domingo, 14 de dezembro de 2008

Revitalização do centro de SP premia obras faraônicas e especulação imobiliária

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por João Whitaker*


Soube-se recentemente pelos jornais que os suíços Herzog e De Meuron, os festejados arquitetos autores do "Ninho de Pássaro", palco das Olimpíadas de Pequim, foram contratados pelo governo do estado para projetar a futura sede da São Paulo Companhia de Dança e as novas instalações do Centro de Estudos Musicais Tom Jobim.

Um imponente projeto, afinado com a política de recuperação do centro que o governo do estado começou a implementar com a Sala São Paulo e a prefeitura vem continuando com o Projeto Nova Luz. Uma política alavancada em obras públicas milionárias, porém sem ações de planejamento que visem coibir a natural valorização da área e a conseqüente expulsão da população mais pobre, que os urbanistas costumam chamar de "gentrificação". Ao lado de tão vultosos investimentos em cultura, não vemos nenhuma ação para promover uma oferta pública de moradia à população pobre que usa e vive no centro, ou para incentivar o mercado privado de habitação de médio e baixo padrão, que corresponde à maior parte da demanda por moradia na região.

O projeto proposto prevê a construção de cerca de 20 mil m², para um extenso programa que inclui três teatros, uma sala de espetáculos, salas de ensaio e biblioteca.

A notícia repercutiu imediatamente, e de forma polêmica, entre os arquitetos: para eles, a questão é aceitar ou não que, em processo de escolha fechado (embora seja uma obra pública), tenha sido escolhido para o projeto um escritório estrangeiro em detrimento de um brasileiro, com a justificativa, apenas, da sua fama. A reclamação é plausível, não tanto quanto à nacionalidade, mas pelo uso da Lei Federal 8.666/93 para amparar o processo de escolha, que permite que não se faça licitação "quando houver inviabilidade de competição" na contratação de "serviços técnicos de natureza singular", com profissionais "de notória especialização".

Fama e sucesso internacional podem até ser uma garantia de que os arquitetos contratados são competentes, mas de forma alguma estabelece que o que eles fazem – projetos de arquitetura – não possa ser feito por outros profissionais. Seus festejados projetos podem ser singulares, porque todo projeto de arquitetura o é, mas o processo projetual em si pode ser feito por todo e qualquer arquiteto. Não há, portanto, "inviabilidade de competição", nem tampouco "notória especialização". O projeto deveria, independentemente da nacionalidade dos vencedores, e por tratar-se de verba pública, ser objeto de um concurso público de arquitetura.

Mas não é esse, porém, o verdadeiro escândalo que a notícia traz, mas sim os valores astronômicos em jogo. Estes sim deveriam ser alvo da indignação de todos, arquitetos ou não. O custo total da obra, que será arcado pelo governo do estado, é de R$ 300 milhões. Aos arquitetos, será pago algo entre R$ 19,5 milhões e R$ 25,5 milhões.

A título de comparação, a Universidade Federal do ABC, cuja obra já está adiantada, tem em seu programa equipamentos similares aos da nova escola de dança. Porém, sua área construída de cerca de 100 mil m² é cinco vezes maior, e foi licitada por R$ 96 milhões, 3 vezes menos do que o projeto para o centro! Os arquitetos vencedores do projeto receberam R$ 3 milhões! Em outro exemplo, as obras do novo terminal de passageiros do aeroporto de Florianópolis, que incluem a construção da infra-estrutura de circulação das aeronaves e de acesso viário, foram licitadas em R$ 259 milhões, menos do que a escola de dança e seus 20 mil m²! Também nesse caso, consta que o preço de todo o projeto executivo foi de R$ 3 milhões.

Como entender que o governo do estado gaste em um prédio de uma escola de dança mais do que o custo de um terminal aeroportuário? Será que não seria mais conveniente um projeto mais modesto, permitindo a destinação de parte desse dinheiro para outros projetos socialmente importantes, como de habitação na área central?

Há algo de errado no ar. Ou estamos na Suíça, e ninguém foi avisado, ou há dinheiro sendo jogado fora, em nome de uma suposta "revitalização" do centro que cria obras faraônicas para o deleite do mercado imobiliário, que muito lucrará com a conseqüente valorização da região.

*João Sette Whitaker Ferreira é arquiteto-urbanista e economista, é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e do Mackenzie, e membro do Conselho Municipal de Política Urbana.

Fonte: Correio da Cidadania

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