contrário dos países que financiam seus Estados de Bem-Estar Social com recursos fiscais — em geral, impostos diretos —, o Brasil permanece com arrecadação tributária centrada em tributos indiretos, significando que os mais pobres pagam proporcionalmente mais tributos em relação à sua renda do que os mais ricos. Além disso, no passado houve a destinação de recursos dos fundos previdenciários para investimentos produtivos, priorizando o fomento de setores de infra-estrutura por meio de crédito subsidiado e, em geral, na contramão de assegurar solvência ao sistema do sistema previdenciário e da garantia dos interesses dos trabalhadores contribuintes.
O Brasil não pode permanecer preso as amarras do ajuste fiscal-financeiro permanente. A subordinação do social ao econômico sempre foi a regra no país, e a estratégia de ajustamento dos gastos governamentais, a partir dos anos 1990, tem sido muito mais favorável aos rentistas e à finaceirização da riqueza. Isso acontece em prejuízo da produção, do emprego e da renda nacional. Tudo isso torna urgente a garantia de recursos para as políticas sociais, assegurando as vinculações diretas entre o financiamento previsto na Constituição e sua aplicação nos gastos sociais. Nesta perspectivas a DRU não deveria ser renovada. Seu fim seria um bom começo para acabar com a enorme de transferência de renda que está curso no Brasil, dos mais pobres, dos trabalhadores e dos setores produtivos em favor dos rentistas.
Mais
Evilásio Salvador é colunista do Caderno Brasil de Le Monde Diplomatique. Edição anterior da coluna:
CPMF: muito além dos clichês
Às vésperas decisão do Congresso, uma análise em profundidade sobre o papel do tributo. Por que é regressivo. Qual sua importância no combate à sonegação. E o principal: como iniciar a construção de um sistema de justiça fiscal no país. Nova coluna do Diplô tratará permanentemente do tema
[1] ROCHA, Paulo. Concepções dos fundos e seus impactos nas políticas sociais. In: MAGALHÃES JÚNIOR, José. TEIXEIRA, Ana Claudia (Org.). Fundos públicos e políticas sociais. São Paulo: Instituto Pólis, 2004 (publicações Pólis, 45) Anais do seminário “Fundos Públicos e Políticas Sociais”, Agosto de 2002, p. 85-92.
[2] Emendas Constitucionais 10 e 17
[3] A DRU apresenta algumas modificações em relação ao FSE, pois ela não afeta a base de cálculo das transferências a Estados, Distrito Federal e Municípios, nem a das aplicações em programa de financiamento ao setor produtivo das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Também não estão sujeitas à DRU: as contribuições sociais do empregador incidente sobre a folha de salários; as contribuições dos trabalhadores e dos demais segurados da previdência Social; a parte da CPMF destinada ao Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza; e a arrecadação do salário-educação.
[4] Conforme SOARES, Laura. Ajuste neoliberal e desajuste social na América Latina. Petropólis: Vozes, 2001.
[5] CHESNAIS, François. O capital portador de juros: acumulação, internacionalização, efeitos econômicos e políticos. In: CHESNAIS, François (org.). A finança mundializada. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005, p. 35-68.
[6] Ver nesse sentido: POCHMANN, Marcio et al (Orgs). Os ricos no Brasil. São Paulo: Cortez, 2004.
[7] De acordo com IWASSO, Simone. CAFARDO, Renata. O Estado de São Paulo, 1 de outubro de 2007.
[8] BOSCHETTI, Ivanete. SALVADOR, Evilásio. Orçamento da seguridade social e política econômica: perversa alquimia. Serviço Social e Sociedade. São Paulo, v. 87, 2006, p. 25-57
[9] De acordo com PISCITELLI, Roberto et al. Contabilidade pública. 7ª edição. São Paulo: Atlas, 2002.p. 46-47: “O princípio da discriminação (...) preconiza a identificação de cada rubrica de receita e despesa, de modo que não figurem de forma englobada (...)”. E o princípio da clareza significa o óbvio. É a evidenciação da Contabilidade. “Por este princípio, dever-se-ia priorizar o interesse dos usuários das informações, sobretudo porque se está tratando de finanças públicas”.
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