sábado, 10 de novembro de 2007

Estados Unidos, uma lição de barbárie - por Gilson Caroni Filho

Estados Unidos, uma lição de barbárie

Assistimos, nas duas gestões de George W. Bush, a um retrocesso histórico-político sem precedentes. O capital, autonomizado da política, faz tábua rasa dos preceitos mais elementares da modernidade.

Quando George W. Bush acena com a redução gradual de soldados no Iraque, mas se recusa a promover uma mudança radical de estratégia, afirmando que a presença militar americana continuará após sua saída da Casa Branca, que leitura se pode fazer? O ocaso do império e a perda de dinamismo da economia serão inversamente proporcionais à ferocidade de seu papel de polícia do mundo, por mais desmoralizado que ele se encontre. Uma vez instalada, a barbárie não retrocede aos apelos kantianos por uma paz perpétua. Não nos iludamos com o médio prazo. Tentemos aprender com as lições recentes.

Os saques promovidos contra o Museu Nacional de Bagdá, em 2003, não devem ser debitados apenas à "negligência" das forças de ocupação anglo-americanas. A destruição de tesouros arqueológicos das civilizações que viveram às margens do Tigre e do Eufrates foi, talvez, o mais emblemático ato da invasão imperialista. A mais significativa aplicação prática da doutrina expressa no "Project for New American Century": o avanço sobre destroços. Não como conseqüência inelutável de confronto surgido em uma conjuntura inesperada, mas como premissa de expansão mundial, calcada na supremacia militar e no fundamentalismo neoconservador que empolgou o poder norte-americano. Bush é Deus e Paul Wolfowitz (lembram dele?) seu profeta.

A terra arrasada será sempre a do "outro", dos bárbaros, dos que não foram "eleitos" dentro dos cânones pentecostais para purificar o mundo. Os predestinados têm algo a destruir para preservar os interesses nacionais. O que precisava ser eliminado não eram apenas o Iraque, muito menos o Irã, Coréia ou Cuba.

O verdadeiro "eixo do mal" é, na ótica do império, a civilização e sua história. Quanto menos vestígios, maior a possibilidade de êxito da desconstrução em andamento. Francis Fukuyama, apesar do arrependimento, terá, custe o que custar, dado a palavra final. E será o final da palavra. A vida, tal como prenunciou Macbeth, será uma história cheia de som e fúria contada por um idiota e que, no fim das contas, nada significará.

Superpotência condenada por debilidades estruturais de sua economia, os Estados Unidos convivem com crescente perda de hegemonia mundial. A incapacidade - apesar do colossal aparato midiático - de universalizar os seus interesses específicos se dá em um cenário de gigantescos déficits fiscais e comerciais, dependência de aportes de capitais europeus e asiáticos , além da necessidade de ampliação de reservas petrolíferas para atender à demanda doméstica. Tais fatos, somados às deformações constitutivas apontadas por Tocqueville, explicam o fim do regime republicano no maior país capitalista do mundo e a lógica da barbárie que se avizinha.

Assistimos, nas duas gestões de George W. Bush, a um retrocesso histórico-político sem precedentes. O capital, autonomizado da política, faz tábua rasa dos preceitos mais elementares da modernidade. No coração do Império, a distinção, tão cara ao republicanismo, entre "Imperium" e "dominium" se esfuma na absorção da sociedade política pela lógica do mercado.

O patrimonialismo, quem diria, se instalou fagueiro na terra do Tio Sam. O establishment se descolou da democracia, vista como obstáculo à governabilidade. Fraturada a hegemonia, só restou avançar fazendo ouvidos moucos à opinião pública mundial. Nunca caminhamos tão celeremente de volta ao estado de natureza hobbesiano. A ironia está no Estado Policial como avalista do esfacelamento da sociedade civil. De momento de eticidade em Hegel, o “glorioso” Estado se tornou o gestor executivo de uma ordem que anuncia o lema dos tempos pós-industriais: "homini lupus homini". Hobbes se vinga de Rousseau.

Para a tradição socialista, tão mais combativa quanto preparada teoricamente estiver, o quadro aterrorizante não surpreende. Há muito tempo, autores como Rosa Luxemburgo atentaram para o fato de que capitalismo e barbárie não eram incompatíveis. Pelo contrário, a segunda decorreria do desenvolvimento do primeiro.

Termos sucumbidos a ilusões reformistas, talvez tenha sido a maior vitória ideológica dos filhos de Adam Smith. Que, justiça seja feita, nunca descuraram das condições subjetivas para a reprodução de sua ordem social. O confinamento na vida privada, o narcisismo exacerbado, a competitividade sem sentido e o individualismo irrestrito semearam a despolitização para colher o assentimento aos ditames do” homo demens”.

Felizmente o quadro acima é restrito à formação social norte-americana. Não encontra equivalente, ao menos na mesma escala, em outros países. E é da impossibilidade de enquadramento geral que nasce o temor da classe dirigente estadunidense. A truculência nazista de Rumsfeld, Bush, Cheney e Wolfowitz, em seus dias de prestígio, era proporcional ao medo da resistência que pressentiam. Sabiam que o pragmatismo cínico não elimina o devir. Que as contradições não são eliminadas por decreto.

Para eles, a civilização é um incômodo a ser removido. Um mal a ser extirpado a ferro e fogo. O caráter simbólico das ações predatórias encontra aqui sua real intenção. Se o que pretendem é eliminar o "mal" da herança humanista, melhor destruir seu berço. Que se evaporem 5.000 anos de história escrita, as tradições sumerianas, as lembranças dos Impérios da Babilônia e dos persas. Que se destrua Najaf, que sítios arqueológicos sejam saqueados, e estátuas e cerâmicas destroçadas.

Essa é a contribuição de quem pode oferecer bomba de fragmentação e um "mclanche feliz". Para o ex- secretário de Defesa, Donald Rummsfeld, isso era natural: "A liberdade é bagunçada mesmo". Essa foi a contribuição neoliberal para o caro conceito de liberdade forjado nos marcos da Revolução Francesa.

EUA e os então governantes da Inglaterra e Espanha anunciaram o fim da modernidade. Em troca, tal como está no "Project for New American Century" prometeram "uma dominação de espectro amplo". Nisso contam com o posto avançado dos Estados Unidos no Oriente: o Estado de Israel e sua política externa, calcada no extermínio sistemático do povo palestino.

Talvez a opinião pública mundial já tenha isolado o vírus causador da barbárie e elaborado o antídoto. Terá porções de Thomas Jefferson, doses de "Magna Carta", sensibilidade ante o horror de Guernica e a cultura libertária da diáspora judaica.

Vencida a primeira etapa, há que se erguer as bases para um novo contrato interestatal que tenha como premissas a multilateralidade e uma ordem socialista e democrática. As bases de peças de terracota terão demonstrado aos mísseis "Tomahawk” que nem tudo que é sólido se desmancha no ar.


Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, e colaborador do Jornal do Brasil e Observatório da Imprensa.


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