por Rosane Pavam
Cento e vinte anos se passaram desde a abolição da escravatura no Brasil, mas, segundo nos diz uma recente pesquisa do IBGE encomendada pela Secretaria Especial da Igualdade Racial, o tempo não erodiu suficientemente a desigualdade entre negros e brancos no país. As regiões portuárias de Recife, Salvador, Rio e São Luís, onde aportaram os negros africanos durante o tráfico, ainda concentram seus descendentes. Isto quer dizer que os negros não se expandiram com segurança para regiões outras onde se dava o desenvolvimento industrial. Um século e duas décadas depois, as portas para seu crescimento não se abriram suficientemente.
Estes dados aterradores atingem um brasileiro naquele sentimento de orgulho de si mesmo que ainda pode lhe restar. Como nos momentos em que nos damos conta das precariedades educacionais em todos os níveis, voltamos a imergir em pesadelo anunciado e republicado com a exposição de uma realidade estatística. Desde os anos 1800 escritores e pensadores debatem-se contra a infâmia do analfabetismo e da escravidão, sempre levados a novos versos e manifestos a cada pesquisa nacional que decida assumir o assunto de frente. Mas ainda não se fez tudo para diminuir as desigualdades sociais até este século. Em que espelho a nossa face se perdeu?
Lembro-me de uma situação que o Brasil viveu na segunda metade do século 19, quando o poeta romântico José de Alencar, após escrever “O Guarani”, pôs-se a ser realista no teatro do Rio. Alencar percebia com que felicidade acorriam comerciantes e caixeiros a essas arenas de representação onde era possível comer peixe frito envolto em jornal durante as farsas intervaladas. Éramos os elisabetanos possíveis. No teatro São Pedro de Alcântara, o ator João Caetano exercia seu vozeirão romântico, e havia melodramas, tragédias neoclássicas e comédias para gostos robustos; no Teatro Ginásio Dramático, fincavam pé os opositores desse campo, aqueles que queriam representar os dramas de casaca burgueses, responsáveis por reproduzir a vida social contemporânea com sobriedade ou, no máximo, um sorriso.
Alencar desejava atingir o grande público, mas também “refiná-lo” segundo uma tendência européia. Por conta disto, pôs-se a escrever o que chamou de comédia, na falta de palavra melhor para designar seu retrato de costumes. Era programático nosso poeta romântico, paradoxalmente partidário do realismo quando escrevia para o palco. Ele queria acompanhar as tendências francesas de representação livrando a comédia de um tom baixo. Mais: achava que, com seu teatro, contribuiria para impedir a desagregação indesejada da burguesia em formação.
Os valores burgueses, segundo Alencar, eram os da irmandade familiar. Esta era a classe social imperativa, que possibilitaria a todos um letramento, uma acomodação a ideais nobres favorecidos por um sistema de trocas livres. Entre estes ideais estava a aceitação, por parte dos pais, de que os filhos fossem o que desejassem na vida _ que pudessem, os homens, escolher entre o dote e o amor, e que as mulheres se revelassem a um tempo inteligentes e recatadas, sob o domínio de quem aceitassem por marido! O professor-titular da Universidade de São Paulo João Roberto de Faria explica este fenômeno em “A Comédia Realista de José Alencar”, assim como Décio de Almeida Prado o fizera em “Teatro de Anchieta a Alencar”, dois estudos brilhantes sobre o autor e seu mundo.
Na juventude, este Alencar que viveu 48 anos, até 1877, fora um liberal anti-escravista, como aquele Joaquim Nabuco defensor da monarquia se pautara pela convicção abolicionista. Mas, ao se aproximar do fim da vida, Alencar tornou-se um conservador, para quem a liberdade aos negros não seria ideal ao pleno funcionamento de um sistema produtivo não mecanizado, ainda necessitado de muitas mãos sofridas para se pôr em funcionamento. A abolição, a seu ver, não serviria também para os negros, que se veriam soltos à rua repentinamente, sem preparo ou sem ter a quem recorrer depois de anos de aprisionamento (uma tese aproximada, como sabemos, daquela do passarinho de gaiola que libertamos e matamos).
Em que bela confusão se meteu José de Alencar à procura de conduzir à aceitação o abjeto que há no homem! Em 5 de novembro de 1857, ele fez estrear, no Teatro Ginásio Dramático, sua comédia realista em quatro atos “O Demônio Familiar”, e até hoje os críticos acadêmicos se debatem em entender suas intenções. Seria abolicionista ou não? Machado de Assis, grandemente respeitoso da grandeza literária de Alencar nesse instante, acreditava que sim. O resto do mundo, talvez, que não.
Como se disse, esta é uma comédia, embora somente em alguns momentos possamos sorrir dela. Os personagens que eventualmente conduzem ao riso são o pretendente Azevedo, que a todo instante exercita seu francês para que ninguém o compreenda, muito menos as mulheres que deseja comprar com o casamento; e Pedro, o escravo de alcova que, ao trocar cartas de amor e intenções, decide reacomodar os casais às conveniências financeiras familiares e, por conseqüência, às dele, escravo.
Pedro fala “errado” e “infantil”, como se a ausência de educação associada à imaturidade lhe pudesse ser condenada como cacoete. Um exemplo de como fala: “Moça gasta muito; todo o dia vestido novo, camarote no teatro para ver aquela mulher que morre cantando, carro de aluguel na porta, vai passear na rua do Ouvidor, quer comprar tudo o que vê.” Pedro quer garantir a possibildade de, no futuro, ser cocheiro de algum dos pares que já imagina formar. Pensa como um rico mas não fala como um. Um desses casais poderá comprá-lo para que viva, no futuro, melhor do que hoje. O personagem central Eduardo, que nesse tipo de comédia é o raisonneur, aquele que resume ao espectador as intenções morais educativas do texto, começa a desconfiar dessa ação e a repudia.
E como funciona seu repúdio? Ele quer estabelecer a ordem nova. Mas Pedro, que trabalha para ajudar seus donos, o faz segundo um sistema ultrapassado, segundo crê Alencar. Diz Eduardo a propósito: “Os antigos acreditavam que toda a casa era habitada por um demônio familiar, do qual dependia o sossego e a tranquilidade das pessoas que nela viviam. Nós, os brasileiros, realizamos infelizmente esta crença; temos no nosso lar doméstico esse demônio familiar. Quantas vezes não partilha conosco as carícias de nossas mães, os folguedos de nossos irmãos e uma parte das afeições da família! Mas vem um dia, como hoje, em que ele na sua ignorância ou na sua malícia, perturba a paz doméstica; e faz do amor, da amizade, da reputação, de todos esses objetos santos, um jogo de criança. Esse demônio familiar de nossas casas, que todos conhecemos, ei-lo.”
O demônio familiar é Pedro, o negro. E, para livrar-se de sua ação demoníaca, Eduardo assina sua libertação. Pedro beija-lhe a mão agradecido e diz: “Pedro vai ser cocheiro em casa de Major!”
Que cocheiro seria esse, sem linhagem, cobrando por seus serviços? A liberdade, diz Eduardo, é a punição para Pedro, e não, como seria de se supor neste caso, um sem-número de chibatadas aplicadas nas costas. “... a tua carta de liberdade (...) será a tua punição de hoje em diante”, diz o raisonneur ao serviçal liberto, “porque as tuas faltas recairão unicamente sobre ti; porque a moral e a lei te pedirão uma conta severa de tuas ações”.
Sim, o castigo para um negro, acreditava Alencar, seria sua liberdade. Mas é verdade que podemos interpretar tudo de outro modo: ao libertar o negro, seu dono faz um gesto no sentido de exigir da burguesia um posicionamento contra esse demônio sobre o qual ela não acordara ainda – o demônio da escravidão, que ela deveria expulsar de seu convívio.
Este é um debate talvez comparável àquele que envolve a suposta traição de Capitu a Bentinho, no romance “Dom Casmurro”, de Machado de Assis. Mas é um debate do tempo reduzido a pó. Por meu lado, decido ressuscitá-lo porque ele me ajuda a explicar por que às vezes parece ilusória a liberdade dos negros que somos, de uma forma ou outra, todos nós.
(Foto da Capa: Vendedores de flores à porta de uma Igreja, no domingo. Tela de Jean Baptiste-Debret, início do século XIX)
Fonte: Carta Capital
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