segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

"Acalma-se o tumulto; cala-se o clamor …"* - por Uri Avnery - fonte: http://blogdobourdoukan.blogspot.com/

"Acalma-se o tumulto; cala-se o clamor …"*

Uri Avnery**


Tradução de Caia Fittipaldi


"Acalma-se o tumulto; cala-se o clamor. Vão-se os capitães, partem os reis…” escreveu Rudyard Kipling, em seu inesquecível poema "Lest We Forget" ("Recessional"
[1][1]).

O Rei George partiu antes mesmo de o tumulto ter-se acalmado. Um helicóptero levou-o rumo ao horizonte, assim como o cavalo carrega o cowboy, ao sol poente, no fim do filme. Naquele momento, na reunião, os discursos continuavam a pleno vapor.

Aí está, em resumo, todo o ‘evento’. O documento final anunciou que os EUA supervisionarão as negociações, agirão como árbitro da implementação e como juiz de tudo, em todos os casos. Tudo depende dos EUA. Se quiserem, – acontecerão muitas coisas. Se não quiserem, nada acontecerá.

Não são boas notícias. Não há qualquer indicação de que George Bush realmente intervenha para conseguir alguma coisa além de boas fotos. Há quem creia que todo o show foi montado para que Condoleezza Rice, coitada, se sentisse melhor, depois que todos os seus esforços como Secretária de Estado deram em nada.

E mesmo que Bush quisesse, poderia ele fazer alguma coisa? Seria capaz de pressionar Israel? Seria capaz de enfrentar a vigorosa oposição do lobby pró-Israel? Seria capaz, especialmente, de enfrentar o público cristão evangélico do qual ele próprio faz parte?

Um amigo contou-me que assistiu à conferência pela televisão, sem som, atento só à linguagem corporal dos atores principais. E que observou um detalhe interessante: Bush e Olmert tocaram-se várias vezes, mas praticamente não houve contato físico entre Bush e Máhmoude Abbás. Mais: durante todos os eventos conjuntos, a distância entre Bush e Olmert foi sempre menor que a distância entre Bush e Abbás. Várias vezes Bush e Olmert andaram juntos, à frente. Abbás os seguiu, alguns passos atrás.

Aí está, contada, toda a história.

SHERLOCK HOLMES disse, num de seus casos, que a solução estava “no curioso incidente do cão àquela hora da noite.”
[2][2] Quando alguém lhe disse que o cão nada fizera, Sherlock explicou: “Por isto o incidente é tão curioso”.

Quem queira entender o que aconteceu (ou não aconteceu) em Annapolis encontrará todas as respostas nesse fato: nenhum cão latiu. Os colonos e seus amigos foram mantidos calados, não entraram em pânico, não ficaram excitados, não distribuíram cartazes de Olmert em uniforme da SS (como fizeram com Rabin, depois de Oslo). No frigir dos ovos, contentaram-se com a reza obrigatória no muro oriental e com uma pequena demonstração perto da casa do Primeiro Ministro.

Isto significa que não estavam preocupados. Sabiam que nada aconteceria, que não haveria acordo sobre o desmonte de sequer um único pequeno assentamento, que fosse. E, nestes assuntos, deve-se confiar no ‘instinto’ dos líderes das colônias. Houvesse qualquer pequeno perigo de paz, depois desta conferência, e eles mobilizariam seus seguidores, en masse.


O MOVIMENTO HAMÁS, por sua vez, organizou demonstrações em Gaza e nas cidades da Cisjordânia, sinal, de fato, de que os líderes do Hamás estavam, sim, muito preocupados.

Não porque temessem que a conferência resultasse em acordo de paz. Estavam apreensivos por outro motivo: temiam que o verdadeiro objetivo da conferência fosse preparar o terreno para que Israel invada a Faixa de Gaza.

Ami Ayalon, ex-almirante que já posou como homem de paz e que, hoje, é membro trabalhista do Gabinete, foi à televisão israelense, durante a conferência, para dizê-lo bem abertamente: era a favor da conferência porque ela legitimava sua operação.

A linha de pensamento é a seguinte: para cumprir sua obrigação em relação ao que determina o Mapa do Caminho, Abbás deve "destruir a infra-estrutura terrorista” na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. "Terrorista" significa “Hamás”. Dado que Abbás é incapaz de, sozinho, conquistar a Faixa de Gaza, o exército de Israel fará o serviço por ele.

Sim, pode custar muito caro. Nos últimos meses, muitas armas têm chegado a Gaza pelos túneis sob a fronteira com o Egito. Morrerá muita gente, dos dois lados. Mas "O que se pode fazer? Não há alternativa."

Em retrospecto, este pode ser o principal (se não o único) resultado de Annapolis: a ocupação da Faixa de Gaza, para "fortalecer Abbás".

Seja como for, o Hamás está preocupado. E com razão.

Preparando-se para este confronto, os líderes do Hamás tornaram-se ainda mais barulhentos em sua oposição à conferência, para a qual não foram convidados. Denunciaram Abbás como colaborador e traidor, reiterando que o Hamás jamais reconhecerá Israel nem assinará acordo de paz com Israel.


IMAGINO, com meus botões, uma conferência que reúna os opositores do processo de paz, uma espécie de anti-Annapolis. Não o encontro de rotina planejado por Mahmoud Ahmadinejad em Teerã, ao qual só os muçulmanos serão convidados, mas um encontro que reunisse todos os extremistas dos dois lados. Khalid Mashal e Ismail Hanieh sentados à frente de Avigdor Liberman, Effi Eytam e Benny Elon, para deliberar um modo de frustrar a “Solução dos Dois Estados".

Se eu fosse convidado para moderador desta conferência, começaria assim: Senhores (claro que não haveria mulheres), comecemos por relacionar os pontos sobre os quais há acordo; depois, cuidaremos dos pontos em disputa.

Então: todos vocês concordam em que a terra entre o Mar Mediterrâneo e o Rio Jordão será um Estado (todos concordam). Os senhores, os palestinos, concordam em que os judeus serão considerados em pleno direito de igualdade (o lado palestino da mesa concorda). E os senhores, os israelenses, concordam em que os árabes serão considerados em pleno direito de igualdade (o lado israelense da mesa concorda). E, é claro, os senhores concordam em que haverá plena liberdade de religião para todos (todos concordam).

Sendo esta a situação, cavalheiros, o único ponto de discórdia é o nome – se o Estado será chamado de Palestina, ou de Israel. Vale a pena brigar e cuspir sangue por causa disto? Escolhamos um nome neutro, algo como Isrestina ou Palael.


DE VOLTA à Casa Branca. Se os três líderes acertaram, em deliberações secretas, que o exército de Israel invadirá a Faixa de Gaza, as notícias são péssimas.

Melhor seria ter envolvido o Hamás – se não diretamente, pelo menos indiretamente. A ausência do Hamás criou um fosso crescente, na reunião. Que sentido há em reunir 40 representantes de todo o planeta... e deixar sem representação mais da metade do povo palestino?

Além do mais, o boicote ao Hamás empurrou a organização para um corner, e forçou o Hamás a opor-se muito mais fortemente à conferência e a levantar contra ela as ruas da Palestina.

O Hamás não é só o contingente armado que domina a Faixa de Gaza; antes de tudo, é o movimento político que obteve a maioria de votos democráticos em eleições democráticas – não só na Faixa de Gaza, mas também na Cisjordânia. Isto não mudará se, amanhã, Israel conquistar a Faixa. Ao contrário: este movimento estigmatizará Abbás como colaborador numa guerra contra seu próprio povo, e, afinal, fortalecerá as raízes do Hamás na população palestina.

Olmert disse que, antes de tudo, a “infra-estrutura terrorista” tem de ser eliminada, e só então poderá haver progressos rumo à paz. Esta fala implica não saber o que significa uma “infra-estrutura terrorista” – ignorância lamentável em alguém cujo pai (com o pai de Tzipi Livni) foi “terrorista” sênior do Irgun. A fala de Olmert também mostra que a paz não é item prioritário entre suas aspirações – porque transforma em território minado o caminho para um acordo. Olmert pôs o carro à frente dos bois.

A seqüência lógica é exatamente ao contrário, na via inversa do que se discute: primeiro, temos de chegar a um acordo de paz aceitável para a maioria dos palestinos. Este acordo deve prever (a) os fundamentos para um Estado Palestino cujas fronteiras acompanhem a Linha Verde (com algumas trocas de territórios), cuja capital será Jerusalém Leste; (b) que os palestinos sejam chamados para ratificar o acordo, por referendum; e (c) que a ala militar do Hamás deponha armas ou seja absorvida nas forças regulares do novo Estado, como aconteceu em Israel, e insira-se no sistema político do novo Estado.

Se houvesse alguma garantia de que as coisas seguiriam este rumo, haveria razoável possibilidade de convencer o Hamás a não obstruir o processo de paz e a permitir que Abbás o conduzisse. No passado, o Hamás já concordou com estes termos.

Por quê? Porque o Hamás, como qualquer movimento político sério, depende do apoio popular. Atualmente, com a ocupação piorando dia a dia e com todas as vias para a paz bloqueadas, as massas palestinas estão convencidas de que a resistência armada – como praticada pelo Hamás – é a única saída que ainda lhes dá alguma esperança. Se as massas pudessem crer que a via política de Abbás daria frutos e poderia levar ao fim da ocupação, também o Hamás teria de mudar a rota.

Infelizmente, a conferência de Annapolis nada fez para alimentar tais esperanças. O público palestino, como o israelense, tratou-a com um misto de desconfiança e desdém. Como se não passasse de um show vazio, conduzido por um presidente norte-americano em fim de mandato, cujo último prazer é fazer-se fotografar como líder mundial. E se Bush obtiver a resolução da ONU que tanto deseja para esconder-se atrás dela – outra resolução que ninguém levará a sério –, nada mudará.

Sobretudo se for verdade que, como disse a imprensa israelense, o governo de Israel está planejando expandir muito as colônias, e se os chefes militares começarem outro banho de sangue, desta vez em Gaza.


ENTÃO o espetáculo não teve sequer um aspecto positivo? Nada? Será esquecido, como dezenas de outras reuniões no passado foram esquecidas, até que só gente de memória excepcional lembre que algum dia aconteceram?

Não tenho muita certeza disto.

Sim, é verdade, foi só uma catarata de palavras. Mas as palavras também têm valor na vida das nações.

Quase toda a humanidade esteve representada nesta conferência. China. Índia. Rússia. A Europa. Quase todos os governos árabes apoiaram o encontro. E este grupo decidiu, solenemente, que é preciso que haja paz entre Israel e um Estado da Palestina independente e viável. Nem todas as palavras foram claramente ditas, mas elas pairaram sobre a conferência. Todos os participantes conheciam as palavras certas.

Os representantes do grupo dominante em Israel concordaram – pelo menos pro forma – com estes termos. Talvez a concordância tenha sido superficial, talvez tenha sido encenada, talvez tenha sido mentirosa. Mas, como disseram nossos sábios há milênios, aquele que aceita o Torá por motivos alheios ao Torá, acabará por aceitá-lo por ele mesmo. Isto significa que alguém que aceita uma idéia por interesse tático será obrigado a defendê-la; a defesa acabará por convencer o defensor. O próprio Olmert já declarou, a caminho de casa: “Sem a Solução dos Dois Estados, o Estado de Israel está acabado”.

Associada a isto, a competição entre os membros do Gabinete israelense já corre solta – o que é um bom sinal. Tzipi Livni instituiu mais de uma dúzia de comissões de especialistas, cada uma encarrega de estudar e deliberar sobre um aspecto específico da paz, da distribuição de água à alocação dos canais de televisão. (Para os que tenham boa memória: a história repete-se, 50 anos depois de eu haver proposto que se criasse um apparatus idêntico a este, que chamei de “o staff do General Branco”, para fazer frente ao “staff do General cáqui”.)

É verdade que a conferência de Annapolis foi apenas um pequeno passo, dado sob coação. Mas foi um pequeno passo na direção certa.

O processo mediante o qual se altera a consciência das grandes multidões é longo e lento, caminha em velocidade quase geológica. Não se o vê andar, a olho nu. Mas, mais ou menos como Galileu Galilei comentou: “Pois é. Mas a coisa anda...”

* The Tumult And The Shouting Dies….


Original em inglês em Gush Shalom, “Grupo da Paz”, em http://zope.gush-shalom.org/home/en/channels/avnery/1196557518/. COPYLEFT. Publicação autorizada pelo autor e pela tradutora.
[1][1] "The tumult and the shouting dies, / The captains and the kings depart…" KIPLING, Rudyard. "Lest We Forget", Recessional, 22/6/1897.
[2][2] “Silver Blaze” (A estrela de prata), 1892.


**Uri Avnery é membro fundador do Gush Shalom (Bloco da Paz israelense). Adolescente, Avnery foi combatente no Irgun e mais tarde soldado no exército israelita. Foi três vezes deputado no Knesset (parlamento). Foi o primeiro israelense a estabelecer contato com a liderança da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) em 1974. Foi durante quarenta anos editor-chefe da revista noticiosa Ha'olam Haze. É autor de numerosos livros sobre a ocupação israelense da Palestina, incluindo My Friend, the Enemy (Meu amigo, o inimigo) e Two People, Two States (Dois povos, dois Estados).


Tradução de Caia Fittipaldi

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