por Rafael Barros
Há uma teoria popular segundo a qual uma paixão não dura mais do que 2 anos. Talvez tenham exagerado no tempo.
Nos encantamos com a mesma facilidade com que perdemos o interesse pelas coisas. Definitivamente, nossa sociedade vive tomada por um epicurismo doentio, que subverte o tempo natural das relações e relega às pessoas o mero papel de objetos de desejo.
Não vai obviamente uma conotação sexual na observação, embora se saiba que ela exista em muitos casos. O objeto de desejo pode ser, por exemplo, uma promoção no trabalho ou a ânsia por vantagem em determinado empreendimento.
Desnecessário recorrer a Marx, Hobsbawm, Bourdieu ou Bauman. Sem entrarmos em ideologias de governo, está na cara que há um fundo econômico no consumismo social, afinal a mesma raiz que produz o dinheiro problematiza a riqueza.
Em certo momento de nossa existência histórica coletiva, criamos uma moeda de troca para comercializar nossos produtos. Ao fazer isso, acabamos conferindo valores aos artigos à nossa volta, fossem eles materiais ou não. Se o dinheiro compra uma casa, sua acumulação projeta o status social, sutil armadilha de corrosão do caráter e da pragmatização das relações.
O assunto vem ocupando as tribunas sociológicas, antropológicas e políticas há muito tempo, mas agora as pessoas começam a deter especial atenção sobre essa corrosão de caráter e essa fluidez perniciosa nas relações. Afinal, começam a ser, ao mesmo tempo, agentes e pacientes de sua própria morte através do sistema em que estão inseridas. Em outros tempos não era assim.
Se um país declarava guerra a outro, se sabia de antemão quem era o inimigo a ser combatido. O medo poderia ser projetado para fora e por antecipação como uma forma de defesa. Os mais cautelosos chamariam isso de planejamento. Outros diriam frieza ou racionalidade. Então, não é de se estranhar que a genealogia moral européia tenha forjado cidadãos tão frios ao longo dos séculos e a racionalidade científica tenha ganhado status de bula episcopal.
O problema é que perdemos o agressor externo a nos perturbar. Melhor, não perdemos. Perdemos foi a capacidade de detectar a ameaça como tal. A preocupação excessiva com a doença e a crença absoluta no antídoto nos retiraram da reflexão sobre a causa dos males. É emblemático, nesse sentido, que se morra de câncer e de infarto, e não de varíola ou febre espanhola.
Há muito os sábios orientais profetizavam que a saúde é um estado permanente de equilíbrio. Muito mais o resultado de um projeto de vida coerente com a auto-sustentabilidade - outros diriam, a microecologia - do que a antítese da doença. Hoje, só nos preocupamos com saúde quando estamos doentes. Se estamos mal, queremos ficar sãos, mas raramente vivemos de maneira saudável.
Não há droga mais tóxica do que a alienação espontânea. Ela é engendrada, consumida e expurgada por nós mesmos. Sem a auto-consciência acerca de nossas limitações e possibilidades, fabricamos, a um só tempo, nosso veneno e nosso antídoto. O problema é que uma hora o corpo não agüenta essa montanha-russa de sensações. Os mais sortudos só ficam doentes. Há quem não suporte e entre em colapso mental ou físico.
Quem consome maconha, cocaína, ecstasy ou LSD está apenas na ponta do iceberg humano. Muito provavelmente do lado de fora do mar, suicidamente visível ao preconceito alheio, embora suplicando tresloucadamente por ajuda sem dizer uma palavra. A maioria, entretanto, sustenta a grande camada de gelo invisível. O sistema é a cor branca, a nos incutir resignação de que uma pedra de gelo, ora bolas!, uma pedra de gelo só pode ser assim mesmo: branca.
Branca como o disco de Newton, ao reunir ilusoriamente todas as cores. O mundo elimina fronteiras e suspende a dissensão. Reprime com seus aparelhos invisíveis ou referendados as diversidades, ao reconhecer uma espécie de pluralidade ahistórica. Não há problema em se ser diferente, desde que igual perante a lei do consumo e a égide do capital. Os fins não só justificam os meios, mas suspendem o meio da história. Antes, nos detínhamos no processo. Hoje, basta o resultado.
Assim, repousamos tranqüilamente nossas cabeças sobre o travesseiro de nossa consciência dia após dia, sem ao menos desconfiarmos que, homeopaticamente, estamos submersos em um sistema ontologicamente fatal e historicamente insolúvel.
Rafael Barros é jornalista.
fonte: Caros Amigos
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