quinta-feira, 15 de maio de 2008

A PEDAGOGIA DAS COTAS ÉTNICAS

por Fátima Oliveira, em O Tempo, Belo Horizonte, MG, 14 de maio de 2003

"Negro quando não suja na entrada suja na saída"/É um preto de alma branca", e outras expressões racistas revelam que as bases doutrinárias do racismo se vinculam a uma suposta condição biológica inferior de alguns grupos humanos. No senso comum, brancos trazem a competência inscrita no DNA! Negros, a todo segundo, precisam provar. Negro "que é gente que faz" não é competente, mas autoritário, "trator", "rainha de ébano". Benedita da Silva quando vice-governadora foi chamada de "rainha de Sabá" por Brizola. Crianças mendigas, negras ou brancas, se estou de carro, perguntam o que faço. Digo que sou médica. Elas riem. Simplesmente não acreditam! Várias vezes, depois de examinar, prescrever e explicar a receita (sempre explico-a), a pessoa acompanhante indaga: "a que horas o doutor vai atender?" Sexismo e racismo no mesmo bolo.

Recentemente, em um plantão "lotado, saindo pelas beiradas", com o dobro da capacidade, a coordenadora, uma médica negra, disse ao motorista da ambulância que não havia vaga. Ao ser orientado onde buscar atendimento, disse: "não pode ter mesmo, porque botam uma negra dessa para ser a coordenadora". Chamamos a polícia. Há um processo tramitando. A instituição colocou à disposição da médica o seu aparato jurídico? A baixa prática e consciência anti-racistas não permitem cogitar tal apoio.

Em 13 de maio de 1888 foi extinta a escravidão negra no Brasil, em ato assinado pela princesa Isabel. Ao lado de leis "benfeitoras" para os escravos, o Império decretou as que impediam o acesso deles à escola e à terra. "Negros não podiam freqüentar escolas, pois eram considerados doentes de moléstias contagiosas." Tal decreto, complementar à Constituição de 1824, por paradoxal que possa parecer, ainda está em vigor na universidade brasileira. A Lei da Terra (1850), definiu que a posse só era permitida via compra. Só valia para negros. Imigrantes europeus receberam doação de terras devolutas, cujo dono era o Estado! Um século e meio depois, a maioria dos negros sequer atingiu a condição operária. Sem acesso à cidadania, somos a maioria absoluta dos "Sem Nada".

O frei David Santos Ofin, da Educafro, em A face real da Lei Áurea, diz que no máximo ela "serviu como estratégia para dar à população negra respaldo de libertação jurídica". Pelo último censo do Império (1872) o total de negros era de 1,5 milhão, destes 1 milhão viviam nas lavouras e a Lei Áurea, 16 anos após, só beneficiou, oficialmente, 750 mil escravos. Velhos, doentes e inválidos eram alforriados para a mendicância. Por que apenas uma pequena parcela de negros continuava escrava? Mais que as leis, a luta pela liberdade preparou o fim da escravidão, pois a busca da alforria, a princípio no plano pessoal, depois um processo coletivo (Palmares e outros quilombos) minou a escravidão.

Para o frei David, a Lei do Ventre Livre (1871) ao separar as crianças de seus pais, desestruturou a família negra. Para desobrigar os escravistas das despesas com crianças negras, foi criado um albergue público, onde 80 em cada 100 crianças morriam antes de 1 ano de idade. A referida lei gerou "as primeiras crianças abandonadas do Brasil". Sobre a Lei dos Sexagenários (1885), frei David diz que ela marginalizou velhos doentes e inválidos, fazendo surgir os primeiros mendigos nas ruas do Brasil.

Parece que "quem foi rei nunca perde a majestade", pois as elites atuais são quase as mesmas da escravidão e parte expressiva do Congresso Nacional descende de senhores de escravos. Não à toa, só em 2003, 174 após a criação do Supremo Tribunal Federal, o primeiro negro, o mineiro Joaquim Benedito Barbosa Gomes, transporá suas soleiras como ministro! O Estado brasileiro e suas elites se esbaldam na exploração de classe e nos ideários machista e escravocrata da "Ideologia do embranquecimento ou do branqueamento racial", em si aspiração de limpeza étnica, que divide o povo negro, esvazia a consciência étnica e nos incita a fugir de nossas matrizes étnicas, a ancestralidade africana, gerando pessoas sem identidade e auto-estima.

O racismo se adequa a novas situações, mas mantém o paradigma: a opressão de raças/etnias tidas como superiores. No debate sobre ações afirmativas, algumas universidades saem pela tangente e, estribadas no mito da democracia racial, falam, genericamente, em democratização da universidade, fogem da discussão das cotas étnicas, ignoram o Plano de Ação de Durban e a tramitação no Congresso Nacional de uma proposta de política anti-racista de Estado, o Estatuto da Igualdade Racial! Por que não vêem, desde já, com olhos solidários as questões étnicas? Em que estrela estão magníficos(as) reitores(as) que ignoram a simbiose capitalismo/racismo e dão uma de sinhô e de sinhá: falam em democratizar o acesso à universidade, mantendo o vestibular e excluindo as cotas étnicas? Ministra Matilde Ribeiro (Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial), entre em cena. Diga por que e para quê está ministra.

Sem delongas, só o fim do vestibular democratizará a universidade brasileira! O resto, é remendar a exclusão: a falta de vagas. Cabe ao Estado assegurar acesso universal à escola de todos os graus. Eis a luta estratégica. A conclusão do segundo grau é a única condição legal e a exigência moralmente sustentável para acesso à universidade! Até à eqüidade, as cotas étnicas são direito à reparação e um modo pedagógico de obrigar os brancos ao aprendizado de coletivizar privilégios que usurparam de afrodescendentes.

Fonte: Vi o Mundo


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