sábado, 1 de dezembro de 2007

Sobre impostos, imposturas e gasto público - por Lula Miranda - fonte: http://www.agenciacartamaior.com.br

Sobre impostos, imposturas e gasto público

Seria pedagógico levar empresários e demais cidadãos que não gostam de pagar impostos para conhecer as filas quilométricas do SUS numa madrugada fria, ou, ainda, visitar algumas famílias nas regiões mais pobres do país que recebem o benefício do Bolsa Família.

Impostos são, por definição [algo que se impõe], encargos antipáticos: arrisco-me a generalizar e dizer que ninguém gosta de pagar impostos. Isso é fato. Porém, também é fato que essas contribuições (impostas aos cidadãos) servem para assegurar o funcionamento do Estado. Outro fato inconteste: os cidadãos anseiam por serviços públicos de qualidade, e alguns poucos anseiam, ainda, pelo muitas vezes esquecido Estado do bem-estar social. Parecem-me, portanto, contraditórios, incoerentes e irreconciliáveis os discursos de pessoas que se dizem de esquerda, e, em face disso (mas não só por isso), clamam por um fortalecimento do Estado, mas, ao mesmo tempo, pedem a redução de uma supostamente escorchante carga tributária ou, até mesmo, a pura e simples extinção de impostos. Esse discurso seria mais coerente/pertinente como produto do ideário liberal (ou neoliberal) que defende (apenas na teoria, ou “para inglês ver”) a diminuição da presença do Estado na economia, ou o chamado Estado mínimo – no fundo, o que os nossos liberais “de meia pataca” almejam é a privatização do Estado.

Não é coerente, nem factível, no atual estágio em que se encontra a economia do país (considerando-se a sua ignominiosa concentração da renda e gigantesca dívida social), conjugar-se a correta demanda pela reconstrução do Estado brasileiro (desmontado, como se sabe, no governo de Fernando Henrique Cardoso) com a diminuição da tributação. Ou seja, conjugar a necessidade premente de aumentar os investimentos do governo em segurança pública, educação, saúde, seguridade social, habitação e infra-estrutura com a redução dos gastos do governo e, pior ainda, com a redução da arrecadação. A menos que se faça mágica. Ou se deseja uma coisa ou outra. O Estado brasileiro ainda não fez uma acumulação de capital suficiente para garantir e distribuir o mínimo bem-estar para a população.

Sei que minha tese é, também ela, a exemplo dos impostos, “antipática”. Mas, para além da hipocrisia de discursos frágeis e da impostura, o que se deve reivindicar é, cada vez mais, um aumento da qualidade do gasto público [hoje em cerca de 20% do PIB] – e, paralelamente, desenvolver/fomentar processos e mecanismos para regular (e fiscalizar) o cumprimento desse objetivo.

Como já disse em artigos anteriores, existe o gasto público bom e o ruim. O bom subsidia despesas e investimentos nas áreas já citadas acima. Os gastos ruins são, por exemplo, aqueles que escoam, em volumes que ultrapassam as dezenas de bilhões, pelo ralo da corrupção. Muitos destes [gastos] já institucionalizados e desviados como fontes certas para alimentar as “caixinhas” dos partidos políticos (caixa 2). Ou ainda o desperdício representado por obras e projetos de valor social e custo-benefício questionáveis, duvidosos, que são começados e logo abandonados.

Um outro exemplo de gasto público deletério são os bilhões de dólares gastos com o financiamento da dívida pública. Decerto que o governo não poderia [sempre se levando em consideração a atual conjuntura] “rasgar contratos” ou dar um calote em seus credores, mas, registre-se, a simples redução paulatina da Selic (e não há nada de extremista nesse procedimento) já geraria uma poupança razoável (na verdade, algumas dezenas de bilhões de dólares/ano) que seria melhor utilizada se subsidiasse investimentos na área social – em vez de enriquecer a uns poucos rentistas. Além do que, essa redução dos juros azeitaria as engrenagens do crescimento econômico. Mas, como se sabe, o banco Central, eternamente assombrado pela miragem da inflação de demanda, já acena com o congelamento da Selic no atual patamar de 11,25% por longo período. Até os postes das esquinas de Brasília sabem que a inflação está controlada. Uma crítica sensata e pertinente deve começar por aí.

Retomando, porém, a correlata questão tributária. À parte o fato inconteste de que ninguém gosta de pagar impostos, é uma falácia dizer-se que a carga tributária brasileira é exageradamente alta se comparada a outros países em condições similares ao nosso. Inúmeros estudos comprovam o contrário. A arrecadação, essa sim, cresce como conseqüência do aumento do emprego formal (mais de seis milhões de felizes empregados até agora) e do crescimento nas vendas de produtos e serviços pelas empresas. É esse crescimento que nos levará, num futuro próximo, a uma redução progressiva da carga de tributos. Porém, é fato que em decorrência da nossa escandalosa concentração da renda, essa tributação é, por óbvio, mais concentrada – o universo de contribuintes reais é, pois, reduzido. Em tese, portanto, os mais ricos e a alta classe-média seriam os que mais pagam impostos e os que mais reclamam do ônus, mas, veja bem, estes também são, curiosamente, os que mais sonegam impostos. Mas isso já é uma outra questão.

O pessoal da FIESP anda reclamando, até de modo um tanto histérico e histriônico, da CPMF. Convocaram recentemente uma manifestação-espetáculo para dois milhões de pessoas, mas por lá apareceram somente quinze mil. Seria pedagógico levar empresários, e demais cidadãos que não gostam de pagar impostos, para visitas a um CEU (escolas-modelo implantadas na gestão Marta Suplicy em SP), ou para conhecer as filas quilométricas do SUS numa madrugada fria, ou, ainda, visitar algumas famílias nas regiões mais pobres do país que recebem o benefício do Bolsa Família. Provavelmente mudarão de postura, se não de opinião.

Agora, ainda em relação à impostura de certos discursos, analisemos esse caso da CPMF. Esse é realmente, em suas características intrínsecas, um tributo ruim, digo, pior que os outros? Essa contribuição (à época chamava-se IPMF), provisória por definição, você lembra, foi criada no governo FHC, por sugestão de seu então ministro (e grande humanista) Adib Jatene, com uma alíquota de 0,25% (depois 0,20% e agora 0,38%) e teria seus recursos destinados à saúde. Os petistas foram contrários à implementação dessa contribuição no governo dos tucanos. Os petistas eram oposição à época e não haviam experimentado ainda a fortuna e os infortúnios de estar no poder. Os tucanos, hoje na oposição, porém não têm a desculpa de dizer que não sabem o quanto ainda [sublinhe-se o ainda] é essencial ao Estado brasileiro a manutenção dessa fonte de receita – uma vez que, mal ou bem, já governaram o país.

Os tucanos (e, argh!, os “Demos”), portanto, apenas jogam para a torcida quando se dizem favoráveis à extinção da CPMF. E, mais grave, apostam no quanto pior melhor, numa tentativa de prejudicar o atual governo – na verdade, estarão prejudicando o país. Na conjuntura atual, não seria mais honesto (parece que o quadro no Congresso – da parte de alguns parlamentares do PSDB – já caminha para algo nesse sentido) negociar junto ao governo uma redução da alíquota e alguns patamares de isenção e, em paralelo, discutir pra valer uma reforma tributária que simplifique e racionalize a cobrança de impostos no país. E assim, quem sabe, se possa, por exemplo, no futuro, quando a saúde sair da situação calamitosa em que se encontra, estabelecer uma CPMF com uma alíquota menor, muito mais para fins de fiscalização que de arrecadação.

Uma outra distorção, oportunista, que já se espalha por aí é em relação ao imposto sindical – aquele desconto obrigatório equivalente a um dia de trabalho todo mês de março, que foi criado no governo Vargas. Esse é outro gravame que devemos analisar com bastante atenção e evitar a adjetivação fácil, os preconceitos e as palavras de ordem. Conceitualmente, ou seja, em tese, todos devemos ser contrários a esse imposto. O ideal seria, de fato, que os sindicatos conseguissem se manter com a contribuição de seus associados. Seria ideal. Assim como ideal seria que não tivéssemos a CPMF, que todos pagássemos nossos impostos (sonegação próxima a zero) em dia, que a renda não fosse tão concentrada, e assim um maior número de contribuintes pagasse impostos, e que o Estado se fortalecesse e pudesse oferecer serviços públicos de qualidade a todos os cidadãos.

Porém, no quadro em que vivemos hoje de extremo individualismo, agravado por um crescente alheamento dos indivíduos para com as coisas da política e do mundo (do mundo do trabalho, inclusive), onde pouquíssimos são os trabalhadores que se filiam ao seu sindicato; nesse contexto a pura e simples extinção desse imposto seria letal. Já falei aqui em textos anteriores dos graves problemas por que passam nossos sindicatos (falta de associados, de representatividade, de competência etc). O principal problema é que muitos trabalhadores – aliás, a maioria – só ligam para o seu sindicato, uma vez por ano, isso quando ligam, para saber de quanto foi/será o índice de aumento. Nesse quadro atual, se extinguirem o famigerado imposto sindical, acaba-se com a maioria dos sindicatos. E quem fará o contraponto necessário ao avassalador poderio do capital?

Ah, mas na época do surgimento da CUT os sindicalistas condenavam o imposto sindical – alegaria você. É bem verdade, mas, sejamos honestos, vivia-se naquela época um ciclo vigoroso de ascensão do sindicalismo e das lutas dos trabalhadores. As pessoas eram mais combativas, solidárias e se sindicalizavam com entusiasmo e um fervor quase religioso. Hoje, ao contrário, o que se percebe, desgraçadamente, é um momento (passageiro, espera-se) de crise do sindicalismo. Só as categorias historicamente mais organizadas de trabalhadores – e olhe lá! – mantém a tradição de lutas e um naco de consciência de classe. Ou seja, a manutenção do imposto sindical, enquanto a reforma sindical não vem, seria, digamos, um “mal necessário”.

O que se deseja de fato: o fim do imposto sindical ou o fim dos sindicatos e das lutas dos trabalhadores? O que se deseja, agora, é o mero fim da CPMF? Ou o que se pretende, na verdade, é, num primeiro instante, criar um grave problema fiscal (de caixa) para o governo (e para os sindicatos) e, num segundo momento, um pouco mais adiante, ocasionar uma degradação ainda maior do Estado brasileiro (e das condições de trabalho)? São essas as reflexões/ponderações que gostaria de compartilhar com vocês hoje. Um tanto delicadas e muito polêmicas, é bem verdade, mas... necessárias.

Lula Miranda é economista, poeta e cronista. É secretário de Formação para a Cidadania do SEEL – Sindicato dos Trabalhadores em Editoras de Livros do Estado de SP. Integra o Coletivo de Formação da CUT São Paulo.


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