segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Educar para a cidadania - por Frei Betto

Educar para a cidadania

Por Frei Betto (*)

Cidadania rima com democracia. Se nem se sabe o nome do político em que se votou nas últimas eleições, e muito menos o que andou fazendo (ou desfazendo), como participar das decisões nacionais? Assim, nossa democracia permanece meramente representativa. Dá-se um bom emprego a um político. Sem se dar conta de que são reflexos diretos da política o preço do pão, a mensalidade da escola, a qualidade de vida, o tamanho do aluguel e a possibilidade de férias.

Ser cidadão é entrar em um nó de relações. Desencadear um processo sócio-econômico com efeitos na qualidade de vida da população. É simples: quando se pede nota fiscal, evita-se a sonegação e aumenta-se a arrecadação pública que, em tese, permite ao governo investir em equipamentos e serviços essenciais a uma vida melhor: rodovias, hospitais, escolas, segurança etc. Quando se recusa a propina ao guarda, moraliza-se o aparato policial. Quando se protesta contra a violência e a pornografia televisivas, exigindo que a sociedade controle o conteúdo da TV e deixe de consumir produtos dos patrocinadores de programas anti-éticos (não confundir com censura, praticada pelos donos das emissoras), dilata-se o processo democrático.

Cidadania supõe, portanto, consciência de responsabilidade cívica. É como a parábola do menino que, na praia, devolvia ao mar um e outro dentre milhares de peixinhos que a maré havia jogado na areia. Alguém objetou: "De que adianta! Você não poderá salvá-los todos". Ao que o menino respondeu: "Sim, sei disso. Mas este - e mostrou um peixinho que dançava em sua mão - está salvo". E jogou-o de volta à água.

Nada mais anticidadania do que essa lógica de que não vale a pena chover no molhado. Vale. Experimente recorrer à defesa do consumidor, escrever para os jornais e as autoridades, dar o exemplo de consciência de cidadania. Querem os políticos corruptos que passemos a eles cheque em branco para continuarem a tratar a coisa pública como negócio privado. E fazemos isso todas as vezes que torcemos o nariz para a política, com aquela cara de nojo.

Cidadania rima ainda com solidariedade. Cada um na sua e Deus por ninguém é o que propõe a filosofia neoliberal. Sem consciência de que somos todos resultados da loteria biológica. Nenhum de nós escolheu a família e a classe social em que nasceu. Injusto é, de cada 10 brasileiros, 6 nascerem entre a miséria e a pobreza (e nascem por ano, no Brasil, cerca de 3 milhões de pessoas). Ter sido sorteado não implica uma dívida social?

A solidariedade se pratica com participação nos movimentos sociais - Igrejas, movimentos populares, sindicatos, partidos, ONGs, administrações políticas voltadas aos interesses da maioria. Uma andorinha só não faz verão. Como diz a canção, sonho de um é sonho; de muitos, vira realidade.

Se prefere deixar "tudo como está para ver como fica", não se assuste quando lhe enfiarem um revólver na cara ou exigirem que trabalhe mais por menos salário. Afinal, você merece, como todos aqueles que não percebem que cidadania e democracia são sempre uma conquista coletiva que depende do corajoso empenho de cada um de nós.

É preciso intensificar a educação para cidadania. É equivocada a idéia de que voluntários são pessoas que não precisam de trabalho remunerado, pois dispõem de renda. São pessoas pobres, a maioria dos que conheço, ou remediadas que, além de seus trabalhos profissionais, dedicam tempo a obras assistenciais ou movimentos sociais. Espalhada pelo país, há uma imensa rede de creches, asilos, escolas informais para crianças carentes, hospitais, oficinas de arte e artesanato, cooperativas etc., que contam com a participação de homens e mulheres que, ali, sentem-se felizes por fazerem outros felizes.

A dificuldade de se obter voluntários é maior na classe alta que, objetivamente, dispõe de tempo e recursos para ajudar aos mais pobres. É como se a educação para o egoísmo, em função da preservação do patrimônio, prevalecesse sobre a educação para o altruísmo. Quando muito, um chá para angariar fundos a pedido de uma primeira-dama. Nada de contato com pobres, "essa gente fedorenta que só sabe pedir...", como ouvi da boca de um executivo.

Há exceções, em geral pessoas que passaram por algum trauma - doença, separação, morte de um filho -, e descobriram que a solidariedade é o melhor remédio para angústias individuais. Como ensinava Charles De Foucauld, encucações são luxo para quem não se preocupa com o problema dos outros. O amor ao próximo é a melhor terapia, baseada em motivação ética ou espiritual.

Recordo a minha alegria infantil ao distribuir, num hospital pediátrico, brinquedos e roupas que me sobravam no armário. Hoje, muitas escolas mantêm parcerias com associações de favelas e movimentos populares, educando seus alunos em serviços à população de baixa renda, como alfabetização, teatro e aprendizado de habilidades profissionais. Uma delas promove, todo fim de ano, excursão dos formandos ao Vale do Jequitinhonha (MG), onde passam um mês prestando auxílios de saúde e educação. E, nesses casos, quem vai para ensinar retorna repleto de novas lições aprendidas. É nessa linha que atuam também os programas Escolas Irmãs, vinculado ao Fome Zero (escolasirmas@planalto.gov.br) e o "Jovem Voluntário. Escola Solidária" (facaparte@facaparte.org.br).

Muitos se queixam de que o mundo vai mal, o governo é incompetente, os políticos oportunistas. Mas o que faço para melhorar as coisas? Nada mais caricato que o sujeito que fica sentado, arvorando-se em juiz de tudo e de todos. É, no mínimo, um chato.

Havia em São Paulo um travesti, Brenda Lee, que batizei de Cleópatra em meu romance Alucinado Som de Tuba (Ática). Antes de morrer assassinado, ocupou-se de cuidar de seus companheiros contaminados pela Aids. Não esperou que o poder público o fizesse. Transformou a pensão em que morava em hospital de campanha. Foi a primeira pessoa física a obter, na Justiça, verba pública para a sua iniciativa.

O dilema é educar para a cidadania ou deixar-se "educar" pelo consumismo, que rima com egoísmo.

(*) Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Paulo Freire e Ricardo Kotscho, de "Essa escola chamada vida" (Ática), entre outros livros.
11/10/2006 - 08h10
(Envolverde/America Latina em Movimento)

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