A vitória latino-americana
A Latinoamericana – Enciclopédia Contemporânea da América Latina e do Caribe – foi escolhida a melhor obra de não-ficção publicada no Brasil em 2006, após ter recebido o Prêmio Jabuti de Melhor Livro de Ciências Humanas, outorgado pela Câmara Brasileira do Livro. A obra, um volume de 1.344 páginas, publicada pela Boitempo Editorial e pelo Laboratório de Políticas Públicas da Uerj, foi concebida e produzida em três intensos anos de trabalho, reunindo o que de melhor existe no pensamento latino-americano, expresso em verbetes sobre todos os países da região, em várias dezenas de temas fundamentais – de energia a movimentos sociais, de literatura a cinema, teatro, artes plásticas, de esportes a Estado, de gastronomia a feminismo, entre tantos outros –, além de personagens, fenômenos, instituições e outros temas do continente, sob coordenação de Ivana Jinkings, Carlos Eduardo Martins, Rodrigo Nobile e minha.A obra não foi concebida, nem de longe, buscando reconhecimentos públicos, justamente porque procuramos resgatar um continente que costuma ser desconhecido ou maltratado pela mídia e até mesmo por grande parte da academia e das editoras. Sabíamos que trabalhávamos contra a corrente. O pensamento conservador – a direita – não gosta da América Latina e do Caribe. Procura até mesmo descaracterizar que nossos países componham um mesmo continente. Alegam diferenças entre México e Argentina, entre Brasil e Equador, entre Guatemala e Uruguai, entre Cuba e Chile para tentar desfazer a identidade do continente. Como se essas diferenças fossem maiores do que as existentes entre Bélgica e Portugal, Alemanha e Itália, Espanha e França.
O que dá a identidade da Europa e da América Latina são destinos históricos comuns. Eles foram colonizadores do nosso continente, fazendo de nós colonizados. Seguiram sendo imperialistas e nós, dominados. Hoje pertencem ao universo dos globalizadores e nós, ao dos globalizados. Por isso eles têm uma identidade comum e nós, a nossa, a despeito das diferenças culturais, lingüísticas e outras.
A direita não gosta da América Latina e do Caribe porque não se pode falar dela sem falar de colonialismo e de escravidão, antes de tudo. Porque o nosso continente foi ocupado e explorado pelas potências coloniais com o fim único de acumular riqueza para as metrópoles. O capitalismo chegou à América Latina perpetrando os dois maiores massacres da história da humanidade: a dizimação das populações indígenas e a escravidão – arrancando milhões de seres humanos da África para trabalhar como escravos, discriminados, reprimidos, humilhados, ofendidos, em outro continente, separados dos seus países e das suas famílias, para produzir riquezas para os colonizadores brancos.
O continente foi incorporado à força ao sistema capitalista mundial nascente, sob hegemonia ibérica, depois inglesa e finalmente estadunidense, mediante a espoliação colonial e a exploração dos trabalhadores africanos, tornados escravos. Sem esses antecedentes, é impossível compreender sua história, sua trajetória, sua identidade.
Depois de ter visto se impor – com a ditadura de Pinochet – o neoliberalismo no continente, que se estendeu como em nenhuma outra região do mundo, a América Latina e o Caribe é hoje a região do mundo que mais resiste ao neoliberalismo e à hegemonia imperial estadunidense. É a única que constrói processos de integração regional, aquela onde se desenvolve a primeira grande experiência de alternativas ao livre comércio – a Alba –, com espaços de intercâmbio solidário.
A Enciclopédia abarca os últimos cinqüenta anos do continente, incorporando ainda o período desenvolvimentista, todo o período neoliberal e a situação atual, de criação de alternativas ao neoliberalismo. Apresenta a América Latina e o Caribe com todas as suas fisionomias, suas tonalidades, seus risos e suas lágrimas, suas lutas e suas festas.
A Latinoamericana será proximamente publicada em castelhano, enquanto buscamos a possibilidade de traduzi-la para o inglês. A obra merece. Mas sobretudo a América Latina e o Caribe merecem.
Como disse ao recebermos o prêmio, na Sala São Paulo, este representa um reconhecimento da importância da América Latina e do Caribe, do trabalho coletivo e dessa extraordinária pequena grande editora, a Boitempo, e quem a dirige – Ivana Jinkings, a melhor editora do Brasil.
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