segunda-feira, 31 de março de 2008

1964 – o ano que a luz apagou



por Laerte Braga

Quem olhar para o 1º de abril de 1964 e para o 28 de março de 2008, 44 anos depois, vai constatar que certo estava o general Golbery do Couto e Silva, chamado de “o bruxo”, quando disse que no “Brasil vivemos momentos de sístole e momentos diástole”.

O general quis dizer que haviam fases que o Brasil necessitava de um governo centralizador (a ditadura) e outras onde poderia descentralizar (a democracia). O que vale dizer que nada muda, todas as vezes que o modelo estiver ameaçado as elites adotam essa fórmula de gerir os “negócios”. Ou um, ou outro.

O presidente Luís Inácio Lula da Silva disse hoje que “a oposição destila ódio”. Há uma diferença fundamental entre Lula e as principais forças políticas que se lhe opõem. Ao PSDB e aos DEMocratas não importa se sístole ou se diástole. Importam os interesses que representam.

Isso equivale a dizer que democracia ou ditadura é irrelevante desde que o modelo permaneça inalterado, ou seja, o controle do leme esteja em mãos dos latifundiários, do sistema financeiro, das elites empresariais de São Paulo, todos subordinados à matriz.

Golbery do Couto e Silva foi um dos signatários do manifesto dos coronéis que pediram, em 1954, o afastamento do então ministro do Trabalho João Goulart. Goulart havia levado ao presidente Getúlio Vargas o decreto que aumentava em 100% o valor do salário mínimo.

O golpe militar de 1964 foi uma decisão de Washington, numa época em que o mundo se dividia entre duas superpotências e diante do impacto da revolução cubana nos povos latino-americanos. A percepção que sair do estado de colônia era possível.

Os EUA começavam a enfrentar ainda a catastrófica guerra do Vietnã onde foram batidos política e militarmente, o maior desastre da história daquele país e cujos impactos ainda se fazem sentir até hoje.

Estava em pleno vigor a chamada ”teoria do dominó”. Consistia num raciocínio simples: se uma peça cai, todas caem.

Uma comissão formada por grupos privados, coordenada pela Fundação Rockfeller e chamada Comissão Tri-lateral – AAA – (América, Ásia e África) definia pelo lado norte-americano as políticas de intervenção, golpes e toda a sorte de mecanismos de controle sobre os países dependentes.

A América Latina era considerada quintal (ainda o é) dos Estados Unidos. No caso específico da América Central ditaduras familiares eram sustentadas (Nicarágua e República Dominicana) por Washington e generais se revezavam no poder nos outros países da Região, ao sabor dos interesses da matriz e de suas respectivas capacidades de serem submissos (preços).

Na América do Sul a queda de ditadores como Juan Perón, Rojas Pinilla, Pérez Jimenez e a presença de governos tíbios e subservientes, as crises no Brasil decorrentes das sucessivas tentativas de golpe contra Getúlio (a partir de 1950), JK e a renúncia do tresloucado Jânio Quadros, terminaram no governo João Goulart.

Goulart era um misto de estancieiro, rancheiro, pupilo preferido de Getúlio Vargas e com posições à esquerda das elites brasileiras. Assumiu em condições precárias e em um grande acordo que implantou o parlamentarismo como forma de evitar uma eventual guerra civil. De volta o presidencialismo por conta de um referendo, assumiu posturas que contrariavam os interesses dos EUA.

Em 13 de março de 1964 baixou vários decretos que culminaram na sua deposição. O que desapropriava as terras às margens de rodovias, ferrovias, leitos de rio e lagos em até oito quilômetros para fins de reforma agrária. O que nacionalizava todo o ciclo do petróleo (distribuição inclusive). O que taxava a remessa de lucros das empresas estrangeiras para suas matrizes e o que abria caminho para a reforma urbana. Tudo dentro de um projeto para o País formulado basicamente pelo ex-ministro e criador da SUDENE (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste) Celso Furtado.

Ademar de Barros, governador de São Paulo, era, por exemplo, um dos maiores proprietários de terras às margens de rodovias. Antes de abrir uma estrada em seu estado comprava as terras. E com dinheiro público evidente.

Carlos Lacerda era um líder de extrema-direita que havia saído dos quadros do Partido Comunista numa transposição histérica e ditada por motivos familiares, candidato a presidente da República no que se imaginava seriam as eleições de 1965.

As Forças Armadas brasileiras estavam divididas entre grupos de esquerda, nacionalistas de direita, nacionalistas disso, daquilo, legalistas, mais ou menos legalistas e oportunistas.

A revolução cubana era a grande bandeira das forças progressistas. Uma pequena ilha enfrentando a maior potência militar e econômica do mundo e vencendo.

A revolução de 1930 aconteceu na gula das elites paulistas que romperam a chamada política café com leite, em que mineiros e paulistas se revezavam no governo numa partilha das fortes elites rurais e incipientes elites urbanas.

O golpe de 1º de abril de 1964 aconteceu numa clara intervenção política dos Estados Unidos no Brasil (se estenderia a toda a América do Sul depois), montada e orquestrada pelas classes dominante, à frente a paulista e a cooptação dos militares comandados por Washington se deu pela presença do general Vernon Walthers. A presença do Brasil na IIª Grande Guerra aconteceu como parte da força norte-americana e Walthers era o oficial de ligação entre os militares brasileiros e o comando dos EUA. Falava fluentemente o português e era amigo entre outros de Castello Branco, primeiro “presidente” do círculo/circo de horrores militar.

Olímpio Mourão Filho, comandante da IV Região Militar, sediada em Juiz de Fora, Minas Gerais foi apenas um instrumento da chamada linha dura (extrema-direita) que buscou antecipar-se ao golpe dentro do próprio golpe e foi logo engolido pelo grupo pró-EUA. Mourão era ligado a Juscelino e sua história registrava a montagem do chamado Plano Cohen. Um plano criado para implantar a idéia do perigo comunista e permitir a Getúlio Vargas, em 1937, o golpe do Estado Novo.

Permitiu o elemento surpresa e desmontou o esquema militar do presidente Goulart, montado por seu chefe de Gabinete Militar, general Assis Brasil, num momento que o então ministro da Guerra (hoje do Exército), Jair Dantas Ribeiro se encontrava hospitalizado e acéfalo o Estado Maior janguista.

O próprio Jango desistiu da reação quando já no Rio Grande do Sul forças legalistas sob o comando do general Ladário Teles garantiam ao presidente condições efetivas de enfrentar os golpistas, até porque Leonel Brizola já havia tomado também o governo do Estado (o governador Ildo Meneghuetti fugira para o interior).

O golpe, num primeiro momento, promoveu uma limpa dentro das próprias Forças Armadas evitando qualquer reação à frente e tratou de isolar o marechal Teixeira Lott, principal liderança legalistas, mas na reserva.

O grupo militar vencedor passou a executar a política de horrores das prisões indiscriminadas, da barbárie da tortura, dos assassinatos políticos, de operações conjuntas com outras ditaduras na América do Sul, a chamada Operação Condor, transformando, definitivamente, o perfil do País e dessa parte do continente americano, atrelando-o aos interesses dos Estados Unidos, conduzidos pelos verdadeiros donos do poder. As elites do campo e da cidade, latifundiários, banqueiros, grandes empresários.

Três figuras se destacam como representantes diretos desse meio. Roberto Campos, Delfim Neto e Mário Henrique Simonsen. Assim como Pedro Malan foi o mais qualificado funcionário norte-americano no período dito democrático, o governo de Fernando Henrique Cardoso (punha e dispunha, controlava o presidente e sua vaidade inclusive).

A sístole e a diástole definidas por Golbery são uma realidade. Lula está fora desse contexto independente de maior ou menor avaliação de mérito de seu governo e tem razão quando afirma que a oposição “destila ódio”. Está possessa por não ter a chave do cofre e por não poder mostrar serviços efetivos aos que pagam e controlam, Washington.

Os militares? Foram apenas os bárbaros e cruéis executores da parte da borduna nesse processo todo, falo de 1964. A Polícia qualificada dos Estados Unidos, os executores das ordens das elites.

Coube a eles o serviço sujo e o fizeram com tal zelo que até hoje devem ao Brasil e aos brasileiros a explicação e a verdade de toda a imundície subterrânea do ódio e da violência. Ao abraçar a tese que as Forças Armadas não podem ser “desmoralizadas” pelos excessos do período, ou que estavam em guerra (quebraram a ordem constitucional), na verdade, de fato se desmoralizam, de fato e diante da História.

Como afirmou Samuel Johnson, “o patriotismo é o último refúgio dos canalhas”. Escudaram-se nessa doença típica da extrema-direita.

Entre 1964 e 1984 a luz esteve apagada numa escuridão sangrenta e estúpida promovida pela ditadura. Hoje a luz está acesa, mas teimam em tentar apagá-la, mesmo que sob a batuta de uma farsa democrática.

O que existe de fato é a velha luta de classes.

E continua a não existir saída no chamado mundo institucional, mero instrumento para o processo revolucionário no sentido real da palavra.

Se em 1964 vivíamos o fascínio da revolução que libertou Cuba, hoje vivemos a realidade de Hugo Chávez e do bolivarianismo. Evo Morales, Rafael Corrêa (mas ainda devendo algumas explicações sobre o ataque terrorista da Colômbia que matou Raúl Reyes) e governos com maior nível de independência em relação à matriz. Dentre eles o Brasil.

E num contexto de uma única superpotência, mas tal e qual os tempos do Vietnã, atolada num fracasso político e militar no Iraque.

As personagens sombrias como Carlos Lacerda, Ademar de Barros, Magalhães Pinto e outros foram engolidos na voracidade desse monstro e só se perceberam instrumentos quando do momento da execução (política).

1964 não foi nada além de uma quartelada e um capítulo da luta de classes. Naquela batalha vencida pela barbárie. A luta permanece, noutro contexto de tempo e espaço, mas é basicamente a mesma.

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Laerte Braga é jornalista. Nascido em Juiz de Fora, trabalhou no Estado de Minas e no Diário Mercantil.

Fonte: Fazendo Media


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