segunda-feira, 31 de março de 2008

O "DIA DA TERRA"


por Uri Avnery**


O “Dia da Terra” é um dos eventos que define a história de Israel. Hoje, o “Dia da Terra” completa 32 anos.

Lembro-me bem daquele dia. Eu estava no aeroporto Ben Gurion, a caminho de um encontro secreto com Said Hamami, emissário de Yasser Arafat, quando alguém me disse: “Mataram manifestantes árabes. Há muitos mortos.”

Não foi completamente inesperado. Poucos dias antes, nós – membros do recém formado Conselho Israelense para a Paz entre Árabes e Israelenses – havíamos entregue ao Primeiro Ministro, Yitzhak Rabin, um memorando urgente no qual o preveníamos de que a intenção do governo, de expropriar enormes áreas de terra nas vilas árabes, provocaria uma explosão. Junto, entregamos uma proposta de solução alternativa, elaborada por Lova Eliav, especialista veterano na luta contra os ‘assentamentos’.

Quando voltei da Europa, o poeta Yevi sugeriu-nos uma manifestação simbólica, de luto pelos mortos. Três de nós – o próprio Yevi, o pintor Dan Kedar e eu – pusemos coroas de flores nos túmulos das vítimas; o que levantou uma onda de fúria contra nós. Senti que algo de muito significativo acontecera, que a relação entre judeus e árabes naquele Estado mudara profundamente.

E, sim, o impacto do “Dia da Terra” – como o evento ficou sendo chamado – superou o impacto do massacre em Kafr Kassem em 1956; e superou também o impacto dos mortos em outubro de 2000.

AS RAZÕES de tudo isto remontam aos primeiros dias do Estado de Israel.

Depois da guerra de 1948, a comunidade árabe que permaneceu em Israel estava reduzida a um grupo pequeno, fraco e assustado. Não apenas cerca de 750 mil árabes haviam sido arrancados de sua terra, na parte dela que fora transformada em Estado de Israel; além disto, os que sobreviveram e ali ficaram não tinham qualquer tipo de liderança organizada. As elites políticas, intelectuais e econômicas haviam desaparecido, a maioria delas desde os primeiros momentos da guerra. O vácuo foi preenchido, de certo modo, pelo Partido Comunista, cujos líderes foram autorizados a voltar do exterior – sobretudo em obediência a Stálin que, nesta época, apoiava Israel.

Conseqüência de algum debate interno, os líderes do novo Estado israelense decidiram dar direitos de cidadania e de voto aos árabes que permaneceram no “Estado Judeu”. Nada de óbvio, aí. Mas o governo queria exibir ao mundo um Estado democrático. Em minha opinião, a principal razão, aí, foi política, pelo menos em parte: David Ben-Gurion acreditava que conseguiria coagir os árabes a votar com ele e seu partido.

E aconteceu: a grande maioria dos cidadãos árabes votou com o Partido Trabalhista (o partido Mapai de então) e com os dois partidos-satélites criados especificamente para recolher os votos dos árabes. Não tiveram escolha: os árabes viviam em estado de medo constante, sob os olhos vigilantes dos Serviços de Segurança (então chamados Shin Bet). Cada família árabe Hamulah (a família toda, “estendida”) foi instruída para votar ou nos candidatos do Partido Mapai ou nos candidatos dos dois partidos subsidiários. A cada lista eleitoral correspondiam duas cédulas eleitorais, uma em hebraico outra em árabe e, portanto, os árabes podiam escolher entre seis possibilidades em cada sessão eleitoral; e os homens do Shin Bet podiam facilmente controlar os votos, para garantir que cada família árabe votasse exatamente conforme as ‘instruções’. Mais de uma vez, Ben Gurion obteve maioria no Parlamento graças a estes votos cativos.

Por razões “de segurança” (nos dois sentidos), os árabes eram submetidos a um regime de “governo militar”. Todos os detalhes de sua vida dependiam deste “governo militar”: dependiam de autorização especial para deixar as vilas onde residissem, até para visitar a vila mais próxima. Sem autorização do governo militar, não podiam comprar um trator nem mandar uma filha para a Escola Normal nem obter emprego para um filho nem importar fosse o que fosse. Sob o mesmo regime de autoridade do governo militar e de uma série de leis, enormes áreas de terra foram expropriadas para construir cidades e kibbutzim para judeus.

Uma história gravada em minha memória: Rashed Hussein, da vila de Musmus, poeta e meu amigo, já falecido, foi levado à presença do governador militar em Netanya, que lhe disse: O “Dia da Independência” está chegando. Quero que você escreva um poema simpático, para a ocasião. Rashed, jovem e orgulhoso, recusou-se. Ao chegar em casa, encontrou toda a família sentada no chão, chorando. Seu primeiro pensamento foi que morrera alguém. Mas logo sua mãe gritou: “Você nos destruiu! Estamos acabados!” Assim, o poema foi escrito.

Todas as iniciativas políticas árabes independentes eram abortadas no ninho. O primeiro destes grupos – o grupo nacionalista al-Ard (“a terra”) foi logo dissolvido; foi declarado ilegal e seu jornal foi proibido de circular – sob as bênçãos da Suprema Corte. Só o Partido Comunista permaneceu intocado, mas os líderes também, vez ou outra, eram processados.

O governo militar só foi destituído em 1966, depois que Ben Gurion deixou o poder e pouco tempo depois de eu ser eleito para o Parlamento. Depois de muitas manifestações contra aquele governo, tive o prazer de votar pela sua abolição. Mas pouca coisa mudou, na prática – o governo militar oficial foi substituído por outro, não-oficial, mas com poder igualmente discricionário, se não mais.


O “DIA DA TERRA” mudou a situação. Uma segunda geração de árabes crescera em Israel, já não tão tímida e submissa, uma geração que não vivera as expulsões em massa e cuja posição econômica melhorara. A ordem que os soldados e policiais receberam e cumpriram, de abrir fogo contra os manifestantes, foi um choque para eles. E assim se iniciou um novo capítulo naquelas lutas.

A porcentagem de cidadãos árabes residentes em Israel não mudou: dos primeiros dias do Estado até hoje, se mantém em torno de 20%. A alta taxa de natalidade de crescimento da comunidade muçulmana foi contrabalançada pelo número de judeus que imigraram. Mas os números, sim, aumentaram muito: dos 200 mil, do início do Estado, para mais de 1,3 milhão de árabes em Israel – o dobro da população da comunidade de judeus que fundara o Estado.

O “Dia da Terra” também mudou dramaticamente a atitude do mundo árabe o do povo palestino, em relação aos árabes-israelenses. Até aquele dia, os árabes-israelenses eram considerados traidores, colaboradores da “entidade sionista”. Lembro de uma cena de uma reunião, em 1965, em Florença, convocada por Giorgio la Pira, legendário prefeito daquela cidade, que tentava aproximar personalidades de Israel e do mundo árabe, iniciativa considerada muito audaciosa, naquele momento.

Num intervalo, eu estava conversando com um alto diplomata egípcio, numa praça ensolarada, fora do recinto oficial, quando se aproximaram dois jovens árabes-israelenses, que haviam ouvido falar da reunião. Depois de abraçá-los, apresentei-os ao egípcio, que lhes deu as costas: “Aceito falar com você, mas não com estes traidores!”

Os acontecimentos sangrentos do “Dia da Terra” trouxeram os “israelenses árabes” de volta ao cenário das lutas da nação árabe e do povo palestino, que hoje se referem a eles como “os árabes de 1948”.

Em outubro de 2000, outra vez a polícia atirou e matou cidadãos árabes, quando tentavam manifestar-se em solidariedade aos árabes mortos em Haram al-Sharif (o Templo do Monte) em Jerusalém. Entre um evento e outro, uma terceira geração de árabes crescera em Israel, muitos dos quais, apesar dos obstáculos, freqüentaram universidades e tornaram-se ativos no mundo do comércio, políticos, professores, advogados e médicos. É impossível ignorar esta comunidade – por mais que o Estado esforce-se, exatamente, para ignorá-los.

De tempos em tempos, ouvem-se vozes de protesto contra a discriminação, mas todos evitam confrontar a questão fundamental: Qual é o status da minoria árabe que cresce dentro de um estado que se autodefine, oficialmente, como “Estado judeu e democrático”?

UM DOS LÍDERES da comunidade árabe, o ex-deputado Abd-al-Aziz Zuabi, propôs este dilema nos seguintes termos: “Meu Estado está em guerra contra o meu povo”. Os cidadãos árabes são parte, ao mesmo tempo, do Estado de Israel e do povo palestino.

Que são parte do povo palestino é auto-evidente. Os cidadãos árabes de Israel, que ultimamente se têm chamado, eles mesmos, de “palestinos em Israel”, são um dos muitos ramos do povo palestino: há os habitantes dos territórios ocupados (hoje divididos, eles também, entre a Cisjordânia e a Faixa de Gaza); os árabes que vivem em Jerusalém Leste (que, oficialmente, são “residentes”, mas não são “cidadãos” de Israel); e os refugiados que vivem em vários países, cada um sob seu regime específico. Todos estes ramos definem-se como árabes e sentem-se ligados por laços fortes, mas a autoconsciência de cada ramo é modelada pela específica situação em que viva.

Que peso tem o componente palestino, na consciência dos cidadãos árabes que vivem em Israel? Como se pode aferi-lo? Os palestinos que vivem nos territórios ocupados muitas vezes lamentam que aquele componente palestino expresse-se em palavras, mais do que em compromisso e atitudes. O apoio dos árabes-israelenses têm dado à luta pela libertação da Palestina é, sobretudo simbólico. Vez ou outra alguém é preso por ajudar um homem-bomba, mas são raras exceções.

Quando o extremista Avigdor Liberman, que odeia árabes, propôs que fossem entregues ao futuro Estado palestino várias vilas árabes próximas da Linha Verde (grupo de vilas chamadas “o Triângulo”), em ‘troca’ pelos prédios para assentar judeus na Cisjordânia, nenhum voz árabe apoiou a idéia. Este silêncio é muito significativo.

A comunidade árabe tem raízes mais profundas, em Israel, do que as se vêem à primeira vista. Os árabes desempenham importante papel na economia de Israel, trabalham como funcionários públicos, pagam impostos. Recebem os benefícios da seguridade social – por pleno direito, dado que pagam impostos. E têm padrão de vida muito superior ao dos palestinos cercados nos territórios ocupados e em outras regiões. Participam da democracia israelense e não se interessam, de modo algum, por viver sob regimes como o egípcio ou o jordaniano. Suas reivindicações são justas e sérias – mas vivem em Israel e querem continuar onde estão.

EM ANOS RECENTES, intelectuais da terceira geração de árabes em Israel têm apresentado propostas para normalizar as relações entre maioria e minoria.

Em princípio, há pelos menos duas principais propostas alternativas:

A primeira: Israel é Estado judeu, mas neste Estado vive um outro povo. Se os judeus israelenses têm direitos nacionais definidos, os árabes israelenses também devem ter os seus direitos nacionais definidos. Por exemplo, autonomia educacional, cultural e religiosa (como o jovem Vladimir Zeev Jabotinsky exigia, há um século, para os judeus na Rússia czarista). Devem poder construir e manter pleno relacionamento com o mundo árabe e com o povo palestino, assim como há pleno relacionamento entre cidadãos judeus e os judeus da Diáspora. Tudo isto tem de estar bem claramente explicitado na futura constituição do Estado.

A segunda: Israel pertence a todos os seus cidadãos e só a eles. Os cidadãos são israelenses, assim como os cidadãos dos EUA são norte-americanos. No que diz respeito ao Estado, não há diferença possível entre os cidadãos, seja judeu, muçulmano ou cristão, árabe ou russo, assim como, do ponto de vista do Estado, nos EUA, não há diferença entre cidadãos brancos, mestiços ou negros, sejam descendentes de europeus, de africanos ou de asiáticos, sejam protestantes, católicos, judeus ou muçulmanos. No plano coloquial, em Israel, é o que se designa como “um estado de todos os seus cidadãos”.

Pessoalmente, tendo à segunda possibilidade, mas não rejeito a primeira. Seja a primeira seja a segunda são soluções melhores do que o que há hoje, quando o Estado finge que o problema não existe e que há apenas vestígios de discriminação a serem superados (e nada faz para superá-los).

Se não se trata a ferida, a doença progride. Nos jogos de futebol, a torcida grita: “Morte aos árabes!” e, no Parlamento, deputados da extrema direita ameaçam expulsar da Casa – e também do Estado – os deputados árabes.

No 32 anos do “Dia da Terra”, aproximando-se já os 60 anos do “Dia da Independência”, é hora de pegar este touro pelos chifres.

**Uri Avnery,85 anos, é membro fundador do Gush Shalom (Bloco da Paz israelense). Adolescente, Avnery foi combatente no Irgun e mais tarde soldado no exército israelita. Foi três vezes deputado no Knesset (parlamento). Foi o primeiro israelense a estabelecer contato com a liderança da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) em 1974. Foi durante quarenta anos editor-chefe da revista noticiosa Ha'olam Haze. É autor de numerosos livros sobre a ocupação israelense da Palestina, incluindo My Friend, the Enemy (Meu amigo, o inimigo) e Two People, Two States (Dois povos, dois Estados).

* URI AVNERY, 30/3/2008, "Death to the Arabs!", em Gush Shalom [Grupo da Paz], http://zope.gush-shalom.org/home/en/channels/avnery

Fonte: Blog do Bourdoukan

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