quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Samuel Wainer - Minha Razão de Viver - O homem que sabia demais



Para quem quer entender como nossa porca grande midia funciona nos dias de hoje tem ir lá no passado e ler este brilhante relato de uma época.

"Minha Razão de Viver", autobiografia de Samuel Wainer, um dos mais influentes jornalistas da história republicana, ganha edição definitiva pela Planeta

O homem que sabia demais

Por Tom Cardoso (fonte: http://opiniaoenoticia.com.br)

Um homem sem impedimento moral, sem pudores, disposto a contar tudo. Na pauta, a promiscuidade entre os interesses públicos e privados, o fisiologismo político, o tráfico de influências, a corrupção impune. O depoente não é Roberto Jefferson, nem tem os pés na lama. É Samuel Wainer (1912-1980), um dos mais poderosos jornalistas da história do país, dono da "Última Hora", amigo e conselheiro de três presidentes da República, morto sem editar o último texto da sua vida: a autobiografia "Minha Razão de Viver - Memórias de um Repórter" (366 páginas), que acaba de ganhar versão definitiva pelas mãos da editora Planeta do Brasil.

No lançamento da primeira edição, em 1987, levada às livrarias pela Record, até mesmo Paulo Francis, implacável em suas resenhas, rendeu-se ao conteúdo avassalador do livro: "É difícil imaginar alguém com algo mais na cabeça do que cabelos não lendo 'Minha Razão de Viver", escreveu o colunista na "Folha de S. Paulo". De fato, na época, ninguém passou incólume diante do testemunho de Wainer. Poucas vezes na história republicana alguém tão influente havia aberto o jogo de uma forma espantosamente sincera. De um fôlego só, numa série de depoimentos aos jornalistas Sérgio de Souza e Marta Góes em 1980, o dono da extinta "Última Hora" disse o que era para ser dito. E morreu. As 53 fitas de gravação ficaram guardadas durante cinco anos nos arquivos da família, até que a artista plástica Pink Wainer, filha de Samuel, decidiu entregar o material ao jornalista Augusto Nunes, então redator-chefe da revista "Veja".

"A Pink sabia que eu estava muito ocupado com a revista. Queria apenas que indicasse alguém de confiança para editar aquelas 1.200 laudas de depoimento. Quando decidi dar uma olhada nos textos, quase enlouqueci. Eu tinha em mãos uma bomba, um punhado de revelações fantásticas, ditadas por um sujeito que, durante décadas, andou de braços dados com o poder. Decidi eu mesmo fazer o trabalho de edição, não podia recusar", lembra Nunes.

O jornalista atendeu apenas a duas exigências da família Wainer: 1) Não revelar que o autor das memórias havia nascido na distante Bessarábia, mais tarde anexada à ex-URSS. Samuel Wainer (por saber que a lei brasileira proibia um estrangeiro de ser dono de um veículo de comunicação) sempre jurou, de pé junto, que havia nascido no bairro do Bom Retiro, centro de São Paulo. 2) Não dizer o nome do homem de confiança do governo João Goulart responsável pelo sistema de arrecadação de dinheiro para financiar o contragolpe preventivo, articulado pelo presidente no início de 1964.

Pelos cálculos de Wainer, essas duas informações só poderiam ser reveladas 25 anos depois de sua morte, ou seja, agora, em 2 de setembro de 2005. Para ele, esse era o tempo suficiente para que todos os seus amigos e inimigos morressem. "No caso da polêmica sobre sua nacionalidade, era uma questão de lealdade com os amigos mais próximos que, mesmo sabendo que ele não havia nascido no Brasil, sustentaram o contrário diante da justiça", diz Pink. Na página 15 da nova edição da Planeta, há a prova definitiva de que Wainer mentia: uma foto dele, aos seis anos, com os braços encostados no ombro do pai, no porto italiano de Gênova, rumo ao Brasil. Na página 329, a segunda revelação: o nome do advogado Jorge Serpa é citado pela primeira vez como o principal articulador do sistema de arrecadação de dinheiro para manobras políticas do governo Goulart.

Em 1952, Carlos Lacerda (1914-1977) seria capaz de tudo - até virar comunista de novo - para ter em mãos a foto de Wainer no porto de Gênova partindo para o Brasil. No início da década de 50, o poderoso dono da "Tribuna da Imprensa" liderou, com a generosa ajuda de Assis Chateaubriand, proprietário dos "Diários Associados", uma campanha nacional para destruir Wainer, acusando-o de esconder sua verdadeira nacionalidade. Não era o patriotismo que movia Lacerda. O futuro governador do Estado da Guanabara não engolia o vertiginoso crescimento da "Última Hora", impulsionado pelo apoio financeiro do governo Vargas, tanto que, em 1953, avançou novamente contra o desafeto, desta vez para acusá-lo de receber recursos do Banco do Brasil. A polêmica acabou em CPI, a primeira instalada no país, e rendeu alguns meses de prisão a Wainer e seu ódio eterno a Lacerda.

Wainer e Lacerda não nasceram inimigos. Na autobiografia, o autor confessa ter se encantado com o líder udenista em 1935, quando se encontraram pela primeira vez: "Lacerda, um jovem magro, de aparência ascética e oratória brilhante - era um dos heróis da esquerda. A ele coubera a honra de ler o manifesto de Luís Carlos Prestes na cerimônia de lançamento da Aliança Nacional Libertadora (...) E Lacerda era um dos meus grandes ídolos (...) Pouco depois, houve o episódio da Intentona, e perdi Lacerda de vista (...)" Os dois voltariam a se encontrar em 1938, quando Lacerda integrou a equipe de articulistas de "Diretrizes", publicação fundada por Wainer. A ponte foi feita por Moacir Werneck de Castro, diretor de redação da revista, e primo-irmão de Lacerda.

Aos 90 anos, Werneck de Castro não sabe dizer com precisão em qual momento se acendeu o ódio entre os dois jornalistas, mas diz ter certeza de que foi motivado pelo desencanto de Lacerda com o comunismo e pelos êxitos sucessivos de Wainer. "Eu me lembro do entusiasmo juvenil do Lacerda com o comunismo. Era algo comovente, que se perdeu logo depois do fracasso da Intentona Comunista em 1935 e de sua expulsão do PCB, quatro anos depois. Ele se tornou um grande conservador. Acho que, no fundo, cansou de ser pobre, aquele negócio de comunista não combinava com ele." A repentina mudança ideológica, lembra Werneck de Castro, freou qualquer tentativa de amizade entre Lacerda e Samuel:

"Por ser primo de Lacerda e colega de redação de Samuel [Wainer], acompanhei de perto a aproximação entre os dois, em 1935. É uma história curiosa: ambos se encontraram pela primeira vez durante uma reportagem em Belo Horizonte e ficaram fascinados um pelo outro. Por coincidência, no mesmo dia, mandaram telegramas para minha casa no Rio, relatando o encontro. Primeiro, chegou a carta de Lacerda: 'Ele [Samuel] é fantástico. Não sei como pude passar tanto tempo da minha vida sem conhecê-lo.' Horas depois, recebo o telegrama do Samuel: 'Conheci Lacerda. Que figura notável!´ O destino tratou de separá-los. O Lacerda tinha inveja do sucesso de Samuel. Além de ser um concorrente no jornalismo, não suportou a aproximação dele com o poder, principalmente sua fraterna ligação com Getúlio Vargas", diz Werneck de Castro.

A história do início da amizade entre o jornalista e Getúlio Vargas (1882-1954) é um dos pontos altos do livro. É narrada em ritmo cinematográfico pelo autor. Astro da reportagem de "O Jornal", de Assis Chateaubriand, Wainer foi encarregado pelo patrão de fazer uma grande matéria sobre o mercado de trigo no Brasil. Num sábado de carnaval, em fevereiro de 1949, viajou para o Rio Grande do Sul num pequeno avião. No caminho, pediu para o piloto mudar a rota e pousaram na cidade de São Borja - mais precisamente, na fazenda de Getúlio Vargas, afastado da vida pública desde 1945. Saiu de lá sem a matéria encomendada por Chatô, mas com um furo que iria mudar a história do país: Vargas decidira ser candidato às eleições de outubro de 1950. Uma aula de reportagem.

"O jornalismo brasileiro é dividido em duas fases: antes e depois de Samuel Wainer". Quem diz é ninguém menos do que Joel Silveira, 86 anos, mestre da reportagem, companheiro de Wainer desde os tempos de "Diretrizes". Apesar do elogio, Silveira diz que há erros pontuais na autobiografia. "O Samuel sempre gostou de mentir um pouquinho", brinca. "Conta, por exemplo, que foi ele quem me incentivou a escrever o famoso texto sobre os grã-finos de São Paulo [reportagem que entrou para a história do jornalismo] na 'Diretrizes'. Mentira. O Samuel foi contra. Disse que aquela matéria, uma crítica à burguesia paulistana, iria afastar os anunciantes da revista. Só consegui escrever porque defendi a pauta até o fim."

Silveira deixa de lado as críticas para fazer uma defesa apaixonada de Samuel. "Tinha minhas divergências com ele - brigamos várias vezes, sempre por causa de sua paixão ardorosa por Getúlio Vargas. Mas não há como não reconhecer seu talento para fazer jornais. Antes do Samuel, os jornais eram mal feitos, mal paginados. Ele mudou tudo: introduziu a cor, fez grandes reformas gráficas e, o mais importante, passou a valorizar os jornalistas - pagava três vezes mais do que os jornais administrados por Chateaubriand."

Enquanto Chateaubriand, na sua incessante busca pelo poder, usava os "Diários Associados" como mero instrumento político, Samuel conseguiu manter uma visão idealista da profissão. "Todo o dinheiro que ele ganhou, lícito ou não, foi em benefício do jornalismo. Não que isso justificasse todos os erros, mas sua sedução pelo poder no fundo era por uma grande causa: a 'Última Hora'", afirma Pink. "Ele morreu pobre, sem um tostão, num aposento simples, construído em cima de um supermercado na alameda Tietê." Foi neste mesmo apartamento, nos Jardins, em São Paulo, que a jornalista Marta Góes coordenou a segunda e última fase de entrevistas para o livro.

"Ele podia se sentir um fracassado por chegar ao fim da vida morando num lugar tão modesto. Mas não. Estava feliz por escrever uma coluna diária na 'Folha de S. Paulo' e tinha absoluta certeza e confiança de que havia entrado para a história do país. Lembrava de cada passagem com um brilho no olhar, saboreando os grandes momentos. No meio da conversa, parava, me olhava e dizia, puxando o aplauso: 'Você acha que isso dá mesmo um livro, Marta?", lembra a jornalista. "Conversamos sobre tudo. Sempre elegante, Samuel só não falou sobre suas conquistas amorosas, que não foram poucas. Limitou-se a dizer que, quando Danuza Leão, sua mulher, chegava a São Paulo, as damas da sociedade corriam para os salões de beleza para tentar ficar à altura de sua beleza."

Na nova edição de "Minha Razão de Viver", há uma foto inédita de Wainer segurando a atriz Kim Novak pelos braços, fazendo biquinho, pronto para beijá-la. Se até os inimigos não contestam seu talento como jornalista, o mesmo não se pode dizer da sua fama de conquistador. Há controvérsias. Para Werneck de Castro, o jornalista era, sim, um grande galanteador. "Ele conquistou todas as mulheres que quis. Elas não resistiam ao seu charme, caíam como peixinhos em sua rede."

O próprio Wainer gostava de alimentar a fama de Don Juan. No livro, conta vantagem: "Circulando pelos lugares da moda (em Paris), era inevitável que eu fosse visto em companhia de gente famosa (...) Entrei no salão de braços dados com duas esplêndidas mulheres - Claude de Leusse, uma querida amiga que, apesar de genuinamente aristocrata, trabalhava como jornalista, e Anita Ekberg, a estrela de 'A Doce Vida'. Adolfo Bloch (dono da revista 'Manchete'), para meu desprazer, estava presente à recepção e me recebeu com um olhar de profunda inveja."

Para Augusto Nunes, não era sempre que os romances de Wainer tinham final feliz. "Ele gostava de fazer pose de conquistador, mas não teve tanto sucesso assim com as mulheres. Perdeu Bluma, a primeira mulher, para Rubem Braga. A terceira, Danuza Leão, para Antônio Maria. Quando estava prestes a conquistar Candice Bergen (atriz americana), a perdeu para Tarso de Castro (jornalista, criador de 'O Pasquim'), durante uma noite no bar Antonio´s, no Rio."

Antes de a autobiografia ser publicada, havia um certo suspense sobre a possibilidade de Wainer falar ou não abertamente de seus casamentos e aventuras amorosas. Durante a edição do livro, Augusto Nunes foi jantar com o amigo Zuenir Ventura. No restaurante, avistaram Rubem Braga tomando café numa mesa ao fundo, emburrado. Ventura sugeriu a Nunes que fosse até lá contar ao cronista que ele estava editando a inédita autobiografia de Samuel Wainer. "Aceitei a provocação e fui conversar com o Rubem. Ele me olhou com cara de poucos amigos, mas, assim que revelei a ele sobre o livro, sua fisionomia mudou. Abriu um sorriso meio amarelo e me perguntou, ansioso: 'Me diga, rapaz, o Samuel fala sobre algum caso amoroso na autobiografia? Entra em detalhes sobre o fim de seus casamentos?' Quando respondi que não, ele, aliviado, soltou a respiração e disse apenas uma frase, com um olhar distante: 'Que grande jornalista foi o Samuel..."

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