segunda-feira, 19 de maio de 2008

O alerta que vem da Argentina

Um grupo de mais de 750 intelectuais argentinos lançou uma carta-aberta alertando para o crescimento de um clima golpista no país, com participação ativa dos grandes meios de comunicação. E adverte governos latino-americanos para uma batalha simbólica que eles não estão enfrentando.

No dia 14 de maio, um grupo de intelectuais argentinos reuniu-se na livraria Gandhi, em Buenos Aires, para divulgar uma carta-aberta sobre a situação política do país. Estavam presentes nomes como Horacio Verbitsky, Nicolás Casullo, Ricardo Forster e Jaime Sorín, entre outros. Assinada por mais de 750 intelectuais, a carta denuncia o clima de golpismo que vem sendo alimentado na Argentina pelos setores conservadores ligados ao agronegócio e seus aliados urbanos. Além disso, o documento critica fortemente a atuação dos grandes meios de comunicação na formação desse clima. A carta afirma:

“Como em outras circunstâncias de nossa crônica contemporânea, hoje assistimos em nosso país a uma dura confrontação entre setores econômicos, políticos e ideológicos historicamente dominantes e um governo democrático que tenta implementar determinadas reformas na distribuição de renda e adotar estratégias de intervenção na economia. A oposição às retenções – compreensível objeto de litígio – deu lugar a alianças que chegaram a lançar a ameaça da fome para o resto da sociedade e lançaram questionamentos sobre o direito e o poder político constitucional do governo de Cristina Fernández para efetivar seus programas de ação, a quatro meses de sua eleição pela maioria da sociedade”.

O texto prossegue:

“Instalou-se um clima de desconstituição, que tem sido considerado com a categoria do golpismo. Não, talvez, no sentido mais clássico de incentivar alguma forma mais ou menos violenta de interrupção da ordem institucional. Mas não há dúvida de que muitos dos argumentos que se ouviram nestas semanas tem paralelos ostensivos com os que, no passado, justificaram esse tipo de intervenções e, sobretudo, um muito reconhecível desprezo pela legitimidade governamental”.

A barbárie política diária da mídia
Esta atmosfera política perigosa, afirma ainda o documento, vem sendo alimentada pelos grandes meios de comunicação do país:

“Na atual confrontação em torno da política de retenções desempenharam e desempenham um papel fundamental os meios massivos de comunicação mais concentrados, tanto audiovisuais como gráficos, de altíssimos níveis de audiência, que estruturam diariamente a realidade dos fatos, que geram ‘o sentido’ e as interpretações e definem ‘a verdade’ sobre atores sociais e políticos a partir de variáveis interessadas que excedem a busca de audiência. Meios que gestão a distorção do que ocorre, que difundem o preconceito e o racismo mais espontâneo, sem a responsabilidade por explicar, por informar adequadamente nem por refletir com ponderação as mesmas circunstâncias conflitivas e críticas sobre as quais operam”.

“Esta prática de autêntica barbárie política diária, de desinformação e discriminação, consiste na gestação permanente de mensagens formadoras de uma consciência coletiva reacionária. Privatizam as consciências com um sentido comum cego, iletrado, impressionista, imediatista, parcial. Alimentam uma opinião pública de perfil anti-político, que desacredita a existência de um Estado democraticamente interventor na luta de interesses sociais. A reação dos grandes meios diante do Observatório da discriminação na rádio e na televisão mostra claramente um desprezo fundamental pelo debate público e pela efetiva liberdade de informação”.

Uma tarefa inadiável: a recuperação da palavra crítica
Diante desse cenário, o documento defende a necessidade de “uma recuperação da palavra crítica em todos os planos das práticas e no interior de uma cena social dominada pela retórica dos meios de comunicação e pela direita ideológica de mercado”. “Da recuperação de uma palavra crítica que compreenda a dimensão dos conflitos nacionais e latino-americanos, que assinale as contradições centrais que estão em jogo, mas sobretudo que acredite ser imprescindível voltar a articular uma relação entre mundos intelectuais e sociais com a realidade política”.

“Esta problemática”, afirma ainda a carta, “é decisiva não só em nosso país, mas também no Brasil de Lula, na Bolívia de Evo Morales, no Equador de Correa, na Venezuela de Chávez, no Chile de Bachelet, onde abundam documentos, estudos e evidências sobre o papel determinante que assume a contenda cultural e comunicativa e as denúncias contra os meios em mãos dos grupos de mercado mais concentrados”. Um dos pontos mais débeis dos governos latino-americanos, defendem os signatários do documento, é “que eles não assumem a urgente tarefa de construir uma política à altura dos desafios diários desta época, que tenha como horizonte o político emancipatório”. Esse déficit de política é detalhado do seguinte modo:

“É necessário criar novas linguagens, abrir espaços de atuação e de interpelação indispensáveis, discutir e participar na lenta constituição de um novo e complexo sujeito político popular, a partir de rupturas concretas com o modelo neoliberal de país. A relação entre a realidade política e o mundo intelectual não vem sendo especialmente valorizada pelo governo nacional e as políticas públicas não tem considerado a importância, a complexidade e o caráter político que tem a produção cultural”.

Contra-ofensiva conservadora
O alerta lançado pelos intelectuais argentinos deveria ser ouvido com muita atenção pelos governos dos países citados. A guinada à esquerda que marca a história recente da América Latina já foi objeto de muitos textos e discursos entusiasmados. Esse entusiasmo, porém, pode favorecer um clima de desatenção com alguns fatos que vêm acontecendo no período recente. A direita latino-americana não engoliu e não engolirá passivamente as derrotas que sofreu nos últimos anos. Por maiores que tenham sido, é importante lembrar que, de modo geral, essas derrotas se deram fundamentalmente no plano eleitoral. Um amplo conjunto de estruturas de concentração de poder político e econômico seguem na mão desses setores.

O fato de terem sofrido pesadas derrotas eleitorais e políticas não significa que estão mortos. Pelo contrário, há vários exemplos que indicam uma contra-ofensiva conservadora em andamento: a mobilização dos ruralistas argentinos contra o governo de Cristina Kirchner, recorrendo a táticas como bloqueio de estradas e interrupção do abastecimento de alimentos; as propostas autonomistas na Bolívia, que querem retirar do governo de Evo Morales qualquer capacidade de gestão sobre os departamentos mais ricos do país; o racismo explícito que acompanha esses movimentos na Bolívia; racismo este que também se manifesta na Venezuela contra Chávez e, de um modo um pouco mais dissimulado, no Brasil, em torno do debate das cotas e da demarcação das reservas indígenas; a crescente tentativa de criminalização de movimentos sociais e dos governos da Bolívia, da Venezuela e do Equador.

Há uma batalha simbólica, mais ou menos subterrânea, sendo travada nestes países. O manifesto dos intelectuais argentinos chama a atenção para isso. Está em curso, diz a carta, “um debate pelas heranças e biografias econômicas, sociais, culturais e militantes que tem como um de seus pontos centrais a questão da memória articulada na política de direitos humanos e que transita pelas tensões e conflitos da experiência histórica, inseparável dos modos de se posicionar diante de cada problema que está em jogo hoje”.

Debates e lutas sobre heranças e valores costumam ser de longo prazo. Por essa razão, não podem ser enfrentados com uma lógica pragmática que tem como horizonte sempre (e apenas) a próxima eleição. A advertência feita pelos intelectuais argentinos (de que há uma luta que não está sendo feita) encontra eco nas palavras do historiador Russel Jacoby, no livro “O Fim da Utopia – Política e Cultura na era da Apatia” (publicado no Brasil pela Record): Somos cada vez mais insistentemente convidados a escolher entre o status quo ou algo pior que ele. Não parece haver outras opções (...) Não há alternativas. É esta a sabedoria do nosso tempo, uma era de exaustão e recuos políticos. Há uma certa tendência cultural para bater em retirada. O problema não é a derrota, mas o desânimo e a dissimulação intelectual, fingir que cada passo para trás ou para o lado significa dez passos à frente.

O alerta está dado. Depois, ninguém poderá dizer que foi pego de surpresa pelo curso dos acontecimentos.

Marco Aurélio Weissheimer é jornalista da Agência Carta Maior (correio eletrônico: gamarra@hotmail.com)

Fonte: Agência Carta Maior

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