segunda-feira, 17 de março de 2008

Estratégia continental

A guerra global contra o terrorismo chegou à América Latina – chegou com o Plano Colômbia, mas a incursão no Oriente Médio provocou algum atraso – e assume aqui as mesmas características que adquiriu em outros continentes: utilizar um aliado privilegiado (seja a Colômbia, Israel ou Paquistão).

Sobre a incursão do exército colombiano em território do Equador para eliminar um grupo de guerrilheiros das FARC, parece estar tudo dito; principalmente se parece como um caso encerrado, encerrado com sucesso. Mas a verdade é que não é bem assim. O que é revelado sobre a situação é tão importante quanto aquilo que se oculta.

Primeiro ocultamento: os processos políticos na América Latina questionam o controle continental que os EUA precisam para garantir o livre acesso aos recursos naturais da região. Trata-se de uma ameaça à segurança nacional dos EUA que, diante do fracasso iminente das respostas "consensuais" (livre comércio e concessões para as bases militares), busca uma resposta firme e unilateral. Ou seja, a guerra global contra o terrorismo chega ao continente – chegou com o Plano Colômbia, mas a incursão no Oriente Médio provocou algum atraso – e assume aqui as mesmas características que adquiriu em outros continentes: utilizar um aliado privilegiado (seja a Colômbia, Israel ou Paquistão), ao que, ao longo do tempo, se proporciona ajuda militar e informação de espionagem sofisticados, deixando-o ao abrigo de represálias e permitindo-lhe ações dramáticas de baixo custo e um êxito certeiro; incita-se este aliado ao isolacionismo regional como preço a pagar pela aliança hegemônica.

A guerra contra o terrorismo inclui ações muito visíveis e outras secretas. Entre as últimas estão os atos de espionagem e de desestabilização; Bolívia, Venezuela, a tríplice fronteira (Paraguai, Brasil, Argentina) são os alvos privilegiados. Na Bolívia, bolsistas norte-americanos da Fundação Fulbright são chamados pela Embaixada dos EUA para dar informação sobre a presença de cubanos e venezuelanos e sobre movimentos indígenas suspeitos; enquanto os separatistas extremistas de Santa Cruz são treinados na selva colombiana pelos paramilitares. Novos fatos: nas ações de desestabilização podem participar empresas militares e de segurança privada, contratadas pelos EUA sob o parapeito do Plano Colômbia que, além disso, dota-as de imunidade diplomática e, portanto, de impunidade diante da Justiça nacional.

Segundo ocultamento: a verdadeira ameaça não são as FARC. São as forças progressistas e, em especial, os movimentos indígenas e campesinos. De fato, a permanência das FARC é fundamental para manter a justificação da guerra contra o terrorismo e gerar um clima de medo e uma lógica bélica que bloqueia o avanço das forças progressistas, denominadas Pólo Democrático da Colômbia.

Pela mesma razão, a intervenção humanitária a favor dos reféns teve que ser desmontada para que Hugo Chávez não obtivesse crédito político. As forças políticas progressistas ameaçam a dominação territorial dos EUA através de medidas que buscam fortalecer a soberania dos países sobre os recursos naturais e alterar as regras da distribuição dos benefícios da sua exploração.

Mas a maior ameaça vem daqueles que invocam direitos ancestrais sobre os territórios onde estão esses recursos, ou seja, dos povos indígenas. Com relação a isto, é eloqüente o relatório Tendências Globais-2020, produzido pelo Conselho Nacional de Informação dos EUA, sobre os cenários de ameaça à segurança nacional do país. No relatório afirma-se que as reivindicações territoriais dos movimentos indígenas "representam um risco para a segurança regional" e são um dos "fatores principais que determinarão o futuro latino-americano". Tomando como exemplo as lutas indígenas de Chiapas, Equador, Bolívia, Chile e sul da Argentina, afirma que "no início do século XXI existem grupos indígenas radicais na maioria dos países latino-americanos, os quais em 2020 poderão crescer exponencialmente, obtendo a adesão da maioria dos povos indígenas... Estes grupos poderão estabelecer relações com grupos terroristas internacionais e grupos antiglobalização... que irão questionar as políticas econômicas das lideranças de origem europeu".

Uma vez conhecido tudo isto, não surpreende que o presidente do Peru se pergunte "se não haverá uma internacional terrorista na América Latina". Também não surpreende que atualmente centenas de líderes indígenas do Peru e do Chile tenham sido acusados, ao amparo de leis antiterroristas promulgadas nestes e outros países (por pressão dos EUA), por defender seus territórios. A estratégia fica, então, delineada: transformar os movimentos indígenas na próxima geração de terroristas e, para enfrentá-los, seguir as receitas apontadas no relatório: tolerância zero, reforços para gastos militares, estreitamento das relações com os EUA. A responsabilidade das forças políticas progressistas é conseguir que esta estratégia fracasse.

Artigo publicado originalmente no jornal Página 12 (Argentina)

Tradução: Naila Freitas / Verso Tradutores

Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).

fonte: Agência Carta Maior
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