CPMF: muito além dos clichês
Novamente a agenda da questão tributária nacional é ocupada com o debate sobre a CPMF. Nos últimos 12 anos, os governos brasileiros têm limitado a contenda sobre a tributos a dois temas: a prorrogação da “provisória” CPMF e a continuidade da Desvinculação das Receitas da União (DRU). A primeira é de contribuição sobre movimentação financeira que deveria ser provisória e já caminha, contado o período em que se chamava IPMF, para 14 anos de existência, devendo assegurar aos cofres da União mais de R$ 35 bilhões, em 2007. A segunda é uma engenharia fiscal, que permite à União ter uma folga orçamentária de 20% das suas receitas arrecadadas. Neste caso, arrecada-se, por exemplo, uma contribuição para um determinado fim e se aplica em outro, além de não haver necessidade de compartilhamento do produto da arrecadação com os estados e municípios, o que fere o pacto federativo. Por meio deste mecanismo, transferem-se recursos não desprezíveis do orçamento da seguridade social (assistência social, previdência e saúde) para o orçamento fiscal. Somente em 2006, este desvio alcançou a importância de R$ 33,8 bilhões.
O financiamento do Estado brasileiro é regressivo, assim como os seus gastos orçamentários. O Estado brasileiro é sustentado pelas classes de menor poder aquisitivo e pelos trabalhadores, com a população de baixa renda suportando uma elevada tributação indireta [1].
Além disso, parcela importante do orçamento é comprometida por repasses ao grande capital industrial e financeiro, os verdadeiros “sócios” do Tesouro brasileiro. A CPMF é um desses tributos regressivos, pois ao incidir ao longo da cadeia produtiva, de forma cumulativa, [2] é passível de ser transferida a terceiros; em outras palavras, para os preços dos produtos adquiridos pelos consumidores. Eles é que acabam pagando, de fato, a contribuição. Já quando a CPMF incide somente sobre a renda do contribuinte, a contribuição é proporcional, com ricos e pobres suportando igualmente a mesma carga tributária. No período de 1997 a 2006, do montante de R$ 185,9 bilhões arrecadados com a CPMF, R$ 29,3 bilhões (18%) foram desvinculados por meio da DRU. Ou seja, a população pensa que está financiado as políticas da seguridade social, particularmente a de saúde, mas na prática o governo desvia seus recursos para o orçamento fiscal, extrapolando e engordando suas metas de superávit primário. Além disso, a alíquota inicial da contribuição, de 0,20%, já alcançou 0,38%.
Vários caminhos para arrecadar e gastar com justiça
Apesar disso, esse tributo exerce uma importante função fiscalizatória, pois permite o cruzamento dos dados da movimentação financeira do contribuinte com sua declaração de renda e com a movimentação de seu patrimônio. Por meio desse cruzamento, o Fisco federal pode combater a sonegação, a evasão fiscal e a lavagem dinheiro. De forma, que o tributo não deveria ser extinto, mas preservado, com uma alíquota menor, para fins de fiscalização patrimonial e de renda. Além disso, a atual estrutura orçamentária brasileira não poderia sobreviver sem o montante de receitas arrecadadas pela CPMF. Mas existem saídas que permitiriam a substituição gradual dessa arrecadação por tributos com maior progressividade, assegurando a justiça fiscal. Entre as iniciativas à disposição do governo está a regulamentação do Imposto sobre Grandes Fortunas previsto na Constituição. Assim como, a eliminação das concessões tributárias feitas em favor das rendas do capital nos últimos anos, que causam enormes distorções no nosso sistema tributário. Estamos falando de duas novidades implantadas em 1996 [3]: a isenção de tributação de lucros e dividendos e a dedução dos juros sobre o capital próprio das empresas do lucro tributável do Imposto de Renda e da CSLL. O segmento mais beneficiado por esta renúncia fiscal são os bancos. Somente a revogação desses dois mecanismos permitira ao governo uma arrecadação de pelos menos R$ 10 bilhões [4].
No lado dos gastos, também é possível reverter a estrutura atual, pois cerca de 1/3 do orçamento é comprometido com despesas financeiras, beneficiando exatamente o mesmo setor, ou seja, os bancos e grandes aplicadores em títulos da dívida pública. Em 2006, mais R$ 151,2 bilhões foram pagos pelo Estado sob a forma de juros. Somados aos R$ 120,9 bilhões gastos com a amortização da dívida, perfazem um total de R$ 272,1 bilhões destinados ao serviço da dívida no orçamento do ano passado. Ao mesmo tempo em que os gastos com a previdência social reduzem sua participação no orçamento de 31%, em 2005, para 27%, em 2006. Aliás, os gastos com a seguridade social (previdência, assistência social e saúde) estão estacionados em 11% do PIB. Os salários dos servidores públicos foram congelados até 2010, apesar da sua redução nas despesas governo: os gastos com pessoal comprometiam 56,2% da Receita Corrente Líquida da União, em 1995, hoje comprometem 33%. Não procedem, portanto, as críticas segundo as quais o aumento de gastos do governo federal tem decorrido do pagamento de pessoal. Estes itens, que representavam 5,23% do PIB, no período entre 1999 e 2002, caíram de 4,95% do PIB, entre 2003 e 2006. Prevê-se nova redução, nos próximos anos.
Um tema essencial, que a mídia reduz à demagogia
Enfim, é possível a construção de um sistema fiscal mais justo, sem reduzir os gastos com educação, seguridade social e infra-estrutura. Para arrecadar com mais progressividade deve-se tributar aqueles que detêm maior capacidade contributiva, desonerando as famílias de mais baixa renda e os trabalhadores assalariados. O debate sobre a prorrogação da CPMF é assunto complexo, que merece mais seriedade no seu trato. A sociedade brasileira precisa ser informada, para que participe de um debate aprofundado sobre a estrutura tributária do país e o direcionamento dos seus gastos.
A pobreza de idéias no debate sobre a reforma tributária brasileira tem deixado de lado a questão da redistribuição da carga tributária, como se não houvesse a possibilidade de se fazer justiça tributária e redistribuição da renda pelo lado do financiamento do Estado. A discussão da estrutura tributária brasileira passa também por outras esferas da política econômica, principalmente a redução das elevadas taxas de juros — a vitamina que alimenta enormes transferências de renda para os mais ricos e contribui para a manutenção do estoque da dívida. O debate rasteiro que aponta os “culpados” de sempre, servidores e previdência, só faz com que se desvie o foco dos temas que, aos setores efetivamente privilegiados, não interessa discutir.
[1] Ver, nesse sentido, “A distribuição da carga tributária: quem paga a conta?”, de Evilásio Salvador, em Arrecadação (de onde vem?) e gastos públicos (para onde vão). João Sicsú. São Paulo. Boitempo Editorial, 2007, pp. 79-92.
[2] A cumulatividade de um tributo significa a incidência em cascata ao longo da cadeia produtiva, ou seja, em todos os estágios do processo produtivo. Desse modo, a alíquota final paga no tributo é superior a alíquota nominal inicial. Os tributos de valor adicionado são aplicados somente no valor que foi agregado em cada fase da produção ou venda do produto. Porém, é preciso ressalvar que um tributo cumulativo com alíquota baixa pode ter menos impacto nos preços de bens e serviços do que um tributo não-cumulativo (valor adicionado) com alíquotas elevadas.
[3] Lei 9.249/1995, artigo 9º, permite às pessoas jurídicas tributadas pelo lucro real que remuneraram pessoas físicas ou jurídicas, a título de juros sobre o capital próprio, considerar tais valores como despesas (fictícias) para fins de apuração do IRPJ e da CSLL. O artigo 10º da mesma lei isenta a tributação de lucros e dividendos, incluindo a sua remessa ao exterior.
[4] Ver 10 Anos de derrama: a distribuição da carga tributária no Brasil. Evilásio Salvador e Clair Hickmann. Brasília. Unafisco Sindical, 2006
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