quinta-feira, 8 de maio de 2008

Uma vida absurda, aceita como natural

Cada novo aumento da produção automobilística é comemorado pela mídia. Compram-se automóveis em 99 prestações. Entupidas, as cidades param. Estaremos, como diz Paulo Mendes da Rocha, nos dedicando a aprimorar a máquina de produzir veneno que inventamos?

por José Correa Leite

O governo, os empresários e a mídia comemoraram, em 2007, a produção de três milhões de automóveis no Brasil. Agora, ambicionam uma meta ainda maior. Grande parte desses carros foi vendida na cidade de São Paulo. Todos os dias, 650 novos automóveis (além de 250 motos) são licenciados. São apenas os últimos acréscimos a uma frota de seis milhões de veículos — a segunda do mundo. A capital paulista enfrenta um trânsito cada vez mais lento, forçando grande parte da população a passar horas e horas em congestionamentos.

Apesar do aumento do preço do petróleo, a indústria automobilística mundial conhece um de seus maiores booms. Fabricantes indianos e chineses introduzem no mercado veículos de 2.500 dólares, que cedo ou tarde chegarão aqui. No Brasil, carros zero são agora financiados em até 99 meses.

É perceptível que a velocidade de circulação nas cidades brasileiras está caindo rapidamente (o Rio de Janeiro está seguindo o caminho de São Paulo). Todos vêm sentindo as conseqüências tanto da irresponsabilidade das autoridades para com o transporte coletivo quanto da expansão sem barreiras da frota de veículos. A quantidade dos que rodam em São Paulo cresceu. Em um ano, houve um aumento de 7%, sendo três quartos automóveis que, normalmente, circulam apenas com seus motoristas. A enorme expansão do número de motocicletas (cerca de um milhão), autorizadas pela legislação em vigor a circular entre as faixas, também contribui para degradar o trânsito e aumentar as mortes em acidentes.

Os problemas não se restringem ao trânsito. A poluição, causada essencialmente pelos veículos, em São Paulo, voltou a piorar, agravando, também, as tendências ao aquecimento da região.

A cada dia, duas ou três horas da vida de dez milhões de pessoas seja jogada fora, num estresse sem propósito. Mas elas têm dificuldades de perceber seu caráter grotesco

Temendo desgastar-se, a prefeitura não adota medidas de restrição à circulação de veículos — como pedágios urbanos, praticados nas capitais européias, exclusão dos automóveis particulares do centro velho, aumento do rodízio (como fez a Cidade do México) e da fiscalização (um terço da frota é irregular), maiores restrições a caminhões no centro ou a simples expansão das zonas azuis. Também não acelera a criação de corredores exclusivos de ônibus, por pressão dos comerciantes e moradores das vias onde eles seriam implantados.

O prefeito Gilberto Kassab afirmou que os congestionamentos são resultado da falta de investimento municipal na expansão do metrô nos últimos 32 anos. Para Kassab, agora “não adianta chorar sobre o leite derramado” [1]. O presidente da Companhia de Engenharia de Tráfego (e seu gestor em vários governos conservadores) Roberto Scaringella foi mais franco: não haverá “medidas radicais que dariam fluidez” ao trânsito, porque “podem impactar negativamente a economia”. “A conseqüência é que a gente terá de aprender a conviver com um número maior de quilômetros de lentidão. Quando eles se excedem, não gera um colapso da cidade, mas a deterioração e a delinqüência urbana”, completou Scaringella [2]. Pressionada pela imprensa, a prefeitura acabou anunciando uma série de medidas, mas elas são cosméticas: redução do espaço para estacionamento em algumas ruas, divulgação de rotas alternativas às vias principais etc.

A atuação do governo do Estado também é marcada pela inação. Ele não acelera a expansão do metrô e, tampouco, cumpre as metas de construção da Linha 4 - Amarela, onde os métodos privatistas geraram sucessivos desastres e atrasos [3]. Perdido em disputas menores de rateio dos custos com a prefeitura, o governo, nem mesmo, geri uma integração adequada com a rede de ônibus.

É absurdo que duas ou três horas por dia da vida de dez milhões de pessoas seja jogada fora, em um estresse sem propósito. Mas o sistema do automóvel está tão profundamente arraigado no imaginário das pessoas que elas têm dificuldades de perceber seu caráter grotesco. É aceito como natural ou inevitável, permitindo que governantes ajam de forma irresponsável.

No entanto, como afirma o arquiteto Paulo Mendes da Rocha, “é como se tivéssemos inventado uma máquina de produzir veneno e, todo dia, nos empenhássemos em aprimorá-la. A questão dos transportes é fundamental. Não se trata, puramente, de introduzir conforto. Trata-se de ver que, queimar petróleo para transportar uma pessoa de 60 quilos numa lataria de 700 quilos, que não anda, é um erro grave. É repugnante ver a cidade congestionada de carros que não andam. A questão não é fazê-los andar, é ver que isso não tem saída, o transporte individual é uma bobagem. Construir túneis e viadutos é aprimorar a máquina do veneno. E já não importa que o carro não ande, porque você vê todo mundo lá dentro falando no celular, usando o laptop... É a rota do absurdo” [4].

O correto é que o uso do transporte individual seja desestimulado, o coletivo favorecido e o usuário do carro passe a pagar por todo o impacto que provoca

O proprietário do carro impõe, a toda sociedade, custos que ele não paga no IPVA ou quando compra o automóvel. Ocupação do espaço público (50% do território urbano em São Paulo é dedicado ao transporte), perda de tempo, danos à saúde de milhões de pessoas etc. O correto é que o uso do transporte individual seja desestimulado, o coletivo favorecido e o usuário do carro passe a pagar por todo o impacto que provoca.

Parece evidente que não se pode esperar nada dos governantes! Esse é um problema que São Paulo só poderá enfrentar se organizar um movimento cidadão que reúna força política para libertar a cidade da ditadura do automóvel. Uma mobilização com propósitos claros, capaz de impor uma expansão da oferta e qualidade do transporte público e reduzir o espaço para o carro.

Assistimos, nos últimos anos, ao acúmulo de uma série de problemas de novo tipo, gerados pela lógica sem freios do mercado. Esse cobram um preço humano e ambiental cada vez maior.

O caso mais notório é o do aquecimento global, resultado de toda a economia do petróleo, carvão e automóvel, associada ao consumismo desenfreado. Ela exige pensarmos a atividade produtiva em função das necessidades humanas e não da busca do lucro e, portanto, do crescimento. Mas, como manter o capitalismo sem a maior expansão possível?

E agora os moradores de São Paulo enfrentam as conseqüências da irracionalidade que representa a “racionalidade” do mercado. Cada um busca satisfazer seus desejos na lógica do transporte (ou do consumo) individual, sem que haja intervenção do poder regulador de caráter público tolhendo os absurdos que o consumismo carrega.

Todas são questões que colocam a necessidade de outra vida e de outra organização da nossa sociedade em discussão.



[1] Folha de S.Paulo, 7/3/2008, p. C6.

[2] Folha de S.Paulo, 9/3/2008, p. C3

[3] Quando licitada em 2001, a Linha 4 - Amarela estava prevista para entrar em operação em 2006. Mas, na melhor das hipóteses, ela começará a funcionar de forma parcial, em 2010!

[4] Entrevista concedida à Carta Capital, 15 de agosto de 2007, p. 64

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
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