Nunca se produziu tanta comida no mundo. E nunca houve tantos famintos em todos os quadrantes do planeta. Esta é a realidade apontada pela Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO). Segundo ela, 842 milhões de seres humanos encontram-se em permanente situação de insegurança alimentar, seja nos inóspitos campos africanos ou nas pujantes metrópoles dos países industrializados. É, sem dúvida, uma situação perversa que se estende por todo o planeta e apresenta alguns de seus piores dramas aqui no Brasil.
O país pentacampeão de futebol e com reconhecida excelência em vários setores da atividade humana carrega também o título de ser uma das nações com maior desigualdade social no mundo. Esta situação vergonhosa vem sendo mantida ao longo dos séculos, mesmo tendo o Brasil atingido o maior índice de crescimento do mundo, no século 20. Podemos ter provas desta desigualdade apenas olhando pelas janelas de nossos escritórios. Mas onde ela se manifesta de forma mais cruel (porque invisível) é nas estatísticas, notadamente naquelas que dizem respeito aos índices de desperdício de alimentos. O Brasil da fartura - um dos únicos países que pode plantar e colher em qualquer lugar do seu território, em todos os meses do ano -, é também o Brasil da carência ou da falta de comida para milhões de seus cidadãos. Como pode? O Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social está lançando neste mês de uma publicação que tenta responder esta e outras perguntas. Mais do que isso, procura mostrar a contribuição que as empresas podem dar para a diminuição do desperdício de alimentos e para o combate à fome, além de casos concretos que já produziram bons resultados, iniciativas de empresas ou de entidades da sociedade civil. Estou me referindo a "O compromisso das empresas com o combate ao desperdício de alimentos", trazendo números sobre o setor agropecuário nacional, o custo social das perdas de alimentos e com exemplos que incentivam a adoção de modelos pelos quais as empresas podem contribuir sistematicamente para a promoção da segurança alimentar, principalmente entre a população pobre de nosso país.
Entre 2003 e 2004, a safra de grãos bateu recorde no Brasil - 123 milhões de toneladas. Neste mesmo período, o rebanho bovino comercial tornou-se o maior do mundo, somando mais boi do que gente: 193 milhões de cabeças de gado contra 182 milhões de habitantes. O País também tem 737 milhões de frangos.
No entanto, boa parte desta riqueza não chega à mesa dos brasileiros, desperdiçada que fica durante o trajeto entre o campo e o consumidor final. A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) calcula que as perdas em grãos estimadas entre 11 milhões e 16 milhões de toneladas - seriam suficientes para alimentar melhor até 18 milhões de famílias. Bastaria, para isso, tomar mais cuidado com a colheita, a armazenagem e o transporte das safras. No consumo, há outro problema: nas grandes capitais, o brasileiro come quase tanto quanto aquilo que joga fora - cada pessoa consome 35 toneladas/ano; jogam-se fora 33 toneladas/ano de alimentos por habitante. Em termos financeiros, as perdas com alimentos chegam a quatro bilhões de reais, quantia suficiente para alimentar 32 milhões de brasileiros, um Fome Zero.
Para o setor empresarial, combater a miséria e a fome no Brasil não é apenas uma questão de consciência humanitária. Trata-se também da sobrevivência do próprio negócio. Para continuar crescendo e obtendo lucros, a empresa precisa operar numa comunidade onde, no mínimo, as pessoas possam ter alimentação saudável e na quantidade adequada todos os dias. A prática da gestão socialmente responsável deve passar pela consciência de que não é benéfico para nenhum tipo de empreendimento ficar à margem das iniciativas que vão sendo construídas por diversos segmentos da sociedade civil para atingir o desenvolvimento sustentável - até porque o consumidor de hoje está mais atento e leva em consideração o compromisso da empresa com a solução dos problemas sociais, na hora de decidir qual produto ou marca comprar. Eu acredito que o Brasil pode acabar com a fome, juntando a força do setor empresarial com a criatividade e a iniciativa das organizações sociais e políticas públicas. A publicação citada apresenta alguns programas bem-sucedidos de combate ao desperdício de alimentos. Mas podemos e devemos fazer mais, se quisermos deixar um país melhor para as gerações futuras.
(*) Oded Grajew é presidente do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, presidente do Comitê Brasileiro do Pacto Global; idealizador do Fórum Social Mundial; idealizador e ex-presidente da Fundação Abrinq (período 1990-1998); membro do Conselho de Desenvolvimento Social e Econômico.
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