sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Área de segurança Gorazde - a guerra na Bósnia Oriental 1992-1995 - Joe Sacco


Área de segurança GORAZDE: A Guerra na Bósnia Oriental 1992-1995 Converter para PDF Versão para Impressão Enviar por e-mail
Joe Sacco


Entre os anos de 1992 e 1995, durante a Guerra da Bósnia, a imprensa mundial, sempre centrada na capital Sarajevo, realizou uma maciça cobertura da tragédia. Sarajevo tornou-se parte do grande espetáculo mundial. No entanto, na parte oriental do país, a população muçulmana era vítima de selvagerias impostas pelas forças sérvias, que atacavam com uma crueldade impressionante. Isso ficou oculto e desconhecido aos olhos do mundo.

A ONU decidiu agir, criando as "áreas de segurança" nos territórios onde se confinavam os muçulmanos. Esses locais se tornaram os mais perigosos do país, devido ao cerco dos sérvios da Bósnia, que realizavam ataques constantes. Numa dessas áreas, enquanto a comunidade internacional ignorava o assunto e voltava as costas para o problema, a limpeza étnica atingiu seu auge sangrento.

Essa cruel realidade é revelada em Área de Segurança - Gorazde, do jornalista e quadrinista Joe Sacco, que a Conrad Editora está lançando no Brasil.

Gorazde foi a única cidade (na verdade, um enclave - território encravado noutro) que conseguiu sobreviver à guerra contra os muçulmanos no leste da Bósnia. Joe Sacco, o principal nome do "jornalismo em quadrinhos", esteve lá quatro vezes entre o final de 1995 e o começo de 1996, quando a população local já suportava as agruras da guerra havia três anos e meio.

O autor presenciou os pesados bombardeios à cidade e as terríveis conseqüências do conflito: a fome, a luta dos homens para defender suas famílias, as casas em ruínas e incendiadas (quase sempre sem eletricidade ou água corrente) e, principalmente, a ausência de perspectivas e a desesperança da população em um acordo de paz.

Sacco retratou tudo isso de maneira jornalística, com um texto exato e desenhos detalhadíssimos, com um traço no estilo underground, hachuras usadas com mestria e um competente uso das técnicas de contraste de branco e preto.

O resultado é uma obra contundente, que escancara o lado não mostrado da Guerra da Bósnia. Área de Segurança - Gorazde é uma história real, calcada sobre a história de pessoas comum em meio a um conflito irracional. Por isso, mostra também os primeiros passos de um povo em direção a uma nova vida.

O AUTOR
Joe Sacco nasceu em Malta. Formou-se em jornalismo na Universidade do Oregon (EUA). Sua história em quadrinhos Palestina (também publicada pela Conrad), sobre o período que passou nos territórios ocupados, ganhou o American Books Award em 1996 e, no Brasil, recebeu o prêmio HQ Mix de melhor graphic novel estrangeira em 2000.

Em suas obras, o autor estabeleceu o gênero batizado como "jornalismo em quadrinhos". Devido à sua visão nua e realista das guerras, seu trabalho mereceu destaque em veículos como The New York Times, Entertainment Weekly, World Art, Speak, entre outros.


Área de segurança Gorazde - a guerra na Bósnia Oriental 1992-1995

Joe Sacco.
Ed Conrad, 2a edição, 2005

Por Rafael Evangelista

Raras são as vezes que o relato jornalístico de uma guerra consegue retratar toda a sua dramaticidade. Exposta cotidianamente nos telejornais, seus horrores parecem se tornar peças de uma ficção irreal e desinteressante, com suas tragédias nos sendo exibidas intercaladas com anúncios publicitários. Ao usar de um formato normalmente associado à ficção para fazer seu trabalho jornalístico, as histórias em quadrinhos, Joe Sacco consegue justamente o efeito inverso: devolve ao relato de uma guerra todo impacto e força que ele deve ter. Em tempos em que as imagens de vítimas de explosões são censuradas para que não choquem o público – como faz o governo dos EUA –, Sacco consegue provocar a devida repulsa sem usar de sensacionalismos.

Em Área de segurança Gorazde: a guerra na Bósnia Oriental, 1992-1995, o autor, de quebra, ainda consegue explicar o intrincado quebra-cabeças étnico da ex-Iugoslávia. Ele o faz a partir de uma pesquisa histórica que se soma ao relato de suas fontes principais, os muçulmanos. Contudo, embora privilegie esse grupo étnico como fonte, não assume propriamente um dos lados, mostra como todos os grupos, dadas as condições certas, foram capazes de cometer atrocidades. Diz ele, relatando o ambiente no país durante a Segunda Guerra, quando as ações de croatas, sérvios e muçulmanos geraram as feridas que explodiriam nos anos 1990:

“Quando os países do Eixo ocuparam e desmembraram o reino da Iugoslávia, em 1941, instalaram croatas fascistas, os ustasha, no seu próprio estado, que foi expandido para abrigar a Bósnia. A fúria com que os ustasha promoveram seu programa de genocídio e carnificina forçou a conversão religiosa e expulsão da população sérvia restante, deixando até mesmo os nazistas horrorizados. (...) Os chetkins, um tipo de aliança ampla entre sérvios nacionalistas e monarquistas, procuravam estabelecer uma Sérvia grande, limpa de não-sérvios. Agitavam uma guerra cruel contra os croatas da Bósnia, os cidadãos muçulmanos (vistos como colaboradores dos ustasha) e os partisans, que eles viam como rivais de pós-guerra. (...) Os muçulmanos da Bósnia podiam ser encontrados em todos os lados do conflito. Uns poucos se aliaram às chetniks. Outros se juntaram à perseguição dos sérvios pelos ustasha. Milhares se voluntariaram aos alemães para formar uma divisão muçulmana da SS, que comenteu atrocidades anti-sérvios”.

O país só foi estável na época de Josip Broz, conhecido como Tito. O general, líder da resistência comunista que conseguiu vencer os nazistas na Segunda Guerra, controlou o país de maneira autoritária, mas conseguiu manter os grupos nacionalistas étnicos em silêncio. Tito conseguiu forjar uma identidade iugoslava entre um povo etnicamente diverso, cujos maiores grupos eram os croatas católicos, os sérvios cristãos ortodoxos e os muçulmanos. Mas tudo passou a ruir depois da morte do general, em 1980, quando os políticos passaram a usar as rixas étnicas para se legitimarem.

A Bósnia, que era um dos estados da antiga Iugoslávia, localizada no centro do país, era e continua sendo o maior caldeirão étnico. Até hoje, a presidência da atual Bósnia-Herzegóvina é exercida de modo rotativo entre os três principais grupos étnicos (croatas, bósnios e sérvios). Croatas e bósnios (eslavos convertidos ao islamismo durante a ocupação otomana) ocupam principalmente a região da Federação da Bósnia-Herzegóvina, enquanto os sérvios ocupam a República Srpska. Esses dois estados relativamente independentes são resultado dos conflitos dos anos 1990.

Sacco coletou a maior parte de seu material em um enclave bósnio, Gorazde, de 1992 até o fim dos conflitos, em 1995. A cidade estava completamente sitiada por tropas sérvias e isolada da capital Sarajevo. A Sérvia era um dos estados da Iugoslávia e buscava sua independência. Porém, como na região da Bósnia, que fica a oeste, também era habitada por sérvios, as forças que buscavam a independência daquele estado planejam uma expansão territorial. Nessa luta, as animosidades étnicas foram suscitadas por políticos interesseiros e o livro mostra como sérvios e muçulmanos, que conviviam em harmonia, partiram para um conflito sangrento.

O autor coletou depoimentos de muçulmanos de Gorazde, que se lembram de seus amigos de infância sérvios e da convivência pacífica em que as diferenças de origem e religiosas pouco importavam. Mostra como surgiu uma espiral de violência que deixou feridas irreparáveis. Ao mesmo tempo, relata o cotidiano daquela que deveria ser uma área de segurança protegida pela ONU, mas que vivia sob constante ameaça. Embora tenham tido suas vidas viradas do avesso, presenciando horrores e sofrendo com perdas familiares, as pessoas continuam frequentando os bares, conversando sobre futilidades e sonhando com o futuro.

O livro/gibi alterna momentos divertidos com passagens em que o leitor é praticamente obrigado a interromper a leitura, tal o mal estar causado pelos relatos de atrocidades – como quando o médico da cidade conta sobre suas 38 horas ininterruptas de cirurgias feitas sem anestesia nos pacientes, ou quando um cinegrafista amador tenta vender suas filmagens dos destroços (de edifícios e pessoas). A principal contribuição, além do mapa que faz de um conflito que parece incompreensível se acompanhado pelos jornais, é exatamente essa, mostrar como a guerra é feita por e entre humanos – com todas as suas virtudes, idiossincrasias e defeitos.



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