Por Marcio Pochmann [Sexta-Feira, 5 de Outubro de 2007 às 10:16hs]
Fonte: Revista ForumDesde a década de 1960 que o tema da repartição da renda no Brasil tem fundamental importância. Naquela época, quando predominava o regime militar, a divulgação de dados referentes ao perfil distributivo era acompanhada de intensos estudos debatendo a gravidade da distribuição pessoal da renda do país.
Nos dias de hoje, a questão distributiva não perdeu importância nas discussões, especialmente em relação à condição da desigualdade. Apesar disso, o tema encontra-se cada vez mais focado na avaliação das políticas governamentais, especialmente nos programas de transferência de renda à população extremamente pobre. Não que isso não seja importante, mas se corre o risco de ficar prisioneiro da aparência, mais do que a essência dos determinantes distributivos, toda vez que não se contempla o tema do modelo econômico em curso.
Está clara a reversão mais recente da tendência de aumento da desigualdade no interior do rendimento do trabalho, a partir da queda no índice de Gini. No ano de 2006, por exemplo, esse indicador da desigualdade na distribuição pessoal da renda foi ainda significativamente alto (0,54), porém 8,5% inferior ao constatado em 1980 (0,59). Uma das principais razões disso encontra-se diretamente relacionada ao que vem ocorrendo nos estratos superior e inferior da distribuição na renda do trabalho no Brasil.
Por um lado, observa-se que a participação do decil de maior rendimento (acima de 1,6 mil reais mensais) perde posição relativa durante os últimos quinze anos. No ano de 2006, os 10% de maior remuneração absorveram 44,9% do total da renda do trabalho, enquanto em 1990 capturavam 48,1%. Com a queda de 6,6% acumulada nestes quinze anos (redução de 0,4%, em média ao ano), o Brasil tenderia a levar mais de seis décadas para alcançar o estágio atualmente verificado nas economias avançadas.
Também deve se considerar que a diminuição do peso relativo do rendimento dos ricos no total da renda do trabalho encontra-se diretamente relacionada ao movimento de desestruturação do mercado de trabalho. Isso ocorre em função do baixo crescimento da economia nacional e da forma com que o país vem se inserindo na economia mundial, cada vez mais dependente da produção e exportação de bens de baixo valor agregado e do crescente uso do padrão de emprego asiático (baixa remuneração, alta rotatividade e extensa jornada de trabalho). Em síntese, a desestruturação do mercado de trabalho avança tanto com a expansão dos empregos precários e sem regulação, que mina a capacidade de geração dos empregos de classe média, como pela manutenção do elevado desemprego, que fragiliza a trajetória das remunerações em virtude da intensa rotatividade dos trabalhadores ocupados.
Por outro lado, observa-se o fortalecimento da participação dos 40% de menor renda do trabalho. A melhora relativa do rendimento do estrato inferior na escala distributiva deve-se fundamentalmente aos ganhos obtidos em função dos avanços consagrados pela Constituição Federal de 1988 (equivalência do valor da aposentadoria ao salário mínimo, aposentadoria rural, LOAS, entre outras medidas), da recuperação do valor real do salário mínimo e da ampliação das políticas de garantia de uma renda mínima.
Essa realidade da distribuição da renda refere-se fundamentalmente ao conjunto de rendimentos vinculados ao rendimento do trabalho. A Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (PNAD) do IBGE, que serve para análise dos atuais dados de repartição da renda no Brasil captura R$ 96,40 de remuneração do trabalho e dos proventos da Previdência Social a cada R$ 100,00 da renda total.
Acontece que o peso dos rendimentos do trabalho na renda nacional representa somente 39,1%, conforme dados da Contas Nacionais do IBGE. Além disso, a participação relativa da renda do trabalho vem caindo desde 1980, quando chegou a representar 50% da renda nacional.
Em outras palavras, é a parte da renda do conjunto dos verdadeiramente ricos que se distancia da condição do trabalho, aliando-se cada vez mais a outras formas de renda, como parece ser o caso da posse da renda da propriedade (lucros, renda da terra, ações, títulos financeiros, entre outras). No essencial, o crescimento relativo na renda dos proprietários encontra maior respaldo entre os detentores da riqueza financeira, uma vez que os ganhos não produtivos têm sido de maior escala que aqueles oriundos da atividade produtiva, onde, em geral, encontram-se os trabalhadores.
Por conta disso, o Brasil consegue hoje combinar estranhamente a trajetória de agravamento no processo de distribuição funcional da renda com a melhora no perfil distributivo somente no interior da renda do trabalho. Para alterar esse paradoxo distributivo, o país precisa urgentemente tratar do seu modelo econômico que do conjunto das políticas sociais.
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