sábado, 31 de maio de 2008

Como nascem as notícias - o dia-a-dia de um "gerenciador de crises".

Em 2005, veio a público o escândalo do chamado mensalão. A avalanche de denúncias criou um clima de indiganação e pessimismo na população. O oba-oba da mídia grande fez pipocar diariamente o tema corrupção nas manchetes dos jornais. A opinião pública, levada por esse jogo mídiatico, criticou as atitudes do presidente Lula, um dos principais alvos. A redação de Caros Amigos decidiu, então, lançar uma edição especial Corrupção – Somos todos desonestos? (setembro de 2005). A repórter Marina Amaral acompanhou a rotina de um “gerenciador de crises” e revelou o submundo do nascimento de notícias na grande mídia. Uma reportagem que arrancou elogios da filósofa Marilena Chauí, pela descrição desse universo, que existe e o leitor não vê.

Bairro de elite de uma grande cidade brasileira. Convite para almoço. O apartamento, decorado com obras de arte verdadeiras, é sofisticado e aconchegante, como a mesa farta a cargo da cozinheira com muitos anos de casa. A conversa não fica atrás: o assunto é política, temperada com sexo, dinheiro, negócios escusos, traição. Basta lançar o nome de um rico ou poderoso no ar e a ficha vem no ato: “Fulano? Esse começou a vida em tal lugar etc. e tal”.

Nosso homem respira e transpira informação. “Tudo em off”, ele avisa no começo da conversa, condição de sobrevivência para o tipo de trabalho que faz. Sua especialidade: “Gerenciador de crises, assessor de imprensa, lobista”, diz, o que na prática significa produzir notícias do interesse de seus clientes, políticos e empresários (às vezes representados por escritórios de advocacia ou agências de publicidade) que buscam projeção ou reversão de prejuízos causados por denúncias na mídia.

Ele explica que a função do lobista que atua na imprensa é influenciar jornalistas à imagem e semelhança dos lobistas contratados para trabalhar no Congresso, esses com a missão de “sensibilizar” parlamentares. Também há pontos comuns entre seu trabalho e o do assessor de imprensa convencional, a principal diferença está no modo como atua: em vez de mandar releases e disparar telefonemas burocráticos, o lobista da comunicação se converte em “fonte” dos jornalistas, oferecendo notícias, dando a “ficha” de personalidades emergentes na imprensa, repassando as últimas sobre o assunto em voga. A reputação de homem bem-informado que sempre tem algo a oferecer aos jornalistas é a alma do negócio.

Gerenciador de crises, assessor de imprensa, lobista”, diz, o que na prática significa produzir notícias do interesse de seus clientes, políticos e empresários.

“Toda fonte é lobista e todo lobby envolve dinheiro”, afirma, referindo-se aos que, como ele, são consultados diariamente pelos jornalistas e colunistas em busca de novidade. “A fonte passa informações porque é a melhor maneira de interferir nas notícias, esteja ela a serviço dos interesses de seus clientes ou de seus próprios negócios. Os maiores lobistas são os políticos. Os senadores Jorge Bornhausen e Antônio Carlos Magalhães, por exemplo, que estão entre as grandes fontes dos jornalistas políticos brasileiros, têm interesses empresariais, não apenas políticos. O Bornhausen é lobista da Febraban, o ACM defende suas empreiteiras, suas construtoras.”

“E os jornalistas confiam no que eles dizem?” Ele dá sua explicação: “A informação é a moeda de troca com o jornalista. A fonte não pode mentir nem passar notícias não comprovadas sem deixar claro que não tem certeza do que está dizendo, e o jornalista jamais pode revelar a fonte. É uma relação de confiança mútua. Há coisas que não há como checar, uma pista falsa pode atrasar muito uma matéria, têm de confiar e pronto. E eles conhecem os interesses das fontes, publicam também os assuntos que sugerimos. Mas não há nada de errado nisso, porque as fontes com credibilidade passam informações verdadeiras e que realmente são notícia. O lobista, como o jornalista, tem a vertigem da notícia”. “Sempre é assim?”, insisto. Ele responde: “Todo jornalista um dia vai ouvir da fonte: ‘Eu preciso que você me faça um favor’. Isso significa que a fonte precisa “plantar” uma nota, que pode ser uma meia-verdade ou quase uma inverdade, e aí cabe ao jornalista decidir o que faz”.

A maioria dos lobistas trabalha em parceria com as colunas de política de Brasília, de gente como o ex-secretário de Comunicação de Collor, o jornalista Cláudio Humberto, ou ex-publicitários como Ucho Haddad e Giba Um. Aqueles que têm maior “sintonia” com a fonte recebem de presente as notas mais quentes, aquelas que antecipam escândalos e dão peso às colunas, que atuam na fronteira entre o boato e a informação. Algumas são escritas em linguagem cifrada com o objetivo de “avisar” políticos e empresários de que tem gente na “cola” deles, o que quase sempre significa emprego para mais um lobista, encarregado de “desaparecer” com a informação antes que ela ganhe as colunas políticas e sociais dos jornais, de maior credibilidade.

“Eu leio jornal e sei direitinho quem está trabalhando pra quem, quem está ‘plantando’ contra quem. Um dos piores erros do PT foi a plantação de notícias de um dirigente contra outro, abriram o flanco para a mídia, acreditaram que tinham na mão gente que eles não controlam de fato”, diz nosso homem, que incluiu também a Internet entre suas ferramentas de trabalho. Todos os dias, ele envia e-mails com informações que favorecem seus clientes a 90.000 endereços usando remetentes frios e provedores de fora do Brasil. “E isso funciona?” “Faz um barulho danado”, ele responde, explicando que compensa a falta de credibilidade do anonimato postando apenas “as matérias que já consegui publicar em veículos respeitados”.

Em vez de mandar releases e disparar telefonemas burocráticos, o lobista da comunicação se converte em “fonte” dos jornalistas.

Enquanto conversamos, o celular toca sem parar. Colunistas políticos, repórteres da grande imprensa, clientes ou amigos interessados no desenrolar do escândalo do “mensalão” são recebidos com a piada sobre os três ternos que o vice Alencar mandou fazer (um preto, para o caso de suicídio do presidente, um azul-marinho, para posse, e um cinza, para o primeiro dia de trabalho). Aos colunistas, ele passa notas quase prontas; aos repórteres dos jornais e das semanais indica fontes dispostas a botar lenha na fogueira – a amante de fulano, a secretária de sicrano, a ex-mulher de beltrano. Também dá dicas de histórias que, garante, valem uma checagem: a sugestão do dia é investigar uma empresa de informática que o filho do presidente abriu no Brás, assunto que apareceria na mídia três semanas depois. Aos clientes, alguns de capitais distantes, reserva a análise de conjuntura antecipada pela piada dos ternos de Alencar: “Sim, o presidente Lula vai cair”. Seguido da explicação: “CPI é que nem suruba, depois que começa, ninguém controla”.

Se depender dele, a suruba continua. Para quem vive de informação, como bem sabem os donos das empresas de comunicação, escândalos e campanhas eleitorais são os grandes momentos de ganhar dinheiro tanto pelo que se divulga como pelo que se deixa de divulgar. Também é um ambiente favorável para abafar outros escândalos e relevar pecadilhos como sonegação de impostos, concorrência desleal, e outros tormentos jurídicos. “E como o lobista se informa?”, pergunto, perplexa com a quantidade de notícias que ele tira da cartola a cada telefonema.

“Depende do meio que ele circula”, explica. “Eu trabalho principalmente com o meu círculo de amigos. Entrei na política aos 18 anos, fui assessor parlamentar, secretário de prefeito, fiz muitas campanhas eleitorais. Você tem idéia de quantos dossiês circulam em uma campanha eleitoral? Então, as eleições passam e os dossiês ficam, a gente acaba sabendo de tudo. Também fui assessor de imprensa e lobista de grandes empresas, venho acumulando informação há décadas. Conheço todo mundo que interessa, circulo nos lugares certos, levanto a ficha de qualquer um na hora em que quiser. Sei exatamente para quem ligar conforme o caso”, diz, sem esconder o orgulho profissional.

E nesse caso? Ele acredita na corrupção do PT? “Todo governo é corrupto, não há como ganhar eleição sem caixa dois e quem está no governo faz o caixa no governo, com o dinheiro público que escoa por três ralos: obras públicas, propaganda e informática. As empreiteiras tiveram seu auge no governo militar, perderam com as privatizações e a redução de obras nos últimos anos, e entraram no ramo dos serviços públicos, daí os escândalos nos contratos de lixo, por exemplo, de tantas prefeituras. Mas agora o grosso do caixa dois dos partidos vem dos contratos de publicidade – esse Marcos Valério, por exemplo, operava para os tucanos mineiros desde 1997. A informática é o filão mais recente de grandes contratos públicos e está se tornando um grande formador de caixa. O PT aderiu ao esquema dos contratos de publicidade superfaturados, das propinas nas estatais, de conseguir dinheiro nos bancos investindo naqueles que colaboram com o partido a bolada dos fundos de pensão”, opina.

Há coisas que não há como checar, uma pista falsa
pode atrasar muito uma matéria, têm de confiar e pronto.
E eles conhecem os interesses das fontes, publicam
também os assuntos que sugerimos.

Mais uma ligação, mas dessa vez nosso homem não passa informação, recebe. A fonte é o repórter de uma revista semanal envolvido com uma polêmica entrevista com aquela que seria apresentada como testemunha-chave da CPI dos Correios. No próximo telefonema, a informação recebida segue seu caminho, repassada a outro jornalista: “Sim, a ‘testemunha’ vai confirmar, não tem outro jeito, as três fitas gravadas com a entrevista estão no cofre da editora há nove meses, se o repórter for convocado a depor, as fitas serão entregues aos membros da CPI”.

O que pode parecer um vazamento de informação é na verdade prestação de serviço para dois amigos: o que fez a entrevista – cuja autenticidade vinha sendo questionada pelo longo tempo em que ficou “na gaveta” e por ter sido desmentida anteriormente pela entrevistada – e o que recebeu a notícia, aparentemente em primeira mão. Pergunto quanto do seu trabalho é pago, já que perde tanto tempo fazendo favores aos amigos. “Noventa por cento”, revela para em seguida corrigir, com humor: “Agora, o percentual caiu, porque não estou ganhando nada para ajudar a derrubar o governo, é trabalho voluntário”.

Foi na segunda visita que fiz a seu apartamento, já com a CPI dos Correios a pleno vapor, que ele me mostrou até onde ia seu empenho como “voluntário”. Com a televisão ligada no depoimento de um dos acusados de operar o “esquema do mensalão”, ele se comunicava com alguém que estava na CPI através de um de seus três celulares. “Os arapongas estão assanhados, a Polícia Federal também, um dos meus telefones está grampeado”, explica.

Antes de testemunhar mais uma tarde de seu trabalho, peço autorização para escrever sobre o que presenciei em minha outra visita e perguntar mais sobre a sua profissão. Explico que, mais do que as informações sobre o escândalo, o que me interessa é mostrar de que modo circulam as informações, como os escândalos que caem nas graças da imprensa são alimentados com tanta rapidez. Ele concorda, desde que sua identidade seja preservada. Vai até o computador, abre o correio eletrônico e me chama para ver uma mensagem recém-enviada a um assessor parlamentar de um deputado da oposição, com quem falava no celular quando cheguei.

Para minha surpresa, é um e-mail enorme, contendo dez perguntas dirigidas ao sujeito que depõe nesse mesmo momento na CPI, acompanhadas de detalhes sobre a vida do “alvo” sustentando o questionário. O patrimônio, os contatos, as viagens de avião (acompanhadas dos prefixos dos jatos), os nomes que teriam sido indicados pelo acusado para ocupar cargos públicos, as empresas que teriam contribuído com o caixa dois, está tudo ali, de bandeja. “Dinamite pura, hein? Esse governo cai”, comemora.

Aos colunistas, ele passa notas quase prontas;
aos repórteres dos jornais e das semanais indica
fontes dispostas a botar lenha na fogueira.

“E por que derrubar o governo?”, pergunto, começando a duvidar que tanto empenho seja realmente “voluntário”, como ele diz. A resposta não poderia ser mais surpreendente vinda de um homem que se declara de direita e que ganha dinheiro como lobista profissional: “Porque o Lula foi uma decepção, não fez nada pelos pobres, se vendeu ao FMI”.

Ele acha graça ao perceber minha expressão de descrença. “Você pode não acreditar, mas, mesmo sendo de direita, defendo a necessidade de existir um partido de esquerda, um partido que esteja fora do esquema, como era o PT antes de assumir o governo. Claro, o PT roubou muito menos do que os outros governos. Em uma única jogada, o governo Fernando Henrique ganhou três vezes mais, comprando ações lá fora da Petrobras, por exemplo, dias antes de comunicar ao mercado a exploração de mais um campo de petróleo, vendendo os papéis logo depois de fazer o anúncio oficial da descoberta, o que triplicou o valor das ações. Cada notícia de que uma estatal seria privatizada era precedida da mesma operação: o Sérgio Motta anunciava que a empresa seria leiloada, as ações subiam vertiginosamente, e eles vendiam no primeiro dia da alta. Nada de tentar ganhar mais e se arriscar ao flagrante. Os caras sabiam o que faziam. O PT, não, o PT não sabe nem pode roubar. A esquerda tem de ser franciscana, não pode se corromper, tem que fazer como os partidos comunistas europeus, administrar as prefeituras e ser oposição em âmbito federal. Quem quer ser governo tem de conhecer o esquema, ter aliados reais, cúmplice de muitos negócios. O PT não sabe nem como operar: imagine esse Delúbio, que é um caipirão goiano, um sindicalista militante do PT, e esse outro Silvinho, que não consegue nem falar português decentemente, operando esquema! Isso aí é coisa pra quem sabe, pra Sarney, ACM, Sérgio Motta. Estava na cara que eles iam ser apanhados.”

Comento que a imprensa parece escolher sempre a hora de um escândalo eclodir. Afinal, em setembro do ano passado, o Jornal do Brasil já havia publicado a história do “mensalão” e a Veja uma matéria falando das divergências financeiras entre PT e PTB. Por que, a exemplo da entrevista com a testemunha feita por seu amigo repórter, o escândalo levou nove meses para explodir? Por que as mesmas informações não provocaram aquele frenético fluxo de notícias do qual ele faz parte, como tantas outras “fontes”, lobistas, aquilo que ele chama de “mercado” da informação?

“Porque o escândalo ainda não estava maduro”, ele diz, um tanto enigmaticamente. “Veja, no caso Collor foi a mesma coisa, um jornalista de uma revista semanal já havia seguido o PC, antecipado tudo que se diria depois, publicado a matéria, e mesmo assim o caso só ganhou força com a entrevista do Pedro Collor, seis meses depois. Era o momento de o Collor cair, já não interessava mais mantê-lo ali.”

“Não interessava a quem?”, insisto, mesmo sabendo a resposta. “Não interessava a quem dá as cartas de fato, aos donos do poder, do dinheiro, do esquema. O governo do PT estava se tornando uma ditadura pior que a dos milicos, tentou enquadrar a imprensa com aquele conselho de ética, usa a Polícia Federal para fazer terrorismo, invadindo escritórios de advocacia, prendendo empresários trabalhadores por sonegação, por caixa dois, coisa que todo mundo faz neste país, até porque a carga tributária impede o trabalho cem por cento honesto”, justifica. “Eles não merecem confiança, são bolcheviques, roubam para a causa. Claro, tem gente ganhando pra si também, mas não é essa a cabeça deles, pensam que estão acima do bem e do mal, que têm o monopólio da ética. São arrogantes, tratam todo mundo como se fossem melhores do que os outros, só podia acontecer isso mesmo”, comenta.

“Todo governo é corrupto, não há como ganhar eleição sem caixa dois e quem está no governo faz o caixa no governo”.

Antes de me despedir, uma pergunta: “Você disse que lobby sempre envolve dinheiro. E no caso dos jornalistas isso não rola?”

Ele defende os companheiros de trabalho: “Hoje em dia é muito raro, os jornalistas são sérios, o que querem é informação. Claro, um colunista que tem o patrocínio de determinada empresa não vai escrever contra ela, assim como os donos de jornais e revistas têm suas preferências políticas. Não são movidos a propina, mas têm seus aliados. No governo FHC houve uma quantidade enorme de escândalos abafados”.

Vai até uma gaveta, tira uns papéis e empilha na mesa. “Olha, tudo isso aqui me foi entregue na última campanha por um político do PFL”, conta. Dou uma olhada nos papéis. Há denúncias contra o filho de FHC que teria ganhado dinheiro como lobista durante os governos do pai, um dossiê contra um ex-ministro que seria sócio oculto de empresas que atuavam no setor que fiscalizava, documentações de transações suspeitas envolvendo membros de governos anteriores e empresas privadas, notícias de desvio de dinheiro que teria sido feito por familiares e assessores de governantes.

“Isso ficou parado porque o político para quem eu trabalhava não quis usar, e eu sabia que não interessava à grande imprensa, claramente a favor dos tucanos”, explica.

Cito o nome de um repórter, apontado como “contratado” de um grande grupo privado para plantar matérias do interesse do cliente na revista em que trabalha, cujo dono também é acusado de vender matérias de capa a empresários em dificuldades. Acrescento que há conversas gravadas e e-mails por trás das denúncias publicadas por outra revista semanal, essa fora de seu círculo de relações. Ele afirma ser amigo de ambos os denunciados e acrescenta, irônico: “Foi nessa revista que saiu? Então não faz mal. Essa ninguém lê”. Ele sentencia isso, embora a tiragem de ambas as revistas – denunciada e denunciante – seja praticamente a mesma.

O telefone toca mais uma vez. Ele pede um momento ao interlocutor, e me acompanha até a porta. Mas não resiste a antecipar a novidade com que brindará mais esse jornalista: “Vão pegar a filha do presidente agora, um contrato dela com uma empresa sustentada por um banco estadual federalizado. Pode anotar, o Lula já era”.

Marina Amaral é jornalista.

Fonte: Caros Amigos


Share/Save/Bookmark

Nenhum comentário: