sábado, 15 de março de 2008

Dom João e Dona Maria, nobres. Maria e João, pobres.

por Chico Alencar

Em meio às pomposas celebrações oficiais pelo bicentenário da chegada da família real no Brasil – algo carnavalescas, reconheça-se – uma indagação “republicana” merece ser feita: o que a plebe, isto é, o João, a Maria, a Carlota, o José, a Joaquina, o Francisco, a Teresa, o Luís, a Caetana e o Antônio pensaram daquelas novidades? O que, para o povo de escravos e pobres de São Salvador da Bahia de Todos os Santos e de São Sebastião do Rio de Janeiro, significou receber o príncipe dom João Maria José Francisco Xavier de Paula Luís Antônio Domingos Rafael de Bragança e sua desgarrada esposa, dona Carlota Joaquina Teresa Caetana de Bourbon e Bourbon?

Europa em guerra
Seguramente poucos dos menos de 3 milhões de habitantes do Brasil – sem contar os nativos, inclusive de muitas tribos desconhecidas dos brancos – sabiam que a Europa daquele início do século 19 vivia uma guerra por mercados, uma acirrada disputa de burguesias em ascensão. A Inglaterra da Revolução Industrial, da máquina a vapor, era “a senhora dos mares”, com sua poderosíssima esquadra tentando fazer o bloqueio marítimo do Velho Mundo. No outro pólo, a França napoleônica, com seus temidos exércitos garantindo o Bloqueio Continental. E, como uma ostra na luta do rochedo contra o mar, o decadente Reino de Portugal, mais do que nunca dependente do ouro, dos diamantes, do açúcar, do tabaco e do tráfico de escravos do Brasil, sua “vaca leiteira”. A resposta ao Tratado de Fontainebleau, entre França e Espanha, foi a Convenção Secreta de Londres, pela qual o governo de Portugal se comprometia a deixar seu espaço nacional na península e se estabelecer num território noventa vezes maior, a colônia do Brasil.

“Portugal mudou-se”
Embora já cogitada outras vezes, até pelo padre Antônio Vieira, no século 17, essa transferência agora parecia inevitável. Para gáudio de industriais e comerciantes ingleses, que já não aceitavam o papel de mero intermediário de produtos brasileiros que Portugal representava. Mas mesmo algo pensado muitas vezes pode ser realizado de forma atabalhoada. Foi o que aconteceu. O que aprendemos doce e docentemente como “transmigração da família real para o Brasil” consistiu numa fuga nervosa, com a população de Lisboa, de 200.000 almas, sem entender direito o que se passava e, quando informada, repudiando a atitude dos seus governantes, com apupos, pranto e até pedradas.

Naquele 29 de novembro de 1807, quando as combalidas tropas de Junot, general de Napoleão, já entravam no norte de Portugal, a corte partiu, em 44 naus, muitas necessitadas de reparos. Conta-se que, em meio ao tumulto – mais de setecentas carroças carregavam, às pressas, gente e tralhas reais – a voz da serenidade coube à rainha-mãe, afastada do trono e havia dezesseis anos sem ver a luz do dia. Carregada numa cadeira, dona Maria I, demente, rogava: “Não corram tanto assim: vão pensar que estamos a fugir!”. No caos do cais, 60.000 livros e pratarias retiradas de igrejas ficaram esquecidas.

Amarga travessia
Longa e sofrida viagem. Cinqüenta e cinco dias entre o céu e o mar, nos 6.400 quilômetros que separam Lisboa de Salvador, o frio inverno europeu do calor tropical. Sol escaldante ou tempestades temerárias, água logo salobra, biscoitos, repolho, lentilha e carnes salgadas disputados aos ratos, enfermidades as mais variadas, que causavam doenças de pele e perda de dentes. Naquelas embarcações de uma frota superada, que atraía naufrágios, a marujada, tarimbada, suportava. Mas qualquer rei perdia a majestade, com as cortesãs até sem peças de roupas para trocar. Menos mal que dezesseis navios de guerra britânicos faziam a escolta e garantiram que corsários e piratas que infestavam os mares do sul não aumentassem as agruras lusitanas.

O “descanso” de cinco semanas em Salvador foi providencial. Reparos nos cascos e nos “cascudos”, nos “marinheiros” e “caiados” aqui caídos... O inevitável, com a metrópole ocupada por Napoleão: abertura dos portos às nações amigas. Leia-se, à Inglaterra. Comércio sem intermediários. Tropical pompa e circunstância. “Primeira missa, primeiro índio abatido também”? Pois que ali na Bahia também ficasse a sede da primeira monarquia da América do Sul... Apelos vãos. Até porque parte da esquadra, desgarrada, com irmãs de dona Maria e filhas de dom João e dona Carlota, já rumara para a capital da colônia, o Rio de Janeiro, porto mais próximo do eldorado mineiro e diamantino. De 26 de fevereiro a 7 de março, mais dez dias, costeando o litoral tupiniquim, singrando águas por onde Cabral e seus 1.200 homens, três séculos antes, tinham passado.

Rio! E Choro
Que alma cantou ao ver o Rio de Janeiro? Quantos estavam “morrendo de saudade” de uma terra firme e de uma cama que não balançasse? Para os 60.000 moradores do Rio – metade crianças, 12.000 escravos, e outro tanto de mulatos livres e pobres –, já avisados desde janeiro da vinda da corte d´além mar, a curiosidade deu lugar a uma certa decepção. Desembarcou uma ruma alquebrada de fidalgos com roupas sujas e surradas, mulheres com cabeças raspadas para evitar reinfestação de piolhos (virou moda à época!), sem o luxo exuberante do absolutismo que dizia serem eles a representação de Deus na Terra. O cônego Luís Gonçalves, o padre Perereca, cronista áulico, uma espécie de “Caminha” de 1808, ao contrário, considerou tudo uma maravilha.

Os escravos que, “fôlegos vivos”, labutavam pelas 46 ruas do burgo, não ficaram comovidos com a novidade. Continuavam mais preocupados em sair daquela vida de “pão, pano e pau”, buscando refúgio nos quilombos de Santa Teresa ou no entorno da lagoa Sacopenapã, depois chamada Rodrigo de Freitas. E vigiados. Um ministro de dom João já alertara, em 1799: “o que sempre se receou nas colônias é a escravatura, e porque é o maior número de habitantes delas”.

Mas outras pessoas, livres da senzala, foram “expropriadas” de suas próprias casas para dar lugar aos chegantes. Ao receberem o selo P.R. (de “Príncipe Regente”, que o humor carioca logo interpretou como “Ponha-se na Rua”), essas moradias tinham que ser disponibilizadas em 24 horas!

A vida no Rio “engalanado” – ou novamente enganado? – pela corte era rude. Casas toscas, pois a metrópole cujos dirigentes agora chegavam não autorizava construções mais cuidadas e dispendiosas – contingenciamento é coisa antiga, como se vê... Limpeza urbana só aquela providenciada pelos urubus, pela água da chuva e pelo melhor desinfetante: a luz solar, que abundava. Costumes que hoje chocariam, como o de despejar dejetos pelas janelas dos sobrados – nem tudo era lançado pelos escravos “tigres” em córregos ou na baía – e comer com as mãos. Os capoeiras, que davam ao Rio aspecto de “povoado africano”, rejeitado pelos racistas que aportavam, passaram a ser perseguidos. Bem como todas as manifestações culturais afro-brasileiras, como batuques, entrudos, folguedos e algazarras, válvula de escape a um cotidiano de exploração e opressão, que os olhos cortesãos e o poder direto de coerção do Estado que aqui se instalava só iriam aprofundar.

A nova dependência
Mas o essencial, historicamente, foi a mudança que aconteceu. Tornando-se sede do Estado Absolutista português, no Rio fincou-se o marco urbano do Brasil independente de Portugal, agora diretamente subordinado aos ditames da Inglaterra. Os tratados de 1810, “os mais lesivos e desiguais contraídos entre duas nações”, celebrados entre o representante inglês, lorde Strangford, e o ministro Sousa Coutinho, sacramentavam essa dependência. Houve, de fato, nos treze anos de dom João aqui, a montagem de uma estrutura administrativa até então inexistente. Surgiram, sempre pelas mãos dos trabalhadores escravos, muitas academias: a Militar, as de Marinha, de Belas Artes, de Medicina. E a Real Fábrica de Pólvora (afinal, o Reino Unido a Portugal e Algarves também estava em guerra contra a França). E a Biblioteca Real. E o Horto Real. E a Real Casa de Obras. E a Imprensa Régia, rigorosamente censurada (de Londres, Hipólito José da Costa denunciava, em seu Correio Braziliense, a corte “infame, corrupta e depravada”). E a Casa da Moeda. E o Banco do Brasil. E a Guarda Real, do temível major Vidigal. E a Intendência Geral da Polícia.

Em 1821, ao partir, choroso dom João, exultante dona Carlota, sempre incompatíveis entre si, a capital do Brasil estava diferente: sua população quase dobrara, com 112.695 habitantes. Mas a parcela sob os ferros da escravidão crescera cinco vezes: 55.000. Afinal, a Corte fez a alegria dos traficantes de escravos, e os cafezais começavam a subir as serras do Vale do Paraíba. O ritmo das construções era frenético. Empolgava padre Perereca: “Continuamente estão se edificando, sobre as ruínas das antigas, novas casas de um, dois e três sobrados, de sorte que não há rua alguma em que não se vejam obras novas, o que promete que esta cidade, em período não remoto, virá a ser uma das mais belas e populosas do Novo Mundo, e Corte digna de um grande soberano”. Pelas mãos dos trabalhadores escravos, caro prelado... E movida pela dinâmica da dependência externa, do latifúndio e da montagem de uma máquina burocrata parasitária, sugadora das riquezas da sociedade. Mal distribuídas, elas consolidavam a desigualdade nos primórdios da futura nação. E uma administração inchada, ineficiente e corrompida. Talvez por isso era enorme a fila do beija-mão...

Chico Alencar é professor de história, mestre em educação e deputado federal (PSOL-RJ).

fonte: Caros Amigos


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