Tropa de Elite ou o caos como ordem
Ao não apresentar saída, o filme revela uma visão niilista, que, entretanto, não pode ser identificada com uma abordagem reacionária. É a própria lógica que engendra a sociedade que precisa do Bope que é violenta e autoritária.
João Ferrer
“Temos a arte para não morrermos da verdade”F. Nietzsche – Vontade de Poder
O filme "Tropa de Elite" tem causado polêmica. Ancorado em uma estratégia de marketing enaltecedora da desordem, que conviveu com a reprodução ‘ilegal’ de milhões de cópias antes mesmo do filme ser lançado, acabou por ocupar um papel destacado na reflexão sobre um aspecto paradigmático da realidade brasileira contemporânea: a violência nas periferias dos grandes aglomerados urbanos. Apenas por isso, já seria uma boa notícia. Mas o filme é bom em sua dimensão estética e sugestivo na sua dimensão ética.
Primeiro é preciso superar a idéia que se trata de um filme realista. A idéia da possibilidade de um realismo, no sentido da retratação objetiva da realidade, é um idealismo. A realidade é sempre uma objetividade subjetivada, portanto, uma interpretação. Sua representação mais universal é, digamos assim, a fala hegemônica, que é aquela que mais estabelece nexos com os ‘sentimentos’ de uma determinada comunidade. Mas essa fala hegemônica não é, por óbvio, toda a possibilidade de interpretações, não é, portanto, toda a realidade.
É por isso que o filme "Tropa de Elite" não é um filme realista. Ele é o relato de uma interpretação. Mas ele também não se pretende realista, mesmo que fale em ‘retrato da realidade’ em sua publicidade. Isso fica claro desde o início a partir da adoção de uma técnica explícita para identificar o narrador. O off impõe à ‘realidade’ uma fala subjetiva e assume o monopólio da função cognitiva. Fica claro que estamos vendo ali uma realidade retratada por um dos sujeitos das relações sociais que vão se estabelecer no decorrer da história.
Sendo um relato pessoal, é natural a simplificação da narrativa. O que não significa dizer uma narrativa simples. Ao contrário, compreende-se, ali, o ponto de vista contraditório e, às vezes, confuso, de um dos múltiplos sujeitos que se confrontam no cotidiano de violências dos morros cariocas. Mas o filme é nítido: o conflito é entre o Bope e os traficantes e quem o relata é um membro do Bope. Apenas esses dois protagonistas têm consciência. Todo o resto está alienado em sua vidinha secundária; são ingênuos, hipócritas, corruptos, alienados. Todos os outros não compreenderam o que está acontecendo. E, nesse sentido, é preciso que se diga, não se trata de uma abordagem hegemônica do conflito. No filme, a vida real vai do apartamento de dois quartos do capitão Nascimento ao casebre do ‘dono do morro’. As festinhas da classe média e as aulas de direito, onde se elabora o ‘discurso hegemônico’ são como uma psicose coletiva de prazer e intelecção, são uma alienação.
Mas o relato do narrador sobre a função dos outros múltiplos sujeitos que compartilham com ele a ‘realidade’ da vida no Rio de Janeiro é, também, um relato alienado. Os nexos entre corrupção, polícia e política, por exemplo, são mostrados na sua superfície e a conexão entre o uso de drogas e o sistema do tráfico ganha uma centralidade causal que está longe de existir. Assim, a narrativa faz, também, uma crítica ao ponto de vista do narrador, que é apresentado na sua crueldade simplificadora, estética e eticamente
A questão, então, é ver se o filme, que retrata um ponto de vista sobre o conflito da periferia carioca, sugere uma saída, propõe alguma panacéia. Não creio. Grosso modo, todo o instituído é criticado: a política está submetida aos ‘negócios’ da droga, a ‘utopia ongueira’ acaba por ser conivente com o tráfico e mesmo o Bope, que reproduz guerreiros hábeis e alienados, torna-se apenas um instrumento de limpeza, mas não de libertação. O sistema, portanto, constitui-se em um ciclo que tende a se reproduzir até o limite da desrazão, fazendo com que o próprio capitão do Bope se sinta impelido à fuga. Trata-se de um mundo sem evasão.
Muitos viram no filme um libélo reacionário, que enaltece a violência, a tortura e a visão totalitária que fundamenta a narrativa do protagonista principal. Não concordo. O herói que nasce ao final do filme, assim como o narrador, não é um herói; como alguém que se sobrepõe ao sistema para ordená-lo. Ele também não nos sugere qualquer identificação, na medida em que é difícil que alguém saia do cinema querendo ser um capitão do Bope (com raríssimas exceções, por óbvio). Ao contrário, o herói é um ser desumanizado. Para ele, sua função é uma necessidade, não uma escolha. A liberdade para ele, então, é, como já sustentou o filósofo alemão da epígrafe, ‘a aceitação consciente de um destino necessitante’. Não há glória em estourar a cara de um bandido com uma 12, mas uma consciência assumida da necessidade da sua função para o ordenamento da sociedade que não compreende, mas conhece os mecanismos. A ordem, aqui, é o caos.
Temos, então, uma reflexão não sobre a guerra do tráfico, mas sobre as relações de poder, em que todos os protagonistas são sujeitos e objetos. As sacanagens internas na polícia, o toma lá dá cá entre policiais e políticos, a estúpida convivência entre o libertarismo dos ativistas das ongs com as regras tirânicas dos traficantes, o paradoxo entre as mortes de crianças e o nascimento de um filho na vida do capitão Nascimento, tudo é parte desse conflito irracional e interminável que funda a sociedade, o conflito dos humanos com sua própria humanidade. Ao não apresentar saída, o filme revela uma visão niilista, que, entretanto, não pode ser identificada com uma abordagem reacionária. É a própria lógica que engendra a sociedade que precisa do Bope que é violenta e autoritária. E o ciclo de violência, corrupção e alienação que se retroalimenta é que precisa, então, ser pensado como objeto da transformação. Não se trata, portanto, de sugerir qualquer violação ao ordenamento do Estado de Direito, mas de pensar o próprio direito de o Estado se impor como ordem.
João Ferrer é jornalista.
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