Ao assumir a liderança do movimento de rejeição à proposta do governo dos Estados Unidos durante a reunião da OEA, o Brasil deu um passo histórico para consolidar sua nova fase de independência em relação aos interesses norte-americanos na América do Sul.
por Maurício Thuswohl
As viúvas de Celso Lafer e Luiz Felipe Lampreia no Itamaraty e na imprensa terão muito do que se queixar nos próximos dias. Dirão que, em uma nova demonstração da irresponsabilidade com que é conduzida nossa política externa, o Brasil rejeitou sumariamente a proposta apresentada pelos Estados Unidos de criação de uma “zona de segurança regional para combater o terrorismo”. Mais uma vez, exigirão uma volta aos eixos da nossa diplomacia e acusarão o atual governo brasileiro de ser um aliado mal-disfarçado das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc).
Para desespero das viúvas, no entanto, a verdade é que, ao assumir a liderança política do movimento de rejeição à proposta anunciada pelo governo dos EUA durante a reunião da Organização dos Estados Americanos (OEA) realizada esta semana, o Brasil deu um passo histórico para consolidar sua nova fase de independência em relação aos interesses norte-americanos na América do Sul. Mais do que isso, a postura brasileira contribuiu para consolidar a aliança política com seus vizinhos e reafirmar o compromisso com a própria soberania assumido nos últimos anos pela maioria dos países do continente.
Se levada a cabo, a “zona de segurança” proposta pelos EUA só trará benefícios aos governos de George W. Bush e de seu lugar-tenente na Colômbia, Álvaro Uribe. O interesse de Bush é cristalino: forçar a presença do maior número possível de soldados norte-americanos nas proximidades da Venezuela antes do fim de seu mandato. Experiente, o grupo que hoje dá as cartas na Casa Branca não menospreza a possibilidade de vitória do candidato republicano, o senador John McCain, nas eleições presidenciais. Se continuarem no poder, é bem possível que os falcões decidam “passar das palavras à ação” em relação à Revolução Bolivariana de Hugo Chávez.
Apesar do discurso falso moralista contra o tráfico de cocaína, o combate às Farc é uma grande e esperta desculpa arranjada pelos EUA para colocar um pezinho militar na América do Sul. O mesmo acontece com o governo de Uribe, que só encontra razão para a própria existência no eterno combate à guerrilha. Um interesse serve ao outro, e essa aliança revela todo o caráter espúrio da operação que culminou na invasão do exército colombiano ao Equador e na morte de Raúl Reyes e outros 16 integrantes das Farc que estavam em território equatoriano para negociar a libertação da ex-senadora Ingrid Bettancourt e outros reféns. Nem Bush nem Uribe querem ver mais reféns libertados, pois isso aproximaria as Farc da legalidade que a guerrilha tanto busca.
Subsecretário de Estado dos EUA para a América Latina, Thomas Shannon não escondeu as reais intenções de seu governo quando disse na semana passada que aguardava o relatório da comissão constituída pela OEA para percorrer as fronteiras para então “definir que medidas concretas serão tomadas contra a Venezuela”. O relatório, no entanto, não indicou presença das Farc fora das fronteiras colombianas. Esse fato, aliado ao recuo de Chávez, foi o que estancou a crise na região. O presidente venezuelano parece ter se dado conta de que, ao enviar tropas para a fronteira com a Colômbia, estava mordendo a isca lançada pelos EUA.
A invasão do Equador teve o claro signo da provocação. É evidente que Uribe calculou bem os riscos diplomáticos que assumia com a violação de um direito internacional primordial (a inviolabilidade das fronteiras), mas o fato de afrontar ao mesmo tempo aos governos do Equador, da Venezuela, do Brasil e da França (sem falar nos familiares das pessoas seqüestradas pelas Farc) pareceu pouco importante diante da necessidade de autopreservação no poder. A ação ordenada pelo presidente colombiano certamente não aconteceu sem a benção dos EUA, a quem também não interessa a pacificação dos conflitos na Colômbia, pois isso tiraria a desculpa para sua crescente presença militar na região.
Uribe, para se manter no poder, precisa alimentar o conflito com as Farc e sabotar qualquer tentativa de paz que tenha alguma chance de sucesso, mesmo que isso implique em deflagrar a maior crise diplomática sul-americana dos últimos 50 anos. O grupo que está no poder ao lado do presidente colombiano já preparou o terreno para que, através de um projeto que será apresentado ao Congresso Nacional, Uribe possa concorrer ao terceiro mandato consecutivo. A paz com as Farc vai na contramão desse objetivo e jamais interessou a Uribe ou a sua base de governo estreitamente ligada aos grupos paramilitares de direita que também lucram política e financeiramente com o conflito e são responsáveis por tantas atrocidades na Colômbia.
Imprensa amiga
Nesse ponto, é preciso dizer que EUA e Colômbia, na falta de apoio da totalidade dos governos da América do Sul, têm na grande imprensa da região um aliado de peso. É constrangedor para a classe jornalística ver o vampiresco apresentador do Jornal da Globo citar a corrida de Uribe ao terceiro mandato de maneira asséptica, sem nenhum julgamento moral. Vale lembrar o linchamento diário que sofreu no mesmo telejornal o presidente venezuelano Hugo Chávez quando tentou o mesmo artifício (com o detalhe que Chávez convocou um plebiscito enquanto Uribe preferiu o jogo de cartas marcadas no Congresso dominado pela situação).
A propaganda midiática também se valeu dos supostos documentos apreendidos pela Colômbia no acampamento onde estava Raúl Reyes quando foi morto para denunciar a “ligação umbilical” de Chávez com as Farc. Num computador portátil encontrado em meio aos destroços (e que sobreviveu milagrosamente ao intenso bombardeio com bombas cluster e bombas teleguiadas a laser), foi encontrado um arquivo que sugere a doação, por parte do presidente venezuelano, de US$ 300 milhões à guerrilha.
As Farc, por sua vez, teriam doado US$ 50 mil a Chávez quando ele esteve preso após a frustrada tentativa de golpe em 1992. Vale ressaltar que todos os computadores pertencentes a dirigentes da guerrilha até então apreendidos pelo exército de Uribe foram objeto de um difícil processo de decodificação, que conta com ajuda, diga-se de passagem, de técnicos norte-americanos. Curiosamente, o computador portátil do homem considerado o número dois das Farc, mesmo sendo resistente a bombardeios, não tinha seus arquivos criptografados.
Nenhuma das denúncias contra o governo venezuelano foi comprovada pela OEA, e a única coisa concreta até aqui é que a Colômbia violou o território equatoriano e jogou uma pá de cal sobre um processo de negociação que prometia levar a bom termo o único conflito de maior gravidade que hoje atinge a América do Sul. Mas, isso não interessa ao governo Bush e, se os republicanos permanecerem no poder com McCain, as acusações contra Chávez poderão vir a servir de pretexto para “definir medidas concretas contra a Venezuela”. De preferência com Uribe reeleito para o terceiro mandato.
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