O QUE ACONTECEU esta semana é tão revoltante, tão descabido, indigna tanto e enfurece de tal modo, que se destaca até na paisagem a que estamos acostumados, da irresponsabilidade do governo de Israel.
No horizonte próximo, uma suspensão de facto das hostilidades estava tomando forma. Os egípcios fizeram esforços imensos para que se chegasse a um cessar-fogo oficial. A temperatura do conflito baixava visivelmente. O número de foguetes Qassams e Grads disparados da Faixa de Gaza sobre Israel já diminuíra, de dúzias por dia, para dois ou três.
E então aconteceu algo que reavivou o fogaréu: soldados da segurança interna de Israel, operando sob disfarce, assassinaram quatro militantes palestinos em Belém. Um quinto foi assassinado numa vila próxima de Tulkarm.
O MODUS OPERANDI não deixa dúvidas quanto à intenção.
Como sempre, a versão oficial mentiu. (Quando o porta-voz do exército diz a verdade, ele fala rápido, de tão envergonhado, e logo pula para a frase e mentira seguintes.) Os quatro, dizia a versão oficial, puxaram as armas e ameaçaram a vida dos soldados que só queriam prendê-los, mas foram obrigados a abrir fogo.
Qualquer um, com meio cérebro, sabe que é mentira. Os quatro estavam num carro pequeno, na rua principal de Belém, a estrada que ligava Jerusalém e Hebron desde o tempo dos britânicos (ou turcos). Estavam armados, mas não tiveram tempo para sacar as armas. O carro foi atingido por dúzias de tiros; foi transformado em peneira.
Não era, de modo algum, operação para prender alguém. Foi uma execução pura e simples, uma daquelas execuções sumárias nas quais o Shin Bet[1][1] é, ao mesmo tempo, o acusador, o juiz e o carrasco.
Desta vez, ninguém nem tentou ‘argumentar’ que os quatro encaminhavam-se para algum atentado criminoso. Ninguém disse, por exemplo, que teriam tido algo a ver com os ataques da semana passada na escola Mercaz Harav, nave madrinha da esquadra dos colonos da ocupação. De fato, seria impossível tentar este tipo de mentira, porque o mais importante dos quatro palestinos assassinados disse recentemente, em entrevista aos jornais de Israel, que se apresentara para o “esquema do perdão” – programa do Shin Bet, pelo qual militantes “procurados” deporiam armas e comprometer-se-iam a não mais resistir à ocupação. E foi candidato, nas últimas eleições palestinenses.
Assim sendo, por que foram assassinados? O Shin Bet não escondeu o motivo: dois dos quatro participaram de ações armadas, em 2001, nas quais morreram israelenses.
“O nosso longo braço sempre os alcança, mesmo anos depois”, Ehud Barak vociferou pela televisão, “pegaremos todos os que tenham as mãos tintas de sangue judeu”.
EM PALAVRAS BEM SIMPLES: o ministro da Defesa e seus homens detonaram o cessar-fogo de hoje, para vingar um evento de sete anos atrás.
Era óbvio que a matança de militantes da Jihad Islâmica em Belém faria recomeçar a chuva de foguetes Qassam sobre Sderot. E aconteceu.
O efeito de um foguete Qassam é completamente imprevisível. Para os moradores de Sderot, é uma espécie de Roleta Israelense – o foguete pode cair em área não habitada, tanto quanto pode cair num prédio; vez ou outra, há vítimas.
Em outras palavras – nas palavras do próprio Barak –, o governo de Israel arrisca hoje a vida de israelenses, para vingar-se de gente que pode ter sido agente de ataques mortais há muitos anos e que, depois, pode nunca mais ter tido qualquer atividade armada.
A ênfase sempre está na palavra “judeu”. Em sua fala, Barak tomou cuidado para não falar de mãos tintas de qualquer sangue; só falou dos que tivessem “as mãos tintas de sangue judeu”. O sangue judeu, como se sabe, é diferente de outros sangues.
De fato, não há ninguém, dentre os líderes de Israel hoje, que tenha tanto sangue nas mãos, quanto Barak. Não algum sangue abstrato, metafórico, mas o muito real sangue humano, vermelho. Ao longo do tempo em que serviu como militar ativo, Barak assassinou pessoalmente muitos árabes. Quem lhe apertar a mão – de Condoleezza Rice à convidada de honra desta semana, Angela Merkel – apertará mão, sim, tinta de sangue.
Os assassinatos de Belém levantam várias questões complexas, as quais, contudo, com raras exceções, não apareceram em nenhum jornal. Os jornais esqueceram seu dever e sua missão, como sempre, quando se trata de “questões de segurança”.
Jornalistas de verdade, num Estado democrático de verdade teriam proposto, pelo menos, as seguintes questões:
Quem ordenou as execuções em Belém – Ehud Olmert? Ehud Barak? A Shin Bet? Todos? Nenhum deles?
Os tomadores de decisão entendem que, ao condenar à morte aqueles militantes em Belém, também condenam à morte os moradores de Sderot ou Ashkelon que podem ser mortos pelos foguetes disparados como ‘resposta’?
Será que entendem que estão atropelando também Máhmoud Abbás, cujas forças de segurança (que, em teoria, são encarregadas da área de Belém) serão acusadas de colaborar com o esquadrão-da-morte israelense?
O objetivo final da ação foi impossibilitar o cessar-fogo que já estava vigente na Faixa de Gaza (embora tenha sido oficialmente negado tanto por Olmert quanto por Barak, mesmo ante o fato de que o número de foguetes caíra, de dúzias por dia, para apenas dois ou três)?
O governo de Israel não concorda com o cessar-fogo, que livrará Sderot e Ashkelon da ameaça dos foguetes? Se não concorda, por que não concorda?
A imprensa não exigiu que Olmert e Barak expusessem à opinião pública as razões que os moveram a decidir pelos assassinatos – numa decisão que diz respeito a todos que vivem em Israel. Nem se esperava que exigisse.
Afinal, é a mesma imprensa que dançou de alegria quando o mesmo governo iniciou uma guerra mal pensada, leviana, no Líbano. É a mesma imprensa que se manteve calada, esta semana, quando o mesmo governo decidiu atirar também contra a liberdade de imprensa, e determinou o boicote à Rede Aljazeera de Televisão, como castigo por ter mostrado os bebês assassinados na mais recente incursão do exército israelense em Gaza.
Exceto dois ou três jornalistas corajosos, com mente independente, toda a imprensa escrita e televisionada sempre marcha unida, como regimento prussiano em desfile militar, quando se menciona a palavra “segurança”.
(Este fenômeno foi exposto esta semana, no jornal CounterPunch, por Yonatan Mendel
SE O GOVERNO não expõe com clareza suas intenções e motivos, só resta deduzi-los a partir das ações do mesmo governo. É a regra da dedução jurídica: se alguém faz alguma coisa com resultado facilmente previsível, assume-se que fez para obter aquele resultado.
O governo que ordenou a matança em Belém visava, sem dúvida alguma, a torpedear o cessar-fogo.
Por que torpedear o cessar-fogo?
Há vários tipos possíveis de cessar-fogo. O mais simples é fazer cessar as hostilidades na fronteira da Faixa de Gaza. Nem Qassams, Grads e morteiros de um lado; nem assassinatos seletivos, bombardeio, tanques e incursões do outro lado.
Sabe-se que o exército não concorda com isto. Querem ser deixados livres para “liquidar” por ar, por terra e por mar. Querem um cessar-fogo de um só lado.
Um cessar-fogo ‘parcial’ é impensável. O Hamás jamais concordará, enquanto o bloqueio cortar e recortar a Faixa de Gaza em mil direções e fizer da vida, ali, um inferno – faltam remédios, falta comida, os doentes graves não conseguem chegar aos hospitais, os carros não andam, presos em engarrafamentos perpétuos, nada se importa e nada se exporta, nada se produz, não há comércio. Liberar todos os bloqueios de fronteira para o trânsito de pessoas e produtos é, portanto, parte essencial do cessar-fogo.
O governo de Israel não quer fazer isto, porque isto significaria consolidar o poder do governo do Hamás na Faixa de Gaza. Fontes israelenses deixam ‘vazar’ opiniões, segundo as quais Abbás e seu grupo em Ramallah também se opõem ao fim do bloqueio – boato mal-intencionado, porque significaria que Abbás estaria fazendo guerra contra seu próprio povo. O presidente Bush também rejeita o cessar-foto, por mais que os porta-vozes digam o contrário. E a Europa, como sempre, acompanha o voto dos EUA.
O Hamás concordaria com um cessar-fogo que se aplicasse só à Faixa de Gaza, mas não à Cisjordânia? É pouco provável. Esta semana ficou provado que a Jihad Islâmica ativa em Gaza não poderá ser contida, se seus militantes são assassinados em Belém.
Um cessar-fogo local, só em Gaza criará condições para que Barak o ignore a qualquer momento, com alguma provocação como a que houve em Belém. O que acontecerá, já aconteceu várias vezes: o Hamás aceita um cessar-fogo só em Gaza; o exército de Israel mata uma dúzia de militantes do Hamás em Hebron; o Hamás responde com mísseis Grad em Ashkelon; e Olmert diz ao mundo: “Estão vendo? Os terroristas do Hamás violaram o cessar-fogo. Está provado que não temos parceiros!”
Tudo isto implica dizer que um cessar-fogo efetivo e duradouro, que criará a atmosfera necessária para verdadeiras negociações de paz, tem de incluir a Cisjordânia. Olmert-Barak jamais concordarão com isto. E enquanto George Bush estiver no circuito, não haverá pressão efetiva sobre o governo de Israel, na direção da paz.
A PROPÓSITO: Quem está no comando, em Israel, atualmente?
Os eventos desta semana apontam para a resposta: quem toma todas as decisões é Ehud Barak, o homem mais perigoso que há em Israel, o mesmo Barak que detonou a conferência de Camp David e persuadiu toda a opinião pública israelense de que “não temos parceiros para negociar a paz”.
Há 2052 anos, à altura do ano em que estamos hoje, nos “idos de março”, Júlio César foi assassinado. Ehud Barak vê-se, ele mesmo, como uma versão local, última moda, a réplica daquele general romano. Como o romano, Barak gostaria muitíssimo de relatar: “Vim, vi e venci.” A realidade, contudo é muito diferente. Barak veio, viu e destruiu.
*Uri Avnery,85 anos, é membro fundador do Gush Shalom (Bloco da Paz israelense). Adolescente, Avnery foi combatente no Irgun e mais tarde soldado no exército israelita. Foi três vezes deputado no Knesset (parlamento). Foi o primeiro israelense a estabelecer contato com a liderança da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) em 1974. Foi durante quarenta anos editor-chefe da revista noticiosa Ha'olam Haze. É autor de numerosos livros sobre a ocupação israelense da Palestina, incluindo My Friend, the Enemy (Meu amigo, o inimigo) e Two People, Two States (Dois povos, dois Estados).
[1][1] A [organização] Shabak (abreviatura, em hebraico de Sherut Bitachon Klali, em inglês, General Security Service) é muitas vezes designada pelo nome antigo da organização, Shin Bet; são os serviços de segurança interna de Israel, o equivalente israelense do Federal Bureau of Investigation (FBI) norte-americano. É uma das três principais organizações da Comunidade de Inteligência Israelense, ao lado da Aman (inteligência do exército, Israel Defense Forces (IDF) e do Mossad (encarregado das operações no exterior). NT.
[2][2] YONATAN MENDEL, 12/3/2008, “How to be an israeli journalist. Never Write ‘Murder’ or ‘Palestine’ ”. CounterPunch, na internet em http://www.counterpunch.org/mendel03122008.html
fonte: Blog do Bourdoukan
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