quinta-feira, 27 de março de 2008

"GENOCÍDIO CULTURAL" - Tibete, ameaça à China?

A recusa de Pequim ao diálogo com o Dalai Lama não tem razões econômicas: está relacionada ao impulso nacionalista e ao temor de que a revolta agudize tensões hoje contidas na China. Mas tal postura tende a radicalizar a juventude tibetana e atiçar conflitos que outras potências desejam...

por Roberto Cattani

Em seu livro ‘Bestas, Homens e Deuses’, F. Ossendowsky conta um episódio por ele testemunhado em 1920, quando fugia da Revolução Russa rumo ao Tibete. Na estepe do que hoje seria o Quirguistão, um monge budista a cavalo, com o crânio raspado e a tradicional túnica amarela e roxa tibetana, atacava a galope os acampamentos do exército bolchevique, cortando as cabeças com uma espada e semeando o terror entre os soldados russos (teoricamente comunistas, mas ainda muito supersticiosos). O monge misterioso nunca foi preso, nunca foi morto, e nunca se soube quem era de verdade; mas ele se tornou uma lenda da resistência dos povos da Ásia Central à maré vencedora do que para a cultura local era “a barbárie russa” e “a abominação bolchevique”, atéia e materialista.

Pensei no relato de Ossendowsky lendo a notícia que dias atrás alguns jovens tibetanos atacaram a cavalo, armados de espadas (!), os soldados chineses que sitiavam o mosteiro Bumying, no Sichuan (uma das quatro províncias chinesas que faziam parte do Tibete pré-1950, nas quais ainda vivem muitos tibetanos), um dos que hastearam a bandeira do Tibete livre. Não pode ser coincidência. Esses jovens decidiram reencarnar o lendário monge vingador. O passado não morreu no Tibete, ele está bem presente e vivo. Da mesma forma que o opressor contra o qual lutar é no fundo o mesmo, o imperialismo militar e cultural da Rússia e da China, os grandes vizinhos que cercam a Ásia Central. A ideologia (pelo menos teórica) que os russos usavam e os chineses ainda usam para justificar a invasão ainda é a mesma, a "ditadura do povo" (do povo dominante, do ponto de vista étnico, para usar as categorias gramscianas).

Também não é coincidência que a linguagem usada pelo governo chinês para atacar o Dalai Lama seja a mesma retórica de milênios atrás. “Um lobo vestido de monge”, “um monstro com cara humana, mas coração de fera”, parecem definições bastante improváveis e até ridículas para se referir ao Dalai Lama — mas é assim que o chamou Zhang Qingli, secretário comunista de Lhasa, em resposta aos apelos ao diálogo do líder espiritual em exílio. “As autoridades chinesas e tibetanas ligadas ao regime chinês precisam criar um inimigo transformando a imagem de um campeão de moderação, como o Dalai Lama, num ser mítico hediondo, sem nenhum nexo com a realidade", escreveu em Foreign Affairs Song Yongyi, professor de História da China moderna da universidade da Califórnia. Para conseguir fazer isso, avalia, "eles acabam utilizando o velho vocabulário maoísta, que por sua vez já era derivado de uma mistura de invectivas da tradição popular chinesa e de retórica do marxismo clássico. Parece até que voltaram para a época sombria da Revolução Cultural”.

Genocídio cultural quer dizer, hoje, hipermercados (chineses), bancos (chineses), eletrônica (chinesa), restaurantes e hotéis (para chineses) invadindo as cidades tibetanas

O Tibete deveria ter sido tombado por inteiro há décadas, pela Unesco, como Patrimônio da Humanidade. Seus mosteiros guardavam um imenso tesouro de fé, sabedoria e práticas religiosas que foi saqueado, dispersado e sistematicamente destruído pelos ocupantes maoístas durante décadas. O pouco que sobra hoje é minado pela modernização forçosa e sub-reptícia. Genocídio cultural quer dizer hoje as barulhentas comitivas de turistas chineses, vulgares e arrogantes, visitando como um lugar exótico o Palácio Potala, antigo mosteiro-mor e residência oficial do Dalai Lama e outros lugares sagrados do budismo tibetano. Quer dizer também hipermercados (chineses), bancos (chineses), eletrônica (chinesa), restaurantes e hotéis (para chineses) invadindo as cidades tibetanas. Quer dizer a ferrovia recém-inaugurada entre Pequim e Lhasa, na qual, além dos trens de carga, deverá viajar “o trem mais luxuoso do mundo”, segundo a propaganda, com “suítes cinco estrelas” para os turistas globais. Um detalhe: os vagões serão blindados, com vidros a prova de bala. Nunca se sabe...

Talvez só a Vaticano contenha um patrimônio cultural-religioso comparável aos tesouros guardados antigamente nas gigantescas lamaserias da Himalaia, onde milhares e milhares de monges produziam e conservavam obras-primas. A diferença é que o Tibete era − e só em parte ainda é − um país inteiro que vivia exclusivamente em função de seu sistema religioso, para sustentá-lo e eternizá-lo, sistema que proporcionava ao Tibete uma unidade fortíssima e identidade cultural milenária. Por isso mesmo, os chineses aplicaram-se, desde 1950, a destruir 70% dos mosteiros e matar metade dos monges tibetanos, obrigando finalmente o Dalai Lama ao exílio graças a uma fuga aventurosa, depois de muitas ameaças. Por isso, o Dalai Lama é a maior autoridade religiosa tibetana, e ao mesmo tempo seu único grande líder político.

O budismo, a cultura oriental e a cultura do mundo todo perderam no saque do Tibete. Mas a comunidade internacional não mexeu um dedo — assim como não nada fez na Armênia, em Biafra, Ruanda, e continua não fazendo no Darfur, etc. Vender Mercedes e Windows para os chineses é bem mais prioritário.

O paradoxo do risco que os chineses estão correndo diante da opinião pública internacional, às véspera dos Jogos Olímpicos, é que o Tibete é um país onde há pouquíssima gente, só montanhas e desertos, e praticamente nenhuma riqueza conhecida — a não ser o imenso patrimônio cultural-religioso. É puro imperialismo nacionalista. Os tibetanos são hoje 6 milhões, para um território do tamanho da Europa. Na época da ocupação chinesa, em 1950, eram 5 milhões: os chineses mataram 1,2 milhões, anexaram à China um terço do Tibete e ocuparam o resto, empossando um regime fantoche de comunistas tibetanos. Hoje, o Tibete representa 28% do território chinês, enquanto os tibetanos representam 0,5% da população.

Da brutalidade no Tibete transparece o temor do governo, de que a religião possa se tornar o estopim de reivindicações dentro da própria sociedade chinesa

Contudo, na China há, sem contar os tibetanos, 150 milhões de budistas maaiana devotos, que podem praticar seu culto com relativa liberdade, desde o fim oficial do maoismo. Da brutalidade no Tibete transparece o temor do governo chinês de que a religião possa se tornar o estopim de reivindicações dentro da própria sociedade chinesa. Como acontece cada vez mais em outras partes do mundo, a fé e o movimento político-religioso passariam a ser a base para uma demanda de alternativa social. É interessante lembrar que em 1979, no auge da abertura pós-maoista do regime chinês, Deng Xiaoping convidou para uma visita oficial no Tibete o irmão do Dalai Lama, para iniciar um diálogo. A chegada do irmão do líder bastou para desencadear um entusiasmo delirante na população tibetana. As manifestações de acolhida logo se transformaram em passeatas nacionalistas anti-chinesas, aos gritos de "Tibete independente" e "Fora os chineses".

O diálogo com o Dalai Lama congelado até hoje. Foi o atual presidente da República Popular da China, Hu Jintao, então governador justamente do Tibete, quem esmagou, em 1989, com um massacre, outro levante nacionalista, três meses antes dos protestos na praça Tienanmen. A incapacidade de qualquer abertura ao diálogo com o Dalai Lama e com a sociedade tibetana não-subserviente é um sinal de nervosismo − e, no fundo, de fraqueza − do regime chinês, amplificado pela proximidade dos Jogos Olímpicos.

“Há uma discriminação clara dentro do Tibete: em sua própria terra, os tibetanos são tratados como cidadãos de segunda classe. É uma situação muito negativa, que as autoridades locais endureceram mais ainda nos últimos tempos. Os monastérios são cerceados com restrições crescentes e os monges têm até que passar por uma reeducação política. Pelo que sabemos, através dos tibetanos que se refugiam no exterior, 95% da população tibetana está muito, muito ressentida e magoada”, afirmou há duas semanas o Dalai Lama.

Os tibetanos acompanharam os acontecimentos da revolta no Myanmar no ano passado com uma participação que beirava a identificação: as destemidas iniciativas dos monges budistas birmaneses serviram de choque despertador e depois de exemplo para a parte mais revoltada da sociedade tibetana. Há meses, justamente depois da revolta no Myanmar, a repressão chinesa foi intensificada, com prisões, torturas e deportações de monges fiéis ao Dalai Lama. Qualquer tomada de posição do líder budista, no sentido de um apelo à revolta − ou mesmo só à resistência social − repercutiria para muito além das fronteiras tibetanas, no interior da China, onde a religião tem de novo uma presença muito forte, depois de décadas de quase aniquilação. Mas o próprio Dalai Lama insiste em preferir o caminho da não-violência, tentando tratar com as autoridades chinesas que o desprezam publicamente.

Parte dos estudantes tibetanos escolheu claramente a resistência passiva, com passeatas e sit-in. Outra, radicalizada e materialista, não considera mais necessariamente o Dalai Lama como o guia

Não é impensável que justamente a moderação do Dalai Lama (em confortável exílio na Índia), perante os odiados Han [1] e sua humilhação como símbolo do Tibete tenham exacerbado, entre os mais revoltados jovens tibetanos, a tentação de lançar uma "intifada budista". Uma parte dos estudantes tibetanos escolheu claramente a resistência passiva, com passeatas e sit-in, em resposta aos apelos do Dalai Lama. Outra − uma porção importante, pelo que tudo indica − não considera mais necessariamente o Dalai Lama como o guia. As novas gerações, crescidas debaixo da opressão chinesa sem conhecer o período da independência, o vêem como uma voz longínqua e não uma presença atuante na realidade do Tibete. Os jovens tibetanos de hoje foram educados em escolas e faculdades onde a religião é constantemente criticada e negada: apesar do ódio contra os chineses, eles foram inevitavelmente influenciados pela mentalidade materialista e modernizadora imposta pelo regime regional pro-chinês liderado por Qiangba Puncog.

“Não nós revoltamos contra a ocupação por ordem do Dalai Lama. Somos a expressão da vontade popular. Esta é a luta dos tibetanos contra a ocupação ilegal chinesa, e essa luta nada tem a ver com as ofertas de paz e diálogo do Dalai Lama”, escreveu uma mão desconhecida numa mensagem discretamente entregue por um monge a um membro de uma ONG internacional expulso do Tibete. Poderia ser uma forma de preservar o Dalai Lama das acusações chinesas, mas é mais provável que seja mesmo o sinal de uma cisão dentro da sociedade tibetana, uma ‘guerra de gerações’ como já aconteceu na Palestina entre OLP e Hamas (com a diferença fundamental que os velhos são ligados à religião e os jovens são contra, ao oposto dos palestinos). É por isso que o próprio Dalai Lama se diz incapaz de impedir ou controlar os protestos atuais; essa impotência é um dos elementos novos da crise atual.

Críticas ao Dalai Lama, e principalmente ao seu programa de "autonomia limitada" do Tibete, sob a tutela armada chinesa, foram formuladas abertamente por Tsewang Rigzin, 37 anos, líder do Congresso Juvenil Tibetano (TYC), que prega a independência total da China, como antes de 1950. Rigzin ideou e lidera a marcha de protesto dos tibetanos em exílio na Índia rumo ao Tibete, que deve concluir-se dentro de três meses (logo antes das Olimpíadas), sem que ninguém saiba até onde poderá chegar e o que acontecerá com ela.

O perigo imediato é a deslegitimação da autoridade do Dalai Lama − deslegitimação interna mais do que internacional. O resultado (lembrando-se o início do artigo) poderia ser o nascimento de uma guerrilha urbana tipo Intifada, ou outra inspirada mais nos Talibãs, desfrutando o labirinto de montanhas, vales inacessíveis e cavernas da Himalaia. Uma possibilidade ainda remota, por falta de qualquer apoio internacional, pelo menos por enquanto. Se a crise perdurar, e os tibetanos se mostrarem capazes de sustentar sua rebelião durante alguns meses (digamos, até os Jogos Olímpicos), o apoio (clandestino e secreto) poderia surgir e crescer. Índia, Rússia e Estados Unidos adorariam ver os chineses embrenhados numa custosa e impopular luta anti-guerrilha, como eles próprios enfrentam na Cachemira, na Tchetchenia e no Afeganistão. Seria uma excelente ocasião para observar a força real das forças armadas chinesas. O povo tibetano e seu genocídio cultural são um mero detalhe no brave new world globalizado.

[1] Os Han são a etnia dominante na China. Chamar a todos de "chineses" é o mesmo tipo de generalização de quando se usava o termo "russos" para indicar os habitantes da União Soviética toda.

Roberto Cattani (rcattani@uol.com.br) é jornalista e escritor, com vários livros publicados no Brasil e na Itália. Formado em Antropologia, é correspondente da Agência Ansa no Brasil desde 1991. No Brasil, foi redator do caderno Mundo da Folha de S.Paulo e da revista Status. Cobriu as guerras no Líbano, na Palestina, no Afeganistão, no Sri Lanka e na Eritréia. É membro da Aliança Internacional dos Jornalistas (J-Alliance) e da Associação dos Correspondentes Estrangeiros no Brasil.
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil

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