quinta-feira, 13 de março de 2008

AS RÁDIOS LIVRES EM DIREÇÃO A UMA ERA PÓS-MÍDIA

AS RÁDIOS LIVRES EM DIREÇÃO A UMA ERA PÓS-MÍDIA
Felix Guattari

O fenômeno das rádios livres só toma seu sentido verdadeiro se o recolocamos no contexto das lutas de emancipação materiais e subjetivas. Na Itália e na França, ele foi um dos últimos florões das revoluções moleculares que se sucederam aos movimentos de contestação dos anos 60. Nos últimos anos, a situação européia foi submetida a um congelamento social, político e cultural, para não dizer a uma onda de glaciação. Isso tem a ver com o esforço desse continente em manter seu lugar entre as grandes potências econômicas e militares que dele se distanciam cada vez mais. As diferentes categorias sociais que o compõem se apertam friorentamente umas nas outras, agarrando-se às suas 'conquistas' e às suas ilusões. Só uma minoria de marginais consegue se manter fora do consenso reacionário. Nessas condições, a maior parte dos grandes movimentos de emancipação se encontram abatidos ou jogados para escanteio.

A situação é muito diferente no continente latino-americano e em particular no Brasil, onde centenas de milhões de pessoas se encontram marginalizadas em relação à economia dominante. E como nada autoriza esperar que elas possam vir a se integrar docemente em uma sociedade do tipo norte-americano, europeu ou japonês, é possível supor que elas só poderão afirmar seu direito à existência através da reinvenção de novas formas de luta e de expressão. Novas: porque, manifestamente, não se pode mais dar credibilidade aos métodos políticos obtusos e corporativos dos velhos partidos e sindicatos de esquerda. Sem dúvida, as lutas clássicas no campo do trabalho e na arena política tradicional continuarão a desempenhar um papel importante para o estabelecimento de relações de força globais com as classes conservadoras, mas elas não poderão mais dar um conteúdo verdadeiramente emancipador a essas lutas se as diferentes composições da esquerda permanecerem impregnadas de valores conservadores. A intervenção de uma inteligência alternativa, de práticas sociais inovadoras, como é o caso das Rádios Livres, parece portanto indispensável à saúde de centenas de milhões de explorados desse continente. Essa recusa parcial das práticas da esquerda tradicional não impede de maneira nenhuma que se estabeleça com ela alianças - por exemplo, nessa questão das rádios livres. Não implica, portanto, um fechamento sectário sobre os grupúsculos de extrema esquerda que, de maneira mais velada, são também incapazes, na maioria das vezes, de entender as profundas mutações que se operam na sociedade contemporânea. Novas e mais amplas alianças podem ser criadas para reinventar novas formas de vida - talvez de sobrevivência - e de luta. Por exemplo, em certos setores da Igreja ligados à teologia da libertação.

As primeiras rádios livres do Brasil foram acolhidas com uma certa reserva. Alguns recearam que sua aparição pudesse servir de pretexto para uma repressão violenta; outros só conseguiriam ver nelas um replay dos movimentos dos anos 60. É bom que esteja claro, antes de mais nada, que o movimento das rádios livres pertence justamente àqueles que o promovem, isto é, potencialmente, a todos aqueles - e eles são uma legião - que sabem que não poderão jamais se exprimir de maneira convincente nas mídias oficiais. Não se trata, portanto, de um movimento esquerdista, mesmo se são os esquerdistas os primeiros a se engajar corajosamente nessa perspectiva. Isso quer dizer que os seus atuais representantes deveriam evitar todo sectarismo e toda rigidez. Parece evidente que em uma etapa ou outra do processo atual deverão ser estabelecidas negociações com as autoridades. Parece absurdo e irresponsável proclamar que as negociações sobre as condições de exercício das novas mídias serão recusadas por princípio. A questão toda está em fazer essas negociações das melhores relações de força possíveis para os movimentos de emancipação dos jovens, das mulheres, dos negros, dos trabalhadores, das minorias sexuais, dos ecologistas, dos pacifistas, etc.

As rádios livres não nasceram de um fantasma da belle époque dos meia-oitos, como escreveu um jornalista da Folha de São Paulo. Trata-se, pelo contrário, de um movimento que se instaurou, nos anos 70, como reação a uma certa utopia abstrata dos anos 60. As rádio livres representam, antes de qualquer outra coisa, uma utopia concreta, suscetível de ajudas aos movimentos de emancipação desses países a se reinventarem. Trata-se de um instrumento de experimentação de novas modalidades de democracia, uma democracia que seja capaz não apenas de tolerar a expressão das singularidades sociais e individuais, mas também de encorajar sua expressão, de lhes dar, a devida importância no campo social global. Isso quer dizer que as rádios livres não são nada em si mesmas. Elas só tomam seu sentido como componentes de agenciamentos coletivos de expressão de amplitude mais ou menos grande. Elas deverão se contentar em cobrir pequenos territórios; poderão igualmente pretender entrar em concorrência, através de redes, com as grandes mídias: a questão fica aberta. O que a resolverá é a evolução das novas tecnologias. As rádios livres, e amanhã as televisões livres, são apenas uma pequena parte do iceberg das revoluções midiáticas que as novas tecnologias da informática nos preparam. Amanhã, os bancos de dados e a cibernética colocarão em nossas mãos meios de expressão e de concentração, por enquanto inimagináveis. Basta que esses meios não sejam sistematicamente recuperados pelos produtores de subjetividade capitalista, ou seja, as mídias 'globais', os manipuladores de opinião, os detentores do star system político. Trata-se, em suma, de preparar a entrada dos movimentos de emancipação numa era pós-mídia, que acelerará a reapropriação coletiva não apenas dos meios de trabalho mas também dos meios de produção subjetivos.

Fonte: Machado, Arlindo; Magri, Caio; Masagão, Marcelo; eds. Rádios livres - A reforma agrária no ar. Editora Brasiliense, São Paulo, 1997. Prefácio, pags. 9-13.

Fonte: Rizoma

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