sexta-feira, 9 de maio de 2008

Os caninos do vampiro

ANÁLISE DA NOTÍCIA

Ao acusar a ministra Dilma Roussef de “mentir” para seus torturadores, o senador José Agripino Maia se excedeu. Excedeu-se? Ou quem sabe só se enquadrou na moldura onde sempre esteve?

Na Transilvânia deve haver um ditado mais ou menos assim: “quem nasceu para Drácula, pode passar por anjo, mas acaba mostrando os dentes”. Foi o que aconteceu com o senador Agripino Maia, do finado PFL, hoje o transgênico DEM.

A visita à página do senador é lacrimejante. Trata-se de um herói da democracia. Fez isto, fez aquilo, apoiou Tancredo. De repente o herói da democracia revela a boca de lobo em que se meteu. Agora? Desde sempre?

Entre outras coisas nefastas e nefandas, a interpelação a que o senador submeteu a ministra é uma ofensa ao decoro parlamentar. Ao “acusa-la” de ter “mentido” para seus torturadores, o senador extrapolou seu papel legislativo. Tornou-se, como os algozes daqueles tempos, um poder judiciário avant-la-lettre, sendo promotor, juiz e carrasco ao mesmo tempo. Fez a acusação, julgou, promulgou a sentença, passou em julgado e quis aplicar a pena.

Não deu certo. Por quê? Porque como personagem de comédia (e existem comédias macabras), o senador se achava num cenário e estava em outro. Ele estava “do lado errado da história”. Ele achava que seu único público era feito dos acólitos, arautos e pauteiros que municiam e saúdam esta oposição autoritária na imprensa e na mídia conservadoras. Era um personagem na peça errada. Um estranho no ninho. Nem mesmo esta imprensa o saudou. O episódio é exemplar, no que revela do contínuo autismo político que assola cada vez mais essa oposição de direita que, infelizmente, tem entre seu público parte da esquerda da esquerda.

O que mais se leu e viu na imprensa conservadora foi a decepção: a ida da ministra ao Congresso “deu em nada”. Quer dizer, a ministra se saiu muito bem. Tanto no que se refere à grotesca acusação do senador,quanto ao que se refere ao “dossiê” sobre o governo de FHC, e ainda quanto ao que se refere ao assunto da sua convocação, o PAC e esclarecimentos conexos, no que nem a oposição nem a mídia conservadora estavam minimamente interessadas. Aliás, nem preparadas para discutir. O interesse era crucificar a ministra, e isso não aconteceu. Logo, “a operação” frustrou-se, “deu em nada”.

Porque havia uma operação em marcha. Convocou-se a ministra com uma finalidade (o PAC e conexos) mas o objetivo desde sempre era outro, era constrange-la com a história desse dossiê. A interpelação do senador não foi intempestiva: ela veio de caso pensado, ela era parte de um roteiro.

O interessante dessa comédia de erros e acertos, é que hoje nada do que acontece na política, da extrema (o que o leitor quiser) à extrema (o que o leitor quiser), acontece por acaso. Isto é, alguém sugeriu, pautou o senador. Isso é o que ele “deveria” dizer. Por quê, para quê? Para colar na ministra a palavra “mentira”. Mas se esqueceram de considerar o lado surpreendente do discurso: o ponto de vista revela também mais do que o emissor da mensagem pretende dizer.

E o senador colocou-se do ponto de vista do torturador, do regime que mantinha os torturadores em ação.

O outro objetivo era desconcertar a ministra. Tira-la dos gonzos, faze-la perder o pé, constrange-la a ponto dela se descontrolar. O que se fez ali foi empregar uma técnica sofisticada de interrogatório. Faz-se uma acusação que, além de grave, é absurda e evoca momento traumático por que passou o alvo do questionamento. Entre a descarga de adrenalina, o aperto do diafragma que sufoca a vítima, a lembrança que a cega para o presente, esta perde o controle, diz o que não devia, se desmoraliza perante o acusador, as testemunhas e mais importante, perante si mesma. Daí em diante ela se torna um joguete nas mãos dos inquisidores.

Outra falta cometida pelo senador foi a presunção de culpa. Em seu tribunal, os réus são sempre culpados. Lembrei-me do filme “O julgamento de Nuremberg”, o primeiro, com Spencer Tracy, Burt Lancaster e Marlene Dietrich (É claro que não estou comparando o nosso improvisado “juiz” em Brasília com qualquer um deles!). Burt Lancaster faz o papel de um grande juiz liberal que presidiu julgamentos durante o nazismo. Os réus e as testemunhas eram sempre culpados. O julgamento consistia em “quebrá-los” no interrogatório, até que dissessem em público o que a promotoria queria ouvir. E aí o juiz, que a tudo assistia impassível, julgava e condenava.

No final do filme Burt Lancaster encontra o juiz norte-americano (Spencer Tracy) que fora seu discípulo, ainda que distante, e que agora tem que julga-lo. Diz o juiz alemão: “Eu não esperava que chegasse a esse ponto”, referindo-se aos milhões de vítimas do nazismo, e às inúmeras pessoas que ele julgara naqueles tribunais farsescos. “O senhor chegou nesse ponto”, retruca seu colega norte-americano, “quando condenou o primeiro inocente”. Mutatis mutandis, foi a este ponto que o nosso “juiz” chegou, sem se dar conta. Mas o julgado acabou sendo ele.

Pois é. Estava tudo pronto, a operação armada, os dentes afiados como os caninos do vampiro, as manchetes estavam à espera, as perguntas, entretanto, saíram do bolso e foram parar na manga do colete, isto é, no vazio. Porque, parafraseando Garrincha antes da final da copa de 58, faltou combinar com a adversária, a ministra Dilma Roussef. Que matou a pergunta no peito, driblou todo time contrário e marcou um gol de placa. Para mais um desespero de nosso conservadorismo rastaqüera.

Fonte: Agência Carta Maior
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