quarta-feira, 14 de novembro de 2007

O humanismo ou a barbárie - por Edward W. Said - fonte: http://diplo.uol.com.br

O humanismo ou a barbárie

Enquanto todo o império diz ser diferente daquele que o precedeu, argumentando que sua missão é civilizar, garantir a ordem e a democracia, usando a força como último recurso, a vontade de compreender o outro exclui, a priori, a ambição de dominação

Edward W. Said

Gostaria de poder afirmar que a compreensão que têm os norte-americanos dos árabes e do Islã progrediu um pouco. Infelizmente, não é o caso

Há nove anos, escrevi um posfácio ao livro Orientalismo1: insistia não só que inúmeras polêmicas surgidas a partir da primeira edição, em 1978, mas também o estudo que eu fazia das representações do “Oriente”, estavam cada vez mais sujeitas a interpretações equivocadas. O fato de minha reação atual estar mais próxima da ironia do que da raiva mostra apenas que a idade vai chegando. A recente morte de meus dois mentores intelectuais, políticos e pessoais, Eqbal Ahmad e Ibrahim Abu-Lughod2, me trouxe tristeza e resignação, mas também uma vontade teimosa de continuar.

Minha autobiografia, À contre-voie3, descreve as circunstâncias estranhas e contraditórias em que cresci e dá uma idéia das influências que tive durante minha juventude na Palestina, no Egito e no Líbano. Mas essa narrativa termina antes de minha militância política, que começou em 1967, após a guerra dos seis dias. L’Orientalisme está bem mais próximo dos tumultos da história contemporânea. Começa com uma descrição, escrita em 1975, da guerra civil no Líbano – que só terminaria em 1990. No entanto, a violência e os banhos de sangue prosseguem até o dia de hoje. O processo de paz iniciado em Oslo fracassou, a segunda Intifada explodiu e os palestinos passam por um sofrimento terrível, tanto na Cisjordânia reocupada quanto na faixa de Gaza.

Estereótipos triunfalistas

O fenômeno dos atentados-suicidas surgiu, com todas as suas conseqüências detestáveis, não menos atrozes e apocalípticas do que os acontecimentos de 11 de setembro de 2001 e seus prolongamentos: as guerras desencadeadas contra o Afeganistão e o Iraque. Neste mesmo momento em que escrevo estas linhas, continua a ocupação imperial ilegal do Iraque pelos Estados Unidos e a Grã-Bretanha, com efeitos terríveis. Tudo isso faria parte, teoricamente, de um “choque de civilizações” – interminável, implacável e irreversível. Contesto esta idéia.

Nossas lideranças e seus vassalos intelectuais não compreendem que a história não pode ser apagada para que possamos impor nosso modo de vida aos povos inferiores

Gostaria de poder afirmar que a compreensão geral que têm os norte-americanos do Oriente Médio, dos árabes e do islamismo progrediu um pouco. Infelizmente, não é o caso. Por inúmeros motivos, a situação parece bem melhor na Europa. Nos Estados Unidos, o endurecimento das posições, a crescente influência de generalizações condescendentes e estereótipos triunfalistas e a dominação de um poder brutal aliado a um desprezo simplista pelos dissidentes e pelos “outros” refletem-se no saque e na destruição das bibliotecas e museus iraquianos. Nossas lideranças e seus vassalos intelectuais não parecem capazes de compreender que a história não pode ser apagada – como se estivesse escrita num quadro negro – para que “nós” possamos escrever nosso próprio futuro e impor nosso modo de vida aos povos inferiores.

Os tesouros roubados de Bagdá

Escutam-se, freqüentemente, políticos do primeiro escalão – em Washington ou em outro lugar qualquer – falarem em redesenhar as fronteiras do Oriente Médio, como se sociedades tão antigas e populações tão diversas pudessem ser jogadas, como amendoins, para dentro de um frasco. Entretanto, isso já ocorreu muitas vezes com o “Oriente”, esta construção quase mítica, tantas vezes recomposta desde a invasão do Egito por Napoleão, no final do século XVIII. E, a cada vez, os inúmeros sedimentos da história, as narrativas intermináveis, a fascinante diversidade das culturas, das línguas e das individualidades, tudo isso foi varrido, esquecido, relegado ao deserto, como os tesouros roubados de Bagdá e transformados em fragmentos sem qualquer sentido.

Em minha opinião, a história é feita pelos homens e pelas mulheres, mas também pode ser desfeita e reescrita, por meio de silêncios, de esquecimentos, de formas impostas e deformações toleradas, de maneira a que o “nosso” Leste, o “nosso” Oriente, se torne realmente “nosso”, para que o possamos possuir e dirigir. Devo dizer que não defendo um “verdadeiro” Oriente. Em compensação, tenho o maior respeito pela capacidade que têm os povos de defender a visão que têm daquilo que eles próprios são e do que querem vir a ser.

Uma catástrofe intelectual da história

A história é feita pelos homens e pelas mulheres, mas também pode ser desfeita e reescrita, por silêncios, esquecimentos, imposições e deformações

Lançaram-se ataques maciços, de uma agressividade planejada, contra as sociedades árabes e muçulmanas contemporâneas, acusadas de atraso, de ausência de democracia e de indiferença para com os direitos das mulheres. A ponto de nos fazerem esquecer que conceitos como a modernidade, o Iluminismo e a democracia não são, de forma alguma, conceitos simples e unívocos que todo mundo iria descobrir algum dia, como ovos de páscoa escondidos no jardim. A espantosa inconsciência desses jovens e arrogantes jornalistas, que falam em nome da política externa sem possuírem a mais leve noção concreta (nem o menor conhecimento da linguagem das pessoas comuns), fabricou uma paisagem árida, preparada para acolher a construção de um ersatz de livre “democracia” pela potência norte-americana. É inútil conhecer o árabe, o farsi, ou mesmo o francês, para pontificar sobre o efeito dominó da democracia de que o mundo árabe teria maior necessidade.

A vontade de conhecer outras culturas com objetivos de coexistência e de ampliar os horizontes de conhecimento nada tem a ver com a vontade de dominar. Esta guerra imperialista, elaborada por um pequeno grupo de dirigentes norte-americanos não-eleitos e travada contra uma ditadura do terceiro-mundo já devastada, por motivos ideológicos ligados a uma vontade de dominação mundial, de controle sobre a segurança e de escassez de recursos, significa, sem dúvida, uma das catástrofes intelectuais da história, inclusive porque foi justificada e precipitada por orientalistas que traíram sua vocação de pesquisadores. Especialistas do mundo árabe e muçulmano, como Bernard Lewis4 e Fuad Ajami, exerceram uma influência importante sobre o Pentágono e o Conselho Nacional de Segurança de George Bush: ajudaram os falcões a pensarem com conceitos tão grotescos como o “espírito árabe” e o “declínio secular do islamismo”.

Os estereótipos do desprezo

Atualmente, as livrarias norte-americanas estão abarrotadas de grossos livros com títulos ensurdecedores mencionando o vínculo entre “Islã e terrorismo”, o “islamismo posto a nu”, a “ameaça árabe” e outra “conspiração muçulmana”, escritos em estilo político panfletário por autores que pretendem ter obtido suas informações de especialistas que, teoricamente, teriam penetrado na alma dessas estranhas hordas orientais. Belicistas, eles gozam do apoio das cadeias de televisão CNN e Fox News, assim como de um sem-número de rádios evangélicas e conservadoras, da imprensa sensacionalista e até de jornais respeitáveis, todos empenhados em reciclar as mesmas generalidades – impossíveis de verificar – para mobilizar a “América” contra os demônios estrangeiros.

Modernidade e democracia não são conceitos simples e unívocos que todo mundo iria descobrir algum dia, como ovos de páscoa escondidos no jardim

Sem essa impressão, cuidadosamente alimentada, de que essas hordas longínquas não são como “nós” e não aceitam “nossos” valores – estereótipos que constituem a essência do dogma orientalista – a guerra não teria conseguido ser declarada. Todos os poderosos sempre contrataram pesquisadores desse tipo, dos conquistadores holandeses, da Malásia e da Indonésia, aos exércitos britânicos, na Índia, na Mesopotâmia, no Egito e na África Ocidental, e aos contingentes franceses, na Indochina e na África do Norte. Os assessores do Pentágono utilizam os mesmos clichês, os mesmos estereótipos de desprezo, as mesmas justificativas para o uso da força e da violência. “No fundo”, repete o coro, “essa gente só compreende a linguagem da força”. A eles, acrescenta-se, no Iraque, um autêntico exército de empresários privados a quem tudo será confiado – da publicação de livros didáticos à redação da Constituição, da refundação da vida política até a reorganização da indústria petrolífera.

Imagens reducionistas e polêmicas estéreis

Cada novo império sempre pretende ser diferente daquele que o precedeu, argumentando que as circunstâncias são excepcionais, que sua missão consiste em civilizar, em estabelecer a ordem e a democracia e que a força somente será usada como último recurso. O mais triste é que ainda se encontram intelectuais para adocicarem o discurso e falarem de impérios generosos e altruístas.

Vinte e cinco anos após a publicação de meu livro, o orientalismo nos obriga a questionar se o imperialismo moderno algumas vez desapareceu, ou se, na realidade, não vem perdurando desde a entrada de Bonaparte no Egito, há dois séculos. Disseram aos árabes e aos muçulmanos que a vitimologia e a insistência em depredar o império não representavam senão um modo de fugir a suas próprias responsabilidades atuais. “Vocês fracassaram, vocês se enganaram”, afirma o orientalista contemporâneo.

Tudo começou com Bonaparte e continuou com o desenvolvimento dos estudos orientais e a conquista do Norte da África; pesquisas do mesmo tipo se desenvolveram no Vietnã, no Egito, na Palestina e, no início do século XX – com a luta pelo controle do petróleo e dos territórios no Golfo Pérsico – no Iraque, na Síria, na Palestina e no Afeganistão. Depois viria a ascensão dos diversos nacionalismos anticolonialistas, durante o breve período dos movimentos progressistas pró-independência, a era dos golpes de Estado militares, as insurreições, as guerras civis, os fanatismos religiosos, os combates irracionais e a volta à brutalidade absoluta contra os últimos grupos de “indígenas”. Cada uma destas fases suscitaria uma visão adulterada do Outro, com suas imagens reducionistas e polêmicas estéreis.

A coexistência, e não a eliminação

Esta guerra imperialista, elaborada por um pequeno grupo de dirigentes não-eleitos, significa, sem dúvida, uma das catástrofes intelectuais da história

Com L’Orientalisme, pretendi me apoiar na crítica humanista para ampliar o campo das lutas possíveis e substituir, num longo prazo, as breves explosões de raiva descontrolada que se apoderam de nós por um pensamento e uma análise mais profundos. Chamei isto que tentei fazer de “humanismo”, palavra que, por teimosia, continuo utilizando, apesar de rejeitada e desprezada pelos críticos pós-modernos sofisticados.

Por humanismo, penso, em primeiro lugar, na vontade de quebrar os grilhões de nosso espírito criados por William Blake5 para o utilizar como reflexão histórica e racional. O humanismo também é alimentado por um sentimento de comunidade com outros pesquisadores, outras sociedades e outras épocas: não existe um humanista isolado do mundo. Cada campo é vinculado aos outros e nada do que acontece no mundo poderia permanecer, num estado de isolamento e pureza, longe de qualquer influência exterior. Devemos tratar da injustiça e do sofrimento, porém num contexto amplamente inserido na história, na cultura, na realidade sócio-econômica. Nosso papel é o de ampliar o campo de debate.

Durante os últimos 35 anos, passei boa parte de minha vida defendendo o direito à autodeterminação do povo palestino, mas sempre o tentei fazer considerando por inteiro o povo judeu e seu sofrimento, das perseguições ao genocídio. O mais importante, em minha opinião, é que a luta pela igualdade entre Israel e a Palestina deve ter exclusivamente um objetivo humano, que viria a ser a coexistência e não a continuação da eliminação e da rejeição.

O interesse de Goethe pelo islamismo

Sem a impressão de que as hordas de demônios estrangeiros não são como “nós” e não aceitam “nossos” valores, a guerra não teria conseguido ser declarada

Não é por acaso que mostrei que o orientalismo e o moderno anti-semitismo têm raízes comuns. Portanto, para qualquer intelectual independente, a elaboração de modelos alternativos aos dogmas maniqueístas e simplificadores que se baseiam na hostilidade mútua que prevalece no Oriente Médio – assim como em outros lugares, e já há muito tempo – constitui uma necessidade vital.

Como humanista que trabalha na área da literatura, minha idade me permite ter recebido, há 40 anos, um ensino de literatura comparada cujas idéias básicas remontam à Alemanha do final do século XVIII e início do século XIX. Não pode ser esquecida a contribuição fundamental de Giambattista Vico, o filósofo e filólogo napolitano cujas idéias precederam as de pensadores alemães como Herder e Wolf – e seriam retomadas por Goethe, Humboldt, Dilthey, Nietzsche, Gadamer e, enfim, os grandes filólogos do século XX, como Erich Auerbach, Leo Spitzer e Ernst Robert Curtius.

Para os jovens da atual geração, a filologia sugere uma ciência tão arcaica quanto obsoleta, quando é, na realidade, o mais fundamental e criativo dos métodos de interpretação. O exemplo mais admirável é o interesse de Goethe pelo islamismo, em particular pelo poeta Hafiz – paixão avassaladora que o levaria a escrever o West-östlicher Diwan e influenciaria suas idéias sobre a Weltliteratur (literatura do mundo), o estudo de todas as literaturas do mundo como uma sinfonia total que pudesse ser compreendida teoricamente, preservando a individualidade de cada obra, sem, contudo, perder a visão de conjunto.

A exigência da abordagem filológica

Ironicamente, nosso mundo globalizado caminha rumo a esta padronização, a esta homogeneidade que as idéias de Goethe pretendiam justamente evitar. Em seu ensaio Philologie der Weltliteratur, publicado em 1951, Erich Auerbach adverte para o perigo desta evolução, justamente no período do pós-guerra que desembocaria no início da guerra fria. Seu excelente livro Mimesis – publicado em Berna, em 1946, mas escrito durante a guerra, quando se refugiara em Istambul onde ensinava línguas latinas – pretendia ser o testamento da diversidade e da realidade representadas na literatura ocidental, de Homero a Virginia Woolf. Relendo o ensaio de 1951, entretanto, compreende-se que esse grande livro de Auerbach era um hino a uma época em que se analisavam os textos em termos filológicos, de maneira concreta, sensível, intuitiva; uma época em que a erudição e o domínio absoluto de vários idiomas contribuíam para um tipo de compreensão da qual Goethe era o paladino, com sua própria compreensão da literatura islâmica.

O conhecimento de línguas e de história era indispensável, mas nunca suficiente, assim como, por exemplo, o mero acúmulo de fatos não constitui um método adequado para a percepção do que representa um escritor como Dante. A principal exigência da abordagem filológica – da qual Auerbach, assim como seus antecessores, falavam e tentavam colocar em prática – consistia em penetrar, de maneira subjetiva e enfática, na matéria viva do texto a partir da perspectiva de seu tempo e de seu autor (Einfühlung

Ortodoxias nacionalistas e religiosas

O humanismo se alimenta de um sentimento de comunidade com outros pesquisadores, outras sociedades e outras eras: não existe um humanista isolado

Incompatível com o distanciamento ou a hostilidade em relação a outro tempo e a uma cultura diferente, a filologia aplicada à Weltliteratur envolvia um espírito profundamente humanista, do qual brotavam generosidade e – se posso usar esta palavra – hospitalidade. O espírito do pesquisador deve sempre dar lugar, em si mesmo, ao Outro estrangeiro. E esta ação criativa de abertura ao Outro – que, de outra forma, permanece estrangeiro e distante – é a dimensão mais importante da missão do pesquisador.

É evidente que, na Alemanha, tudo isto seria minado, e em seguida destruído, pelo nacional-socialismo. Após a guerra, observa Auerbach com tristeza, a padronização das idéias e a crescente especialização dos conhecimentos reduziram progressivamente as possibilidades desse gênero de trabalho de investigação e de pesquisa infatigáveis, do qual ele era o representante. Ainda mais deprimente é o fato de que, desde a morte de Auerbach, em 1957, a idéia e a prática da pesquisa humanista foram perdendo sua importância central. Ao invés de lerem, no verdadeiro sentido do termo, nossos estudantes se distraem constantemente com o conhecimento fragmentado disponível na Internet e divulgado pelos meios de comunicação de massa.

Pior ainda. Atualmente, a educação vem sendo ameaçada pelas ortodoxias nacionalistas e religiosas divulgadas pela mídia – que se concentram de maneira a-histórica e sensacionalista em guerras eletrônicas longínquas, as quais dão aos espectadores a sensação de “precisão cirúrgica” e ocultam, dessa maneira, o sofrimento e a destruição terríveis provocados pela guerra moderna. Demonizando um inimigo desconhecido, a quem rotulam de “terrorista” para alimentar a raiva da opinião pública, as imagens da mídia dominam grande parte das atenções e podem ser facilmente manipuladas em períodos de crise e de insegurança, como depois dos atentados de 11 de setembro.

O sentido da vida humana

Demonizando um inimigo desconhecido, a quem rotulam de “terrorista”, as imagens da mídia podem ser facilmente manipuladas em períodos de crise e de insegurança

Enquanto norte-americano e árabe, devo pedir ao leitor que jamais subestime o tipo de visão simplista do mundo fabricado por um punhado de civis que trabalham no Pentágono para definir a política norte-americana para todo o mundo árabe e muçulmano. O terror, a guerra preventiva e as imposições de mudanças de regimes – que só são possíveis devido ao maior orçamento militar da história – são as únicas idéias debatidas infatigavelmente por meios de comunicação que produzem pretensos “especialistas” para justificar a linha geral de atuação do governo. A reflexão, a discussão, a argumentação racional, os princípios morais baseados na visão leiga de que os seres humanos constroem sua própria história, tudo isso foi substituído por idéias abstratas que glorificam a exceção norte-americana, ou ocidental, negam a importância do contexto e tratam com desprezo as outras culturas.

O leitor poderia, talvez, me acusar de enveredar por transições muito abruptas, entre a interpretação humanista e a política externa norte-americana, e afirmar, por exemplo, que uma sociedade tecnologicamente avançada, que, com um poder sem precedentes, possui a Internet e os caças F-16, deve, definitivamente, ser dirigida por especialistas técnico-políticos, como Donald Rumsfeld ou Richard Perle. Ocorre, entretanto, que o que perdemos no caminho foi o sentido de densidade e interdependência da vida humana, que jamais poderá ser reduzida a uma fórmula, nem descartada como desnecessária.

Uma “circunscrição eleitoral planetária”

Eis aí um aspecto do debate global. Nos países árabes e muçulmanos, a situação nada tem de melhor. Como demonstrou a jornalista Roula Khalaf em seu excelente ensaio6, a região deslizou para um antiamericanismo que mostra pouca compreensão do que realmente é a sociedade norte-americana. Incapazes de influir na atitude dos Estados Unidos em relação a si próprios, os governos voltam toda sua energia para reprimir e controlar sua população. Daí a escalada do ressentimento, da raiva, das imprecações impotentes, que em nada contribuem para a abertura de sociedades em que a visão leiga da história humana e do desenvolvimento foi varrida pelos fracassos e pelas frustrações, assim como por um islamismo que se baseia em decorar o Corão e apagar tudo o que possa ser pressentido como uma forma concorrente de conhecimento moderno.

As culturas se entrecruzam, se interagem e coabitam de maneira muito mais profunda do que sugerem os modos de compreensão reducionistas que nos impõem

O progressivo desaparecimento da tradição islâmica do ijtihad7 e da interpretação pessoal foi um dos maiores desastres culturais de nossa época, arrastando consigo o desaparecimento de qualquer pensamento crítico e confronto individual com as questões colocadas pelo mundo contemporâneo.

Não digo que o mundo cultural tenha simplesmente regredido, resvalando, de um lado, para um neo-orientalismo agressivo e, de outro, para uma intolerância absoluta. No final de agosto de 2002, apesar de todas as limitações, a reunião de cúpula das Nações Unidas em Johannesburgo revelou a emergência de uma ampla zona de preocupação global comum, anunciando o surgimento de uma “circunscrição eleitoral planetária” que dá um novo fôlego ao conceito, já gasto, de um único mundo. Porém, também aí se deve reconhecer que ninguém tem condições de conhecer a extraordinária unidade complexa de nosso mundo globalizado, ainda que a realidade deste mundo não tenha uma verdadeira interdependência entre suas partes que dê lugar a uma autêntica oportunidade de isolamento.

O humanismo contra a desumanidade e a injustiça

Os terríveis conflitos aqui mencionados – que envolvem populações sob bandeiras falsamente unificadoras, como “a América”, “o Ocidente” ou “o islamismo”, e inventam identidades coletivas para pessoas que, na realidade, são muito diferentes – não podem continuar tendo a força que têm hoje. Devemos nos opor a isso. Diante deles, ainda dispomos de nossa capacidade interpretativa racional, herança de nossa educação humanista. Não se trata de uma piedade sentimental nos convocando a voltarmos aos valores tradicionais e clássicos, mas de reatar com a prática de um discurso mundial leigo e racional.

O humanismo é nossa única barreira – eu até diria a última – contra as práticas desumanas e as injustiças que desfiguram a história da humanidade

O espírito crítico não obedece à ordem de se alistar para ir à guerra, contra um inimigo oficial ou não. Longe de um choque de civilizações premeditado, devemos nos concentrar sobre um trabalho lento, e em comum, de culturas que se entrecruzam, que interagem e coabitam de maneira muito mais profunda do que sugerem os modos de compreensão reducionistas e inautênticos que nos impõem. Porém, essa forma de percepção mais ampla exige tempo, exige uma pesquisa paciente e exige críticas, alimentadas pela crença numa comunidade intelectual difícil de conservar num mundo baseado no imediatismo da ação e da reação.

O humanismo se alimenta da iniciativa individual e da intuição pessoal, e não de idéias recebidas ou de respeito pela autoridade. Os textos devem ser lidos como produções que vivem na história de maneira concreta.

Finalmente, e acima de tudo, o humanismo é nossa única barreira – eu até diria a última – contra as práticas desumanas e as injustiças que desfiguram a história da humanidade. Dispomos, atualmente, de um campo democrático bastante encorajador, representado pelo ciberespaço, aberto a todos, numa escala que nem as gerações que nos precederam, nem tirano algum, nem ortodoxia alguma poderiam ter imaginado. As manifestações mundiais que precederam a invasão do Iraque jamais poderiam ter-se tornado realidade sem as comunidades alternativas, presentes no mundo inteiro, irrigadas pela informação alternativa, profundamente conscientes dos perigos para o meio ambiente, dos direitos humanos e das aspirações libertárias que nos unem neste pequeno planeta.

(Trad.: Jô Amado)

1 - Orientalismo, Companhia das Letras, São Paulo, 1995.
2 - Nascido na Índia, em 1933, e falecido em 1999 no Paquistão, Eqbal Ahmad, professor de Relações Internacionais e de Ciências Políticas, vinculou sua vida à luta pela libertação de inúmeros povos, da Argélia à Palestina, passando pelo Vietnã. Nascido em 1929 e falecido em 2001, Ibrahim Abu-Lughod engajou-se, ainda muito jovem, na batalha pela independência da Palestina. Formado em Ciências Políticas, escreveu inúmeros livros, entre os quais The Transformation of Palestine; Palestinian Rights: Affirmation and Denial; Profile of the Palestinian People e The Arab-Israeli Confrontation of June 1967: An Arab Perspective.
3 - Edição francesa por Le Serpent à plumes, Paris, 2002.
4 - Adepto, de longa data, da luta contra o “perigo islâmico”, Bernard Lewis foi condenado, em 1995, por ter negado a realidade do genocídio armênio.
5 - Considerado, durante muito tempo, como um louco, o escritor inglês William Blake (1757-1827) deixou uma obra literária e filosófica de grande riqueza, orientada para a reconquista da unidade do ser humano. Para ele, Deus só existe no homem. Denunciou a moral cristã que, em sua opinião, é a base da escravidão moral, econômica e política da qual o homem é vítima, e lutou por uma liberdade para a qual a imaginação lhe parecia o principal instrumento.
6 - The Financial Times, Londres, 4 de setembro de 2002.
7 - Esforço de elaboração jurídica, a partir do Corão e dos Hadith (palavras de Maomé).


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