quinta-feira, 27 de março de 2008

Favela sitiada

Há 20 dias, a desempregada Edna Cândida de Queiroz perdeu a principal fonte de renda. As chuvas das últimas semanas caíram com mais força e junto vieram os problemas. Buracos surgiram na rua sem asfalto em frente à casa dela. Uma das crateras foi aumentando de tamanho até fazer a carroça de Edna virar e quebrar. Desde então, ela perdeu a chance de fazer os bicos que sustentam a família de seis pessoas. “Vou botar a culpa em quem: na chuva ou no governo?”, questiona. Como consolo, ela viu a prefeitura colocar cascalho no buraco. Junto com ela, outras duas mil famílias enfrentam as mesmas dificuldades na favela Super Quadra (SQ) 19, na Cidade Ocidental, município de Goiás, no Entorno de Brasília, localizada a 47 quilômetros da Praça dos Três Poderes. (Clique na foto acima para conferir a galeria de imagens)

No auge da chuvas, os buracos impedem a entrada de caminhões e ambulâncias na favela. Os moradores são obrigados então a colocar lixo na avenida lateral ao bairro. Muitas vezes, os caminhões não passam a tempo e a chuva arrasta o lixo e o espalha em frente às casas. Assim, ratos, baratas e outros insetos invadem os lares. No quarto do filho, Edna Cândida encontrou uma aranha, daquelas peludas, típicas dos filmes de terror. Na SQ 19, também não há esgoto e, por vezes, o cheiro de fezes das fossas domina o local.

Mas a chuva não pode ser considerada a principal causa para tantos males. A Super Quadra 19 – considerada bairro em razão do alto índice demográfico – é o espelho das políticas públicas feitas no Entorno nas últimas décadas. A região tem a pior distribuição de renda do País, segundo levantamento do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (IETS), feito no ano passado. A maior parte da população da SQ 19 é desempregada e depende de bicos e cestas básicas da prefeitura. E o motivo dos problemas na Cidade Ocidental, com 50 mil habitantes, é o mesmo de toda a região de pobreza que cerca Brasília: distribuição eleitoreira de lotes e crescimento desenfreado.

Antes, a favela era um brejo e ponto de diversão de crianças. No fim da década de 1990, começaram a se espalhar promessas de que a prefeitura iria doar lotes. Foi o suficiente para mais de duas mil famílias ocuparem o local em poucos anos. E os problemas fundiários estão longe de serem resolvidos. O terreno sequer é da prefeitura, até hoje enrolada na promessa da regularização da terra por parte do governo do Distrito Federal. Em novembro do ano passado, o município iniciou o processo de cadastramento dos moradores do bairro. “Não é porque o lote ainda não é nosso que a gente vai ficar aqui largado”, conclui o ajudante de pedreiro Messias Santos da Silva.

Os moradores da favela correm o risco de serem desapropriados. O bairro está localizado em uma área de proteção ambiental, em cima de um lençol freático. Além dos problemas típicos das chuvas, em algumas ruas, literalmente, brota água de nascentes. A dona-de-casa Iara Martins é uma das muitas moradoras acostumadas às infiltrações. Anualmente, ela é obrigada a reparar as paredes e refazer a pintura. “Se soubesse que essa terra seria só problema, eu não teria colocado o primeiro tijolo”, diz Iara, que veio do Maranhão. A dona-de-casa conta ter visto até um trator atolar em frente de casa.

O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) prevê investimentos de 13 milhões de reais na Cidade Ocidental, até 2010. A prioridade será a construção de habitações para moradores de áreas de risco permanente. As obras estão em fase de contratação. No total, serão 1,4 bilhão de reais investidos no Entorno no mesmo período.

Não é a primeira vez que o governo federal investe na região. Em 2004, o Ministério das Cidades começou um projeto de urbanização das favelas da Cidade Ocidental, em especial a SQ 19. As ruas serão asfaltadas e um sistema de saneamento básico e drenagem será construído, além de escola e posto policial.

As obras, porém, estão paradas há seis meses, segundo os moradores. No local, não há qualquer vestígio de obras em andamento. No Ministério das Cidades, o projeto consta como “em execução” e com 33% concluído. O último acompanhamento feito pelo ministério é de outubro do ano passado, quando foram repassados 300 mil reais à construtora Coensa pelos serviços prestados.

Segundo a assessoria do Ministério das Cidades, a responsabilidade de execução das obras é do município. O prefeito Plínio Araújo, do PSDB, está hospitalizado desde o início do mês, quando sofreu graves complicações em um pós-operatório. A vice-prefeita Sônia de Melo Augusto está no comando de Cidade Ocidental desde a terça-feira 11, mas não retornou os contatos de CartaCapital. Segundo o representante dos moradores no conselho de fiscalização do projeto de urbanização, Jurandir Santos, a prefeitura justificou que a obra está parada porque a construtora será trocada. Mas não foram apresentados mais detalhes ao conselho sobre a nova empreiteira e a retomada da urbanização.

No início de março, a dona-de-casa Maria Cibélia Fontinelli decidiu tentar reverter o quadro de abandono da SQ 19. Em dez dias, ela colheu 761 assinaturas e pretende conseguir mais duas mil. O objetivo do abaixo-assinado é sensibilizar as autoridades. “A paciência acabou. É lama na chuva e poeira na seca”, diz. “Ter asfalto é nosso direito”, completa Maria, às voltas com quatro netos em casa com bronquite.

A Cidade Ocidental ganhou projeção nacional em setembro, quando o jornalista Amaury Ribeiro Júnior, do Correio Braziliense, foi baleado durante investigação sobre a violência no município. O crime convenceu os governos do Distrito Federal e Goiás a pedirem o apoio da Força Nacional de Segurança (FNS), organizada pelo Ministério da Justiça. Logo no primeiro mês de atuação dos 150 policiais enviados ao local, os índices de criminalidade diminuíram em 7%.

No balanço de fevereiro, porém, o número de homicídios no Entorno foi o mesmo de antes da operação. Foram 50 assassinatos no último trimestre de 2007 – quando a operação começou – e 49 no mesmo período de 2006. Entre os moradores, é consenso que a presença da FNS aumentou a sensação de segurança. “Mas só olharam para cá porque o cara era repórter”, afirma Paulo César Lima, desempregado. A operação vai até 18 de abril.

A Cidade Ocidental obedece ao ciclo de inchaço populacional e pobreza que cerca Brasília. O município é oficialmente do estado de Goiás, mas a maior parte da população empregada trabalha na capital federal – condição comum às cidades do Entorno. A explosão demográfica da Cidade Ocidental aconteceu no início da década de 1990. O então governador do Distrito Federal, Joaquim Roriz, usou os terrenos pertencentes ao DF como instrumento para distribuição de lotes. Boa parte da população é de origem nordestina. Passados mais de 15 anos da criação do município, em 1993, a cidade continua a viver à margem de Brasília. E os políticos locais pouco se interessam em mudar essa situação. Explica-se: 25% dos eleitores de lá votam no DF.
Por Filipe Coutinho
Fonte: Carta Capital

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