segunda-feira, 31 de março de 2008

Opinião: O mal estar da classe média e as angústias da mídia hegemônica

Opinião: Sociedade civil questiona mídia

Por Dennis de Oliveira

A mídia começa a sofrer uma série de críticas mais intensas de setores da sociedade civil que começam a perceber a brutal assimetria de poder favorável aos oligopólios da comunicação.

No dia 17 de março, o Movimento dos Sem Mídia, organização lançada em 15 de setembro de 2007, com um ato em frente à redação da Folha de S. Paulo, protocolou uma representação no Ministério Público Federal contra as notícias alarmistas sobre o surgimento de casos de febre amarela no país, apressadamente tratado como uma epidemia.O argumento do movimento é que a cobertura distorcida dos principais meios de comunicação - Organizações Globo, Grupo Estado, Grupo Folha, Editora Abril, Correio Braziliense, Jornal do Brasil, Veja e Isto É – gerou um clima de alarmismo na sociedade, demonstrado com a corrida por imunização que acabou gerando o esvaziamento do estoque de vacinas. A representação do Movimento dos Sem Mídia pede que os meios de comunicação sejam responsabilizados pelas conseqüências desta cobertura e ressarçam o erário público tendo como base o número de imunizações desnecessárias que foram feitas neste período, bem como os que tomaram a vacina sem necessidade e, por incompatibilidade, tiveram problemas de saúde (houve um caso de uma mulher que morreu por este motivo).Enquanto isto, Luis Nassif prossegue sua cruzada contra o anti-jornalismo da revista Veja que tem no blogueiro Reinaldo Azevedo seu maior expoente. Desmascarando os motivos e as formas de manipulação utilizadas pela revista de maior tiragem do país, Nassif vem sendo sistematicamente atacado pela revista da Abril com Azevedo sendo o seu principal porta-voz. Apesar disto, o seu site com o “dossiê Veja” bate recordes de acessos. A repercussão é grande, apesar do pacto do silêncio dos grandes meios de comunicação.No campo dos movimentos sociais, o movimento de mulheres tem atuado como principal protagonista nas ações contra as emissoras de televisão exigindo uma mudança na imagem veiculada da mulher – fato que gerou até mesmo uma demanda judicial e uma tentativa (fracassada) de acordo entre as partes.Tudo isto acontece em um contexto onde o atual governo federal insiste em não confrontar a grande mídia, em particular a Globo (que tem até um ex-funcionário no Ministério das Comunicações); que o Congresso Nacional praticamente matou o Conselho de Comunicação Social (veja artigo de Alberto Dines a respeito) e que, num lance de corporativismo patronal mas com ramificação profissional, os grandes meios praticamente silenciam quanto a estas ações que, no mínimo, apontam para um descontentamento do outrora quarto poder (mas que deseja ser o único poder).

A crise na mídia começa por uma perda de identidade dos próprios jornalistas.

Perdendo o monopólio da novidade – as informações, cada vez mais, se disseminam por meio de redes e outros mecanismos prescindindo de profissionais de jornalismo – o jornalista tenta desesperadamente buscar uma legitimidade perdida por meio de um discurso assertivo que beira o autoritarismo. E, assim, muitos se aliam aos seus próprios patrões. É uma confluência perversa de interesses: parte da corporação profissional quer ter sua legitimidade social garantida e os donos dos monopólios o poder de fato. Daí para a prática de chamar o seu patrão de colega, como diz Mino Carta, é um salto. Sintomático é que entidades de jornalistas, como a Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) continuem batendo na tecla da “ameaça” à liberdade de imprensa, desconsiderando totalmente os ataques dos grandes monopólios da comunicação ao direito social à informação de qualidade.

Retomaremos esta questão sobre a crise de identidade do jornalismo na próxima semana. Por enquanto, fica a boa notícia de que a sociedade começa a despertar contra os abusos do poder midiático.

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Na coluna da semana passada, falei sobre diversas ações da sociedade civil questionando a mídia, entre elas a ação do Movimento dos Sem Mídia contra a cobertura da suposta epidemia de febre amarela. A força destas iniciativas fez os profissionais da mídia descerem do pedestal para se defenderem.
No dia 25 de março, Eliane Catanhêde escreve que “febre amarela e dengue são doenças graves, transmitidas pelo Aedes aegypt e podem matar, mas há uma enorme diferença entre elas: a febre amarela é prevenível por vacina, a dengue não. Esse é um fator decisivo entre pegar ou não a doença, morrer ou não.” Talvez aqui, a colunista da Folha queira justificar porque o mesmo barulho feito pelos jornalistas contra o governo federal no caso da suposta epidemia da febre amarela não tenha verificado-se quando ocorreu o surto de dengue no Rio de Janeiro, fruto também da incompetência dos órgãos públicos da prefeitura comandada pelo “Democratas”.
Na seqüência, a colunista diz: “A mídia teve um papel fundamental ao alertar a população para o aumento da incidência da febre amarela, seus riscos, o combate ao mosquito e a vacinação. Nunca vai se saber quantas centenas de vidas foram salvas neste país pela ação diligente de jornais, rádios, TVs. Apesar disso, a mídia, ao invés de receber só elogios por cumprir seu papel, está ameaçada de processos por ter "gerado pânico" (?!).” Brilhante. A mesma jornalista só não explicou porque os diligentes jornais, rádios e TVs não explicaram de forma clara que a febre amarela não é transmitida em áreas urbanas e que há pessoas que podem ter problemas ao vacinar-se. A corrida desenfreada à vacinação levou ao esvaziamento dos estoques de vacinas, a pessoas sofrerem conseqüências graves (há até caso de uma morte) por terem tomado a vacina sem poderem.
A argumentação é, no mínimo, absurda. É papel sim do jornalismo informar a população, mas há uma diferença entre prestar um serviço (de informação) e levar ao alarmismo. Espera-se que o jornalismo seja um espaço onde os problemas devam ser tratados com serenidade e racionalidade. Caso contrário, vamos propor uma ação diligente dos jornais, TV e rádios para que a população seja alertada para o aumento da violência urbana e comece a se armar, a se defender por conta própria ou ainda a contratar matadores para evitar que “vidas sejam salvas”. É o primórdio de uma ação de cunho moralista (privado) sobre uma de cunho ético (público).
O jornalismo nasce, justamente, como atividade de expansão e consolidação da esfera pública. No projeto iluminista, a esfera pública constitui-se, justamente, da possibilidade de ação autônoma dos cidadãos. A autonomia do indivíduo vem, justamente, da capacidade deste raciocinar e pensar, dentro de normas éticas, os problemas vividos coletivamente. Por isto, as críticas de pensadores ao projeto iluminista é que as estruturas sociais do capitalismo impedem a constituição desta autonomia individual e os cidadãos agem muito mais impelidos por forças externas (gerando aí, em vez da autonomia, a heteronomia).
Esta é a crítica que a sociedade civil vem fazendo à mídia. O papel dela não é mobilizar corações e mentes para determinadas ações – como transparece no texto de Eliane Catanhêde – e sim fornecer elementos para que os cidadãos tomem posições e atitudes racionais para resolução coletiva dos problemas. E para isto nada adianta textos como o de Clóvis Rossi – “educa-a (a sociedade) a renunciar a bens e ao direito de ir e vir, sob pena de perder ambos e mais a vida. É um país muito medíocre.” (FSP, 25/03/2008) – quando comenta a (absurda) orientação da Secretaria Nacional de Direitos Humanos de orientar a população a ser “cuidadosa” nas abordagens policiais. Chamar o país de medíocre (de forma arrogante, como se ele não fizesse parte deste país e também não fosse, como formador de opinião, co- responsável por isto) é a mesma postura de muitos brasileiros que admitem existir racismo no país, mas não admitem ser racistas.
Ao mesmo tempo em que estas opiniões são verbalizadas, o problema da brutal concentração de renda que é estrutural no país passa ao largo das análises políticas. Pior: há uma tendência até de condenar como eleitoreiras propostas que tentam minimizar esta situação (a coluna Painel, da FSP, chegou a chamar o “Bolsa-Família” de mensalinho, toda a cobertura dos programas sociais do governo federal é abordada sob a ótica de projeto eleitoreiro, como o “Territórios da Cidadania”).
No fundo, o que se observa é um “mal-estar” da classe média. Incompetente para articular um projeto de constituição de uma esfera pública ampla e de um Estado de bem estar social que garantisse um mínimo de proteção social para todos que, inclusive, garantiria uma estabilidade para a sua própria condição de classe média, este segmentos social entra em crise ao observar que a sua postura de encarar direitos como privilégios corre risco, a medida que as instabilidades econômicas encarecem os custos destes privilégios. Acrescente-se a participação maior, de forma autônoma, das classes subalternas na esfera pública que força os governantes a priorizarem suas demandas sociais.
No fim, o país medíocre presente no final do comentário de Rossi expressa justamente este mal estar de uma classe média que sempre pretendeu ser européia mas é obrigada a conviver com um mar de pessoas pobres – e pobres que já não se portam mais como “coitadinhos obedientes” mas pessoas que ousam ser diferentes e que querem ter sua própria voz na esfera pública. A angústia de Lúcia Hipólito, no ano passado, permanece: “será que as pessoas não estão entendendo o que estamos falando?” Estão, sim, mas não estão a fim de seguir estes passos. E esta mídia, ao contrário do que deseja Catanhêde, não vai ser elogiada e sim contestada.

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Dennis de Oliveira é jornalista, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, doutor em Ciências da Comunicação pela USP. É presidente do Celacc (Centro de Estudos Latino Americanos de Cultura e Comunicação) e membro do Neinb (Núcleo de Estudos Interdisciplinares do Negro Brasileiro). E-mail: dennisoliveira@uol.com.br

Fonte: Revista Fórum
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