sábado, 10 de maio de 2008

O caso Dorothy Stang

por Wálter Fanganiello Maierovitch

Na minha longa vida de magistrado e operador do Direito, sempre defendi, em artigos, a participação popular nos julgamentos das causas criminais.

O nosso erro quanto à participação popular deriva da adoção do sistema que importamos da França em 1822. No Brasil, o Júri Popular nasce com competência restrita aos delitos de imprensa e à meta oculta de calar os jornalistas e, assim, proteger o regime e a nobreza.

Pelo sistema, ainda em vigor entre nós e com a competência limitada aos crimes intencionais contra a vida, os jurados, na decisão do mérito da causa, respondem, monossilábica e secretamente, a questionário. Isso sem explicar por que condenam ou absolvem.
O sistema é antidemocrático. Fere o direito natural de as pessoas acusadas saberem a razão pela qual estão sendo condenadas e com base em quais provas. Também priva a sociedade de saber, legitimamente, as razões de absolvições ou de condenações.

Está aí para comprovar o desacerto do sistema o caso da absolvição, na terça-feira 6, do fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura. Ele era acusado de ser o mandante do covarde assassinato, com seis tiros, da freira Dorothy Stang, de 73 anos. O crime consumou-se em 12 de fevereiro de 2005, em Anapu (Pará), quando a religiosa se dirigia a uma reunião com agricultores.

É simples presumir, no julgamento referido, que o conselho de jurados, por 5 votos a 2, acreditou na nova versão apresentada pelo pistoleiro Rayfran das Neves, apelidado Fogoió, e que saiu condenado à pena de 28 anos de prisão, em regime inicial fechado. Vale dizer, cumprido dois quintos da pena, ele estará de volta às ruas, em regime semi-aberto, sem fiscalização. Aliás, falta-lhe pouco, pois está preso desde 20 de fevereiro de 2005, ou seja, há três anos e dois meses.

Por diversas vezes, na polícia, nas audiências judiciais e até diante de jurados que atuaram anteriormente, o pistoleiro Fogoió confessou sua condição de mandatário do fazendeiro. Num sistema verdadeiramente democrático, os juízes leigos, que atuaram na terça-feira passada, teriam de dar os motivos pelos quais estavam a desprezar os relatos de Fogoió e explicar por que foram convencidos da verdade da nova versão de que não houve crime encomendado. Frise-se, o pistoleiro não mantinha, ao contrário do fazendeiro Vitalmiro, vulgo Bida, animosidade ou dissenso por quaisquer questões, incluídas as fundiárias, com a abnegada e pacífica freira Dorothy.

O promotor de Justiça apresentou recurso de apelação no próprio termo da ata da sessão de julgamento. Mas aí começam as dificuldades, em face de um sistema que também serve para blindar privilegiados.

No particular, esse sistema estabelece a soberania dos veredictos, ainda que as decisões sejam imotivadas, muitas vezes tomadas por simpatia, ideologia, servilismo e corrupção. Como explicou o jurista francês Faustin Hélie, a soberania dos veredictos consiste na impossibilidade de os juízes togados (profissionais) se substituírem aos jurados leigos na decisão da causa.

No caso Dorothy, e uma vez acolhida a apelação já proposta, o Tribunal de Justiça não poderá condenar Bida, mas, apenas, mandá-lo a outro júri, com outros jurados. Caso venha a ser novamente absolvido, nada mais poderá ser feito. Em síntese, não se admite uma segunda apelação.

A blindagem é tamanha que no julgamento da apelação, no que toca à culpa, o Tribunal somente pode acolher esse recurso se a decisão dos jurados for “manifestamente” contrária à prova dos autos. Daí, a defesa do fazendeiro Bida estar a comemorar, pois a decisão absolutória encontra amparo no depoimento do pistoleiro Fogoió. Assim, não seria “manifestamente” contrária à prova.

Espera-se que o Tribunal, com engenho, descubra uma maneira para escapar dessa blindagem. Essa só é aceitável na hipótese de novo sistema, com o juiz popular obrigado a apresentar as razões do seu convencimento e a explicar a recusa pelas provas que indicam o caminho condenatório. Convém lembrar que o juiz profissional tem o dever constitucional de decidir motivadamente, de modo a examinar todo o conjunto probatório e as teses levantadas.

A teratologia não pára aí. Apenas na lei brasileira, a revelar que nem o legislador acredita na instituição do júri, existe, desde 1941, o incrível recurso chamado “protesto por novo júri”. Ou seja, aquele que for condenado por tempo igual ou superior a 20 anos pode, imotivadamente, exigir outro julgamento.

O fazendeiro Bida fora condenado à pena de 30 anos de reclusão, em 15 de maio de 2007, como mandante do assassinato da religiosa Dorothy. Protestou por novo júri e, na terça 6, conseguiu a absolvição.

Em síntese, a instituição chamada júri, contra vontade dos Bidas e de tantos outros poderosos, precisa mudar. E na mudança não se deve esquecer de que a mala-preta não existe só no futebol e na política partidária.

Fonte: Carta Capital
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