sábado, 15 de março de 2008

Formatura da Unipalmares ou "O dia em que Sarney quase caiu"

Diego Salmen
Especial para Terra Magazine

Um a um, ministros, parlamentares, governador e prefeito dirigem-se à banca de formatura. Chega a vez do senador José Sarney. Enquanto desce as escadas, fraqueja a perna direita, escorrega e por pouco não beija a lona. Não chega a cair; mesmo assim, a platéia, entre a aflição e os risos, diverte-se:

- Ooooopa!

Quinta-feira, 13 de março. O ginásio do Ibirapuera prepara-se para um evento histórico: a colação de grau da primeira turma de formandos do curso de administração de empresas da Unipalmares, única faculdade da América Latina cujo ensino é voltado a afro-descendentes. São sete da noite; uma chuva espessa atinge a zona sul de São Paulo.

E, desta vez, os negros são maioria.

Na parte externa do ginásio, famílias tiram fotos nos cenários especialmente montados para a ocasião. Em meio aos sorrisos, policiais da Força Tática da Polícia Militar observam atentamente a tudo, prostrados diante de suas viaturas. Lá fora, o trânsito continua. Parado.

Estão presentes no evento o presidente Lula e a primeira-dama Dona Marisa, o governador de São Paulo, José Serra, o prefeito da capital paulista, Gilberto Kassab, e mais uma leva de ministros, parlamentares e ex-ministros: Edson Santos, ministro da Igualdade Racial; Fernando Haddad, da Educação; Miguel Jorge, do Desenvolvimento; Orlando Silva, do Esporte; Luiz Marinho, da Previdência; e Marta Suplicy, do Turismo.

Além deles, também compareceram os senadores José Sarney (PMDB-AP), Cristovam Buarque (PDT-DF) e o deputado Paulo Renato (PSDB-SP). Uma repórter questiona:

- Eles estão todos na mesma sala?

- Não, todos estão numa sala VIP. E dentro da sala VIP há outra sala VIP para o presidente - esclarece o assessor presidencial.

- Ah, bom.

Lá fora, Amanda, a garota que cuida das becas dos formandos, desabafa.

- Quero entrar para ver o Lula.

Ainda durante a passagem de som, um produtor exclama:

- É isso, parceiro? Então seja o que Deus quiser.

Goteiras

Colações de grau e eventos afins costumam ser recheados de pompa e formalidades. Não é essa, no entanto, a impressão que se tem no interior do ginásio.

Paira uma sensação de vazio, por conta do excesso de cadeiras desocupadas - culpa, talvez, da grandiosidade do ambiente. Ao invés de garçons, ambulantes de chinelo vendem salgadinhos industrializados, crepes, churros (R$ 3,00 cada) e água (R$ 2,00 por um copo de 250 ml).

À esquerda do palco, o "cercadinho" dedicado à imprensa. Alguns jornalistas reclamam das goteiras que molham os bancos no local. Cerca de 70 profissionais de mídia, dentre repórteres, cinegrafistas e assistentes cobrem a formatura. Destes, nem 10 eram negros.

A formanda Ana Paula está ansiosa pelo início da colação, cujo patrono é o presidente Lula. Se pudesse encontrá-lo, Ana Paula pediria que "incentivasse mais o negro na sociedade e melhorasse a educação dos brasileiros". Sua colega Camila Teodoro está de acordo:

- Que ele dê uma atenção maior às pessoas de baixa renda e dê mais oportunidades no mercado de trabalho; apesar das pesquisas mostrarem que o emprego aumentou, o desemprego e o preconceito ainda existem.

Índios de uma tribo Guarani do bairro do Jaraguá, na zona oeste da capital, concentram-se nas arquibancadas superiores. Mais tarde, fariam uma apresentação de dança indígena. Entre eles, um adolescente com uma camisa vermelha de Che Guevara, e os dizeres: "Hay que endurecer...".

Crianças há aos montes. Além de sobrinhos e irmãos mais novos, os formandos podem observar pequenos indiozinhos correndo matreiros por entre as cadeiras do ginásio. A maioria deles descalços (ou então calçando um par de Havaianas), de bermudas, sem camisa e com os rostos pintados de vermelho.

Em instantes, seria a vez do guarani Micael subir ao palco com os colegas de tribo. Expectativa?

- Vai ser da hora, mano.

Nem cambalhota

Para apresentar o evento, estão na conta a atriz Isabel Fillardis e o cantor Simoninha, cada qual em uma das extremidades do palco. Os dois tentam mostrar sintonia, a despeito dos desvios decorrentes do excesso de falas improvisadas.

- A gente tá longe, né, Simoninha?

- É...é uma pena estar longe de você - lamenta, resignado, o filho do cantor Wilson Simonal.

Nos alto falantes, muito soul, jazz e funk dos anos 70. Em seguida, grupos de capoeira e dança africana dão o tom da festa:

Sai, sai, sai, boa noite, meus senhores
Sai, sai, sai, boa noite, peço licença

Comentário de Isabel Fillardis sobre movimentos sincopados da capoeira:

- Você viu isso? Eu não consigo nem dar cambalhota...

A cantora Sandra de Sá sobe ao palco,com óculos brancos, sobretudo colorido, calça roxa e dreadlocks loiros. Ela comanda um coro que contagia a platéia.

Mas que beleza...

Vem o discurso raivoso do ator Milton Gonçalves sobre "a diáspora do povo negro, o maior genocídio da história da humanidade":

- Hoje somos livres. Livres! Livres! Livres!

Abrem-se as cortinas, e lá estão os formandos - muitos deles aos prantos - acenando para pais, tios, irmãos e câmeras. Como trilha sonora, a tradicional "We are the Champions".

No time for losers.

Heráldica

Além das autoridades, sentam-se à mesa de formatura diversos representantes da (prepare o fôlego) Sociedade Brasileira de Heráldica e Humanística - Ecológica, Medalhística, Cultural, Beneficente e Educacional, instituição fundada em 1959 e que apoiou desde o início as atividades da Unipalmares.

O ministro da Previdência, Luiz Marinho, é um dos integrantes da sociedade - para surpresa dos jornalistas. Também estava à mesa representando a Heráldica o apresentador Gilberto Barros, o "Leão".

- O que esse cara tá fazendo aqui? - pergunta um repórter.

Alguns dos convidados ilustres são condecorados. Dentre eles, o presidente do grupo Objetivo, João Carlos Di Gênio, pelo apoio financeiro que deu à faculdade em seus dois primeiros anos de atividades. Dias antes, uma universidade do empresário barrou a matrícula de um aluno de 8 anos que fora aprovado no vestibular.

Martinho da Vila sobe no palco. Todo de branco, canta, a capella, "O Pequeno Burguês":

Felicidade!
Passei no vestibular
Mas a faculdade
É particular!

É a vez do paraninfo da turma falar. Entra Geraldo Alckmin, com um sorriso comedido:

- Já dizia Mario Covas: administração em primeiro lugar é gente; em segundo lugar, é gente; em terceiro lugar, é gente.

O ex-governador comenta os esforços dos formandos para conseguirem se graduar. Fala sobre os agradecimentos devidos aos pais, professores e...:

- De repente ele (o formando) agradeceu o Santo Google...

Confetes finais

Benedita da Silva está no microfone. Faz um longo discurso sobre a participação do negro em momentos decisivos da história do Brasil, e enche de elogios o reitor da faculdade, José Vicente. Cita ainda o marinheiro negro João Candido, líder da Revolta da Chibata. É bastante aplaudida.

A festa está por acabar. Os agora administradores de empresa começam a retirar, emocionados, seus diplomas. Antes de discursar, o presidente Lula recebe a estatueta de Zumbi dos Palmares das mãos de uma formanda.

O governador José Serra se reveza com o presidente na entrega dos tradicionais canudos de papel, enquanto o prefeito Gilberto Kassab observa, esboçando um sorriso aqui, outro acolá.

Mais alguns shows: Biro do Cavaco, Vanessa Jackson, Fundo de Quintal. Lula discursa, para alívio dos jornalistas que estavam no local - e que aguardavam a fala do presidente para poder ir para casa.

- Vocês não sabem o esforço que eu fiz para levar um negro para a Suprema Corte - critica o presidente.

Caem os confetes, e a música volta a todo volume. A cerimônia chega ao fim, e começa uma história em comum para os 126 afro-descendentes que se emocionaram, cantaram e gritaram com a realização de um sonho.

Enquanto isso, do lado de fora, imperava a realidade: moradores de rua reviravam as lixeiras do ginásio do Ibirapuera à cata de latas de alumínio e restos de comida. Retrato do Brasil, 120 anos depois da abolição da escravatura.

fonte: Terra Magazine


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