quarta-feira, 7 de maio de 2008

A câmara de gás

Horror dos horrores: paira uma pergunta sem resposta na imprensa européia: o que havia, no fim de contas, no fundo da alma do homem que trancafiou sua própria filha num cárcere privado durante 24 anos? E outra pior ainda: o que pairava no espírito dos seus vizinhos, das autoridades públicas, de um país inteiro?

No meio da série de comentários e depoimentos sobre o caso terrível do pai que trancafiou a filha, numa pequena cidade austríaca, durante 24 anos, violentando-a de quando em quando e lhe fecundando sete filhos, um detalhe congelou mentes, corações e corpos. Vez por outra ele a ameaçava, caso tentasse fugir ou denunciar a situação, de mata-la enchendo o porão onde ela vivia com três dos filhos que tivera, com gás, reproduzindo a forma macabra de assassinato empregada nos campos de concentração ao tempo do nazismo.

Esse pútrido detalhe fez a simbologia do caso extrapolar fronteiras. Muitos dos comentários feitos, além de procurarem explicar a patologia específica do autor desse crime mais que hediondo, estapafúrdio, enveredaram pelo terreno do estereótipo nacional. Ah, “os austríacos” não perceberam nada ou não quiseram denunciar nada porque “são fechados”, são infensos a “se meterem” na vida alheia e assim por diante, revivendo caricaturas dos antigos “caracteres nacionais” dos tempos do século XIX (ou do trágico XX).

A imagem da câmara de gás, usada como arma aterrorizante pelo pai da vítima, mostrou que há algo de bem mais complexo neste caso do que esta apreensão estereotipada do que aconteceu.

O autor do crime nasceu em 1935. Em 1939 tinha quatro anos, em 1945, dez. O pai desapareceu na guerra. A mãe, pelo que se descreve, o espancava diariamente. Isso explica algo? Talvez. Quantas crianças passaram pelas mesmas agruras e tiveram vidas tão diferentes, cheias de vida e paixão pelas boas coisas do mundo? Mas uma coisa é certa, e é uma pergunta, não uma resposta: terá sido a câmara de gás uma argumentação de alguém “naturalmente” ou “feito” nazista, ou terá sido ela uma metáfora histórica com que essa alma perdida e certamente confusa recobriu a violência que não podia ou não queria conter?

É difícil dizer, é como a história do ovo e da galinha.

A outra questão diz respeito aos próximos. A mãe era uma mulher pobre, de horizontes limitados, submissa, acostumada a obedecer. Mas existem milhares de mulheres assim, e que não se submetem a determinações absurdas, como essa de nunca visitar, na própria casa, um porão onde viveram quatro pessoas durante 24 anos! A mesma interrogação vale para os vizinhos, os próximos, os parentes: como não perceberam nada? Ficará a eterna dúvida.

Mas há um terreno em que as certezas se acumulam. As autoridades públicas, as mais diversas, tiveram indícios de sobejo que algo de errado havia naquela cidadezinha, naquela rua, naquela casa. E nada fizeram. Tudo se transformou em papéis e mais papéis que foram dormitar em fundos de gaveta. Por quê? Porque predominava a idéia de que a versão articulada pelo pai era a correta, de que todos estavam diante de uma mulher de espírito adolescente e rebelde que cuspira na mão em que comera, abandonando a família para aderir a uma seita religiosa que, na verdade, ninguém sabia qual era. Nem se interessou em averiguar. O caso mais grave, portanto, é o da omissão da autoridade pública, e as razões desta devem ser investigadas a fundo. Como lembrou uma psicóloga, não vamos aderir à tese de que, como no passado, as casas e porões devam ser periodicamente vasculhados pela autoridade. Mas vamos aderir à tese, sim, de que cabe à autoridade pública o dever de debater, em suas instâncias, o que são indícios de violação contumaz de direitos – e isso havia no caso. Precisou o caso se tornar uma ocorrência de saúde pública – uma pessoa estranha, com um mal “inexplicável”, apareceu num hospital – para que a autoridade policial entendesse que algo de estranho se passava. Daí ao esclarecimento do caso foi um par de dias – depois de mais de oito mil e quinhentos de cativeiro.

A pergunta que fica no ar é: qual foi o papel do Estado neste caso? De quantas omissões um Estado pode ser feito? Qual a articulação entre a omissão virtual dos cidadãos e a omissão concreta das autoridades? Como se vê o jovem nessa sociedade? A jovem (era uma mulher, não esqueçamos)? A argumentação do pai doentio se baseava numa idéia fixa que ninguém contestou, a de que a filha, no fundo, “faltara ao seu dever”, abandonando a família para viver uma vida inverossímil, aderindo a uma seita religiosa e tendo filho sobre filho, que “mandava” para os pais-avós criarem. Por que isso era mais verossímil do que a imagem de uma casa estranha onde havia um porão inexpugnável, onde apareciam crianças da noite para o dia, cujo dono vivia em obras sem fim, a carregar pacotes e pacotes de alimentos para um sorvedouro de segredos?

Edgar Allan Poe que nos socorra.

Fonte: Agência Carta Maior
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