quinta-feira, 15 de maio de 2008

O que está em jogo no mês que virou época

Recusar o jogo do espetáculo, da alienação, da separação, do conformismo e da passividade: quem resistirá? A pergunta que Guy Debord nos deixou indica um dos sentidos principais do Maio de 68, um mês que, na verdade, segue aberto no calendário.

“Por mais críticas que sejam a situação e as circunstâncias, não aceite o desespero; nas ocasiões em que tudo leva ao medo, não se deve ter medo de nada; quando se está rodeado de perigos, não se deve temer perigo algum; quando já se esgotaram os recursos, deve-se contar com todos os recursos; quando se é surpreendido, deve-se surpreender o próprio inimigo”.

Sun Tzu, A Arte da Guerra (citado por Guy Debord na abertura dos Comentários sobre a sociedade do espetáculo)

Muito tem se escrito sobre Maio de 68. Quarenta anos se passaram. Balanços, memórias, obituários e elogios se alternam e se cruzam. O que ocorreu naquele período virou objeto de museu ou guarda atualidade? Na verdade, parece mais correto perguntar: as idéias que transformaram um mês em uma época ainda têm força para nos dizer algo sobre o presente? Uma maneira simples de tentar responder essas perguntas é deixar que as próprias idéias falem. Para além dos eventos, das imagens e frases clássicas do período, uma idéia forte atravessou aqueles dias: a crítica da alienação, do espetáculo, da transformação da experiência criativa em passividade. Guy Debord foi um dos principais formuladores dessa crítica, a crítica da alienação e da sociedade do espetáculo. Essa crítica segue atual? Ou, dito de outro modo: a alienação e o espetáculo seguem nos condenando a uma vida de pobreza material e espiritual?

Deixemos que Debord fale e que cada um tire suas próprias conclusões. A minha, já adianto: mais do que atuais, as idéias que serão apresentadas a seguir, carregam urgência. Elas nos falam da ausência de uma real comunicação, da distância entre nossas experiências individuais e uma vida criativa, do elogio da passividade, do consumismo e do conformismo. Em 1961, o autor de A Sociedade do Espetáculo escreveu e dirigiu um pequeno documentário intitulado A Crítica da Separação (está disponível na internet com legendas em português – e alguns problemas de tradução -; os links estão disponíveis no final deste texto). A obra fala de separações, de ausências e de projetos abandonados. Mas fala também da necessidade de resistir. Resistir à morte em vida, à vida alienada e medíocre. Resistir, sobretudo, à tentação da desistência. Ouçamos Debord e vejamos se suas palavras ainda ecoam em nossos ouvidos.

Qual comunicação podemos esperar?
“Não sabemos o que dizer. Seqüências de palavras são repetidas, gestos são reconhecidos. Fora de nós. Claro que alguns métodos são controlados, alguns resultados são verificados. Muitas vezes é divertido. Mas muita coisa que queremos não é atingida; ou é apenas parcialmente e não como imaginamos. Qual comunicação podemos esperar? Qual real projeto nós perdemos?”

“As informações oficiais estão por toda parte, com suas frases que não esperam resposta e suas explicações arrogantes. E seus silêncios. A pobreza dos meios é acompanhada de uma revelação: a escandalosa pobreza do tema abordado. Geralmente, os eventos que acontecem em nossa existência individual, tal como ela é organizada, os eventos que nos dizem respeito e exigem nossa adesão, são precisamente aqueles que recebem nossa indiferença, como espectadores distantes e entediados. Por outro lado, as situações vistas por meio de uma representação artística atraem nossa atenção e recebem nossa participação ativa”.

“Esse é um paradoxo a ser revertido. É isso que precisa ser colocado em prática. Quanto a este espetáculo idiota do passado que nos é apresentado, filtrado e fragmentado, cheio de som e fúria, o que importa não é transformá-lo ou adaptá-lo, criando outro espetáculo ordenado. É preciso destruir essa memória passiva das representações artísticas, arruinar as convenções de sua comunicação, desmoralizar seus admiradores”.

“A subjetividade infeliz e miserável acaba se tornando uma espécie de objetividade: um documento sobre as condições da nossa não-comunicação. Não inventamos ou criamos nada. Nos adaptamos, com algumas variações, na rede de possíveis itinerários. E nos acostumamos a isso”.

Que poder buscamos?
“Nossa época acumula poder e se imagina racional. Mas ninguém reconhece este poder como seu próprio. Em parte alguma, houve qualquer acesso à maturidade. Ninguém cessa de ser mantido sob tutela. A questão não é reconhecer que algumas pessoas vivem mais ou menos pobremente que outras, mas que todos nós vivemos de maneiras que estão fora do nosso controle. Ao mesmo tempo, vivemos em um mundo que nos ensinou como mudar as coisas. Nada permanece o mesmo. A cada dia, o mundo muda e fica mais rápido. A única aventura ao nosso alcance é contestar essa totalidade. No centro deste modo de vida, podemos tentar testar nossa força, mas não usá-la. Nenhuma aventura é, de fato, criada diretamente por nós. As aventuras que nos são apresentadas fazem parte da massa de lendas transmitidas pelo cinema ou por outros meios de comunicação. Fazem parte da fraude espetacular da história”.

A separação da vida
“Em situações eventuais conhecemos pessoas separadas movendo-se ao acaso. Suas emoções divergentes se neutralizam mutuamente e mantêm a solidez enfadonha de seu ambiente. Na medida em que não podemos fazer nossa própria história, criar livremente situações, nosso esforço pela unidade dará origem a outras separações. E apenas alguns encontros ficam como sinais da possibilidade de uma vida mais intensa, de uma vida que não foi realmente encontrada”.

“Mas o que não pode ser esquecido reaparece em sonhos. Ao término deste tipo de sonho, meio adormecido, os eventos ainda são, por um breve momento, tidos como reais. As reações que eles provocam tornam as coisas mais claras, mais precisas e razoáveis, assim como em muitas madrugadas recordamos o que bebemos na noite anterior. Então vem a consciência que tudo é falso, que não passa de um sonho, que as nossas realidades foram ilusórias e que não podemos alcançá-las novamente”.

“Esses sonhos são centelhas de um passado não resolvido, centelhas que iluminam, unilateralmente, momentos outrora vividos em confusão e dúvida. Eles fazem uma publicidade sem nuances de nossas necessidades não satisfeitas”.

Derrota e resistência
“Quem resistirá? É necessário ir além desta derrota parcial. Mas como fazer isso? Este é um filme que se interrompe e não se acaba. Todas as conclusões continuam sendo esboçadas. Há cálculos a refazer. O problema continua sendo analisado, em condições continuamente mais complicadas. É preciso recorrer a outros meios. Da mesma maneira que não houve nenhuma razão profunda para começar essa mensagem informal, também não há nenhuma para concluí-la. Apenas comecei a fazê-los compreender que não pretendo jogar esse jogo”.

Recusar o jogo do espetáculo, da alienação, da separação, do conformismo e da passividade: quem resistirá? Essa é uma das perguntas que Debord nos apresenta. Esse é um dos sentidos do Maio de 68, um mês que, na verdade, segue aberto no calendário.

Maio de 68 não significa uma recusa na forma da evasão. O que está em jogo é, antes da derrota, as condições de enfrentamento e de não-abandono da própria consciência. O que está em jogo é não jogar o jogo do espetáculo triunfante. É contar com todos os recursos e surpreender o inimigo. Fazer história sem prestar contas ao que a inviabiliza.

Veja o documentário:

A Crítica da Separação (I)
A Crítica da Separação (II)

Marco Aurélio Weissheimer é jornalista da Agência Carta Maior (correio eletrônico: gamarra@hotmail.com)

Fonte: Agência Carta Maior
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