quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Mundos Perdidos” - Dos ‘Think Tanks’ aos Tanques de Guerra

>“Mundos Perdidos” - Dos ‘Think Tanks’ aos Tanques de Guerra, por Naomi Klein

Por Naomi Klein
Fonte: DemocracyNow 15 de agosto de 2007
Mais informações no site: NaomiKlein.org
Tradução: Agência Imediata
Amy Goodman:
“Um Outro Mundo É Possível?” Esse foi o tema da Reunião Anual da American Sociological Association que ocorreu em Nova York no último fim de semana. “Não perdemos as batalhas das idéias. Não fomos superados em inteligência e nossos argumentos não se tornaram obsoletos”, afirmou a jornalista e escritora Naomi Klein. “Perdemos porque fomos esmagados. Às vezes fomos esmagados por tanques do exército, e às vezes fomos esmagados pelos think tanks (N.doT.: centros de produção de idéias). E com a expressão think tanks eu quero dizer as pessoas que são pagas para pensar por aqueles que produzem os tanques ou carros blindados”.
Klein é a autora do livro que sairá em breve: “The Shock Doctrine: The Rise of Disaster Capitalism” (A Doutrina de Choque: o Avanço do Capitalismo de Desastre”)
O Departamento de Estado está sendo criticado nesta semana por ter recusado a permissão de entrada aos EUA de um famoso cientista social sul-africano. Adam Habib devia falar na reunião anual da American Sociological Association em Nova York no último fim se semana, mas o governo lhe recusou o visto.
Ironicamente, o tema da conferência deste ano era “Um Outro Mundo É Possível?” Na conferência, a ASA planejou uma série de sessões para avaliar o potencial de mudaça social progressista tanto nos EUA quanto no mundo, e convidar para uma discussão séria sobre a “globalização econômica” e suas conseqüências.
Uma das sessões mais aguardadas era a que apresentaria Jeffrey Sachs, economista de fama internacional e ex-conselheiro especial junto à ONU, sob o secretário-geral da ONU Kofi Annan, juntamente com Naomi Klein, a jornalista e autora canadense. Logo depois da abertura da conferência, Sachs se retirou. Não ficou claro se o motivo de sua retirada estava relacionado ao fato de que Naomi Klein o questiona em seu livro prestes a sair: “A Doutrina de Choque: o Avanço do Capitalismo do Desastre”. O tema da palestra dela foi “Lost Worlds” (“Mundos Perdidos”).
Naomi Klein , autora e jornalista. Seu novo livro, prestes a ser lançado: “A Doutrina de Choque: o Avanço do Capitalismo do Desastre”. Mais informações no site NaomiKlein.org .
NAOMI KLEIN: Enquanto pensamos em como alcançar esse outro mundo possível, quero deixar bem claro que eu não acredito que o problema seja a falta de idéias. Acho que estamos nadando em idéias: saúde universal; salários decentes; cooperativas; democracia participativa, serviços responsáveis para com as pessoas que os utilizam; alimentos, remédios e habitação como um direito humano. Essas não são idéias novas. Estão conservadas como relíquias na Carta da ONU. E acho que a maioria de nós ainda acredita nelas.
Não creio que nossos problemas sejam dinheiro ou falta de recursos para agir no que toca a essas idéias básicas. Agora, sob o risco de ser acusada de populismo econômico, gostaria de salientar que aqui em Nova York, os funcionários da Goldman Sachs receberam mais de US$ 16 bilhões de bônus de Natal, no ano passado, e que a ExxonMobil ganhou US$ 40 bilhões em lucros anuais, um recorde mundial. Parece-me que há, claramente, dinheiro suficiente espirrando por todos os lados para pagar pelos nossos modestos sonhos. Podemos taxar os poluidores e os capitalistas de cassino para pagar pelo desenvolvimento de energias alternativas e por uma rede de segurança social global. Não são as idéias que nos faltam. Nem o dinheiro.
E, ao contrário de Jeffrey Sachs, eu, na realidade, não acredito que o que esteja faltando seja a vontade política nos níveis mais altos, uma cooperação entre os líderes mundiais. Não acho que se pudéssemos mostrar às nossas elites os gráficos certos e as apresentações em PowerPoint – sem ofensa – então, finalmente, acabaríamos podendo convencê-las de tornar a pobreza uma coisa do passado. Não acredito nisso. Não acredito que poderíamos fazê-lo, mesmo que nossa apresentação em PowerPoint fosse feita pela Angelina Jolie usando um (produto) camiseta Red TM da Gap e que ela estivesse carregando um (produto) telefone celular Red. Mesmo que ela tivesse um (produto) iPhone Red, acho que mesmo com tudo isso as elites não escutariam. Isso porque as elites não fazem justiça só porque lhes pedimos para fazer justiça, com bons modos e de maneira agradável. Elas só fazem justiça quando a alternativa à justiça é pior. E é isso que aconteceu naqueles anos do passado, quando o abismo de renda tinha começado a fechar. Essa era a motivação por trás do New Deal e do Plano Marshall. O comunismo se espalhando pelo mundo. Esse era o medo. O capitalismo precisava se embelezar. Precisava aparar suas arestas. Estava competindo. Assim, as idéias não são o problema, o dinheiro não é o problema, e não acho que a determinação política seja nunca o problema.
O problema real, sobre o qual gostaria de falar hoje, é a confiança, a nosssa confiança, a confiança das pessoas que se reúnem em eventos como esse, sob o lema de construir um outro mundo, um mundo mais gentil e sustentável. Acho que nos falta a força de nossas convicções, a coragem de apoiar nossas idéias com músculo suficiente para assustar nossas elites. Está nos faltando poder de movimento. Isso é o que nos está faltando. “Aos melhores faltavam todas as convicções”, escreveu Yeats, “enquanto os piores estão cheios de intensidade em suas paixões”. Pensem nisso. Vocês querem enfrentar a mudança climática com a mesma intensidade que Dick Cheney quer o petróleo do Cazaquistão? Querem? Vocês querem a cobertura de saúde universal tanto quanto a Paris Hilton quer ser a nova cara da Estee Lauder? Se não, por que não? O que há de errado na gente? Onde está nossa intensidade de paixão?
O que está na raiz de nossa crise de confiança? O que nos drena nossa convicção em momentos cruciais nos quais somos testados? Na raiz, acho que está a noção de que nós aceitamos o que nos dizem, que nossas idéias já foram tentadas e não deram certo. Parte do que nos impede de construir as alternativas que merecemos e aguardamos e que o mundo está precisando tão desesperadamente, como um sistema de saúde que não nos deixe doentes quando o vemos retratado em filme, como a habilidade de reconstruir Nova Orleans sem tratar a imensa tragédia humana como uma oportunidade de lucros rápidos para empreendedores politicamente conectados, ou o direito de ter pontes que não desabem e metrôs que não se alaguem quando chove. Acho que o que está na raiz dessa falta de confiança é que nos dizem incansavelmente que as idéias progressistas já foram tentadas e que falharam. Ouvimos isso tanto que acabamos aceitando. Assim, nossas alternativas são colocadas de um modo tentativo, quase pedindo desculpas por qualquer coisa. “Um outro mundo é possível?” perguntamos.
Essa idéia de nosso fracasso intelectual e ideológico é a narrativa dominante de nosso tempo. Está incrustrada em todas as frases de efeito às quais estamos nos referindo. “Não há alternativa”, disse Thatcher. “A História acabou”, disse Fukuyama. O Consenso de Washington: tudo já foi pensado, o consenso está aí. Agora, a premissa de todas essas proclamações era que o capitalismo, o capitalismo extremo, estava conquistando cada parte do globo porque todas as outras idéias tinham sido confirmadas desastrosas. A única coisa pior que o capitalismo, nos disseram, era a alternativa a ele.
Agora, vale a pena lembrar que quando esses pronunciamentos estavam sendo feitos, o que estava desmoronando não era a democracia social escandinava, que estava prosperando, ou o estado de bem-estar social ao estilo canadense, que produziu o mais elevado padrão de vida do mundo, segundo os parâmetros da ONU, ou pelo menos até o passado recente, antes que o meu goveno adotasse algumas dessas idéias do Consenso. Não foi o chamado milagre asiático que foi descreditado, o qual construíu nos anos 80 e 90 os “tigres” da economia asiática, na Coréia do Sul e na Malásia, usando uma combinação de proteção ao comércio para nutrir e desenvolver a indústria nacional, mesmo quando isso significou impedir a entrada dos produtos estadunidenses e impedir o direito de propriedade aos estrangeiros, assim como manter o controle governamental sobre os bens fundamentais, como a água e a eletricidade. Essas políticas não criaram um crescimento explosivo no topo, como vemos hoje. Mas níveis recorde de lucro e uma rápida expansão da classe média; é isso o que foi atacado nos últimos trinta anos.
O que estava caindo e ruindo quando a história foi declarada acabada foi algo muito específico, em 1989, quando Francis Fukyama fez aquela famosa declaração, e quando foi declarado o Consenso de Washington, também em 1989. O que estava ruindo era o comunismo de estado centralizado, autoritário, anti-democrático e repressivo. Algo muito específico estava ruindo, e foi um momento de tremendo fluxo.
E foi naquele momento de fluxo e desorientação que vários espertalhões, muitos deles aqui nos EUA, colheram o momento para declarar vitória não somente contra o comunismo, mas contra todas as idéias que não fossem as idéias deles. Agora, essa foi a “audácia” petulante de Fukuyama, quando ele realmente disse – e parece tão estranho ler isso agora – em seu famoso discurso de 1989, que a significância daquele momento não estava no fato de que estávamos chegando ao fim da ideologia, como alguns sugeriram, ou a uma convergência entre o capitalismo e o socialismo, como Gorbachev argumentava, não é que a ideologia tinha terminado, mas que a própria história, como tal, tinha chegado ao fim. Ele argumentou que os mercados desregulamentados na esfera econômica, combinados com a democracia liberal na esfera política, representavam o ponto final da evolução ideológica da humanidade e a forma final de governo humano.
O que era interessante e nunca realmente afirmado nesta formulação foi o fato de que havia basicamente duas correntes: havia a democracia, que podia ser utilizada para votar nos respectivos líderes, e havia um único modelo econômico. A pegadinha era que você não podia usar o voto, não podia usar a democracia com o objetivo de reconfigurar a economia, porque todas as decisões econômicas já tinham sido decididas. Era somente – era apenas o ponto final da evolução ideológica. Assim, você podia ter democracia, mas você não podia usá-la para mudar os princípios básicos da vida, você não podia usá-la para mudar a economia. Esse momento foi considerado como uma vitória para a democracia, mas aquela idéia de que a democracia não podia afetar a economia, é e permanece a idéia mais anti-democrática de nossa época.
Eu me senti atraída pelo slogan escolhido para a reunião da ASA deste ano porque acho que ela, como muitos de vocês sabem e conforme li no programa, deriva do Fórum Social Mundial. Eu estive no primeiro Fórum Social Mundial há seis anos e meio – mais de seis anos e meio, em janeiro de 2001, em Porto Alegre, Brasil. Eu era um dos poucos norte-americanos que participaram. E nos reunimos sob o mesmo slogan, mas acho significativo e interessante que na época a frase não era formulada com um ponto de interrogação no fim. Havia um orgulhoso ponto de exclamação no final da frase: “Um outro mundo é possível!”
Assim que voltei do Brasil, escrevi um artigo para a The Nation, tentando explicar aos leitores dos EUA – o evento não recebeu nenhum tipo de cobertura neste país, embora tivesse tido grande cobertura por parte da imprensa internacional – o que sentia pelo fato de estar lá com mais 10.000 pessoas. E muitas pessoas estavam dizendo sentirem que estávamos fazendo história. Escrevi na ocasião que o que senti de verdade foi que se tratava do fim do ‘fim da história’. Foi isso que senti naquela sala. Era essa poderosa rajada de vento que fazia com que a gente pudesse respirar mais profundamente. Estávamos livres para imaginar. Nossas mentes foram desatreladas.
E não foi só Porto Alegre, porque Porto Alegre foi o ponto culminante desses tipos de rebeliões espontâneas – com freqüência, rebeliões espontâneas que estavam acontecendo em todo o mundo, onde quer que os líderes mundiais se encontrassem, para fazer avançar o chamado Consenso de Washington, tanto em Seattle, na reunião da OMC em 1999, quanto nas reuniões do FMI/Banco Mundial alguns anos depois, em Washington, ou em Gênova, por ocasião do G8. E, naturalmente, os zapatistas e o MST do Brasil estavam na linha de frente.
O tema em Porto Alegre foi a democracia. Tratava-se de redefinir a democracia para incluir a economia: democracia profunda, democracia participativa. E foi um desafio confrontado com essa idéia de que essas duas correntes não podiam cruzar. O direito à terra como uma forma de democracia, o direito à biodiversidade, à mídia independente. Mas o mais extraordinário a respeito de Porto Alegre foi que – como vocês devem saber, havia alguns políticos lá, havia algumas ONGs de grande porte lá, mas as pessoas que estavam nos pódios, que estavam moldando as discussões, eram as próprias vítimas deste modelo econômico, elas mesmas descartadas, tornadas sem terra, forçadas a ocupar pedaços de terra, a destruir cercas e a plantar alimentos e tomar decisões democraticamente.
Bem, Jeffery Sachs fala desses vilarejos-modelo que ele está construindo na África. E muitos deles, como vocês sabem, estão fazendo um tremendo progresso. Mas não posso deixar de pensar nessas viagens de campo que fizemos em Porto Alegre, visitando os assentamentos do MST, onde foram as próprias pessoas, os próprios sem-terra, que nos estavam mostrando seus próprios modelos de vilarejo e que solicitavam a nossa solidariedade. E acho que como sociólogos, vocês comprendem essa distinção fundamental de que eram os atores os próprios protagonistas de sua própria história, e que isso em si já era histórico. Rompendo com o modelo caritativo de uma forma muito real.
Vejo onde estamos agora, seis anos e meio depois, e sinto que andamos para trás em muitas áreas. O debate a respeito de como consertar o mundo se tornou, assustadoramente, um negócio de elite. Davos — bem, Porto Alegre se colocava sempre em revolta contra a Reunião de Davos, no mês de janeiro de cada ano. Era o anti-Davos. Davos foi relegitimado, e agora resolver os problemas do mundo parece que é uma coisa a ser resolvida apenas entre CEOs (N.doT.: ‘presidentes de corporações’) e super-celebridades. E a idéia de que não precisamos desafiar esse grande número de disparidades, a idéia de que o que precisamos é de um tipo de ‘noblesse oblige’ em grande escala, bem, isso é muito diferente do que estávamos discutindo em Porto Alegre nos anos passados.
Sabemos o que fechou aquela janela de possibilidade, aquela liberdade que tinha sido aberta em 2001, e foi o 11 de Setembro aqui nos EUA. A janela não foi fechada em todos os lugares, mas fechou, pelo menos temporariamente, na América do Norte, aquele senso de possibilidade, o fato de se colocar no centro do debate político aquelas questões e as próprias pessoas afetadas por essas políticas. O choque produzido por aqueles ataques, e acho que podemos ver isso com alguma clareza, foi aproveitado pelos líderes deste país e de seus aliados em todo o mundo, para abruptamente encerrar a discussão sobre a justiça global que estava explodindo no mundo todo. A porta que tinha sido aberta foi batida e trancada com estrondo. Ouvimos essa frase sem parar: o 11/9 muda tudo. E uma das primeiras coisas que nos foram ditas foi de que o comércio, a privatização, a remuneração do trabalho, todas essas coisas pelas quais lutávamos até então já não importavam mais. Era o Ano Zero. Devia-se passar uma esponja e esquecer o passado. E foi ainda outro desses momentos de reinicialização da história. A História estava, aparentemente, começando de novo do zero, e nada que sabíamos até então contava mais. Foi tudo relegado ao modo de pensar anterior ao 11/9.
O governo Bush justificou isso dizendo que tudo o que importava era a segurança e a guerra contra o terror. E no Canadá, nos disseram que – pelo embaixador dos EUA – a segurança teria primazia sobre o comércio. Esse se tornou o novo slogan, que antes do 11/9 eram as políticas econômicas que dirigiam o governo dos EUA, e depois do 11/9 a única coisa que passou a importar era a segurança. Assim, as questões de justiça econômica, avidez corporativa, perda da esfera pública, todas as questões de Porto Alegre se tornavam, de repente, retrô… tão 2001.
A ironia que podemos ver agora é que, enquanto se negava a importância desse projeto econômico, o governo Bush usou a deslocação do 11/9 para perseguir exatamente o mesmo projeto radical capitalista, agora com uma furiosa vingança, sob o disfarce da guerra e dos desastres naturais. De modo que… esqueçam as negociações dos acordos de comércio da OMC. Quando os EUA invadiram o Iraque, Bush enviou Paul Bremer para se apossar de novos mercados nos campos de batalha de sua guerra preventiva. Não precisou negociar com ninguém. Apenas reescreveu a inteira arquitetura econômica do país de uma só vez. Mas, naturalmente, se alguém dissesse que a guerra tinha qualquer coisa a ver com economia, o sujeito seria tratado de ingênuo. Tratava-se, é claro, de liberar os iraquianos do Saddam…
Enquanto isso, no âmbito doméstico dos EUA, o governo se articulou rapidamente para explorar o choque que tinha tomado a nação e impor uma visão radical de governo oco, na qual tudo – de declarar guerras a reconstruir depois das guerras e a como responder aos desastres –e se tornou um empreendimento de risco inteiramente lucrativo. Isso foi uma evolução ousada da lógica de mercado. Ao invés da abordagem dos anos 90 de liqüidar as companhias públicas existentes, como as de água e eletricidade, a equipe Bush estava criando toda uma moldura diferente para suas ações. Aquela moldura era e é a guerra contra o terror, a qual foi construída para ser privada, gerenciada privadamente desde o começo. O governo Bush desempenhou o papel de um tipo de empreendedor capitalista de risco para o acionamento de companhias de segurança, e foi criado um boom econômico semelhante ao boom das companhias pontocom dos anos 90. Mas não falamos sobre isso, porque estávamos muito ocupados falando de segurança.
Acontece que esse feito requereu um tipo de processo em duas etapas, que usou o 11/9, naturalmente, para aumentar radicalmente os poderes de vigilância e segurança do estado, concentrados no poder executivo, mas ao mesmo tempo distribuir esses poderes e terceirizá-los para uma rede de companhias privadas, como: Blackwater, Boeing, AT&T, Halliburton, Bechtel, e o Carlyle Group. Nos anos 80, o objetivo da privatização – e nos 90 também – era devorar os apêndices do estado. Mas o que estava acontecendo agora era a própria essência do estado que estava sendo devorada, porque o que é mais central à própria definição de um estado, de um governo, que sua resposta à segurança e ao desastre? Esta é uma das grandes ironias da guerra contra o terror, o fato de que ela foi uma arma tão eficaz para fazer avançar ulteriormente a agenda corporativa, justamente porque ela negou que teve, e continua negando que tem uma agenda corporativa.
Mas ela proporcionou a eles um outro benefício, também, que foi a habilidade de desqualificar qualquer pessoa que se opusesse a esse sistema, e tratá-la de aliada aos potenciais terroristas, etc… Assim, nosso movimento, que já enfrentava uma férrea repressão antes do 11/9, passou a ser acusado de traidor. Olhando para trás, é claro que o choque, a desorientação causados pelos ataques foram usados para reafirmar a agenda econômica, para reafirmar aquele consenso que, na realidade, nunca o foi. A janela que tinha sido aberta no fim dos anos 90 pelo movimento conhecido como movimento anti-globalização, mas que sempre foi um movimento pró-democracia, foi trancada com um golpe seco, pelo menos na América do Norte. E foi o terror que bateu com força e trancou essa porta. As alternativas começaram a desaparecer.
Agora, gostaria de usar o resto do meu tempo para dizer apenas que essa não foi a primeira vez que isso aconteceu – se olharmos para os últimos trinta e cinco anos, veremos esta mesma batida de porta para com outras alternativas, assim que elas emergem, vez após outra. Muitos de vocês estavam aqui por ocasião do pronunciamento de Ricardo Lagos, ex-presidente do Chile, que falou sobre o outro 11 de Setembro, que foi um outro desses momentos, muito mais significativo, quando uma alternativa democrática extremamente importante, a verdadeira terceira via, e não a terceira via de Blair, mas a verdadeira terceira via entre comunismo totalitário e capitalismo extremo foi forjada no Chile. E essa era a grande ameaça.
Sabemos disso através de todos os documentos que foram desclasssificados. Um deles é realmente revelador: a correspondência entre Henry Kissinger e Nixon, na qual Kissinger diz muito abertamente que o problema com a eleição do Allende não é o que eles diziam publicamente, de que ele estava alinhado com os soviéticos, de que ele estava somente fingindo ser democrático, de que ele realmente iria impor um sistema totalitário no Chile. Esse era o pretexto na época. O que ele escreveu, na realidade, é que: “O exemplo de um governo marxista eleito e bem sucedido no Chile teria seguramente um impacto – e até mesmo um valor de precedente – para outras partes do mundo … A difusão imitativa desse tipo de propaganda afetaria significativamente o equilíbrio do mundo e a nossa [dos EUA] própria posição dentro dele”. De modo que aquela alternativa, aquele outro mundo, tinha que ser abortado do caminho, e uma violência extrema tinha que ser usada para poder terminá-lo.
Esse tipo de ataque preventivo contra nossas alternativas democráticas, o sonho persistente de uma terceira via, de uma terceira via verdadeira, surgiu muitíssimas vezes. E é sobre isso que vou discutir no livro, mas gostaria de mencionar alguns exemplos – a menos que o meu tempo aqui se tenha esgotado. (OK) — exemplos de momentos em que havia um senso similar de possibilidade efervescente de sermos capazes de respirar mais e de sonhar mais plenamente.
Um deles ocorreu na Polônia, em 1989. 4 de junho foi o dia das eleições históricas na Polônia, que elegeram o Solidariedade como o novo governo. Os poloneses não tinham tido eleições há décadas. E esse foi o evento que desencadeou o dominó – o que agora se chama de efeito dominó nos países do Bloco Leste Europeu – e que resultou, no fim, no desmoronamento da União Soviética. Mas vale a pena lembrar o que junho de 1989 realmente parecia. Na Polônia, o povo não achava que a história tinha acabado, porque tinham acabado de eleger o Solidariedade como o próprio governo. Eles achavam que a história estava apenas começando e que eles poderiam, finalmente, implementar o que o movimento, que era um movimento trabalhista, tinha sempre visto como uma terceira via, um terceiro caminho ainda não empreendido. Agora, a visão do Solidariedade não era uma rejeição ao socialismo. Eles reivindicavam um “socialismo real”, como os socialistas freqüentemente fazem, e tratava-se de uma rejeição ao Partido Comunista. Eles eram tudo aquilo que o partido não era: dispersos, ao invés de centralizados, democráticos, ao invés de autoritários, participativos, ao invés de burocráticos. E o Solidariedade tinha dez milhões de membros, o que lhe deu poder para fechar completamente o estado.
De modo que quando as pessoas foram às urnas e elegeram o governo do Solidariedade, no que elas estavam votando? Para que elas achavam que estavam votando? Será que pensavam estar votando para se tornarem uma economia de livre mercado segundo o modelo descrito por Francis Fukuyama? Não, não estavam. Elas pensavam estar votando pelo partido trabalhador que elas ajudaram a construir.
E gostaria de ler aqui uma breve passagem do programa econômico do Solidariedade, que foi aprovado democraticamente em 1981. Eles diziam: “A empresa socializada deve ser a unidade organizacional básica da economia. Ela deve ser controlada pelo conselho dos trabalhadores representando o interesse coletivo e deve ser operada – gerenciada, cooperativamente, por um diretor nomeado por meio de uma competição convocada pelo conselho das cooperativas dos trabalhadores. De modo que a idéia era tirar o partido do controle da economia, descentralizá-la e fazer com que as pessoas que estivessem executando o trabalho tivessem, na realidade, controle sobre seus locais de trabalho. E acreditavam que poderiam tornar esses locais mais sustentáveis.
Agora, será que eles tiveram a chance de tentar isso, de agir com base naquela visão de uma economia cooperativa de trabalhadores como elemento fundamental da economia, de ter eleições democráticas, mas manter ainda o socialismo? Não, não tiveram. O que tiveram foi um débito herdado, e lhes foi dito que o único modo que teriam para obter qualquer alívio da dívida e qualquer ajuda seria seguir um programa de terapia de choque muito radical. Eu estaria pecando por omissão se eu não salientasse aqui que a pessoa que prescreveu aquela terapia de choque foi Jeffrey Sachs. E eu – não, digo isso porque realmente estava esperando poder debater aqui esses mundos diferentes, porque há diferenças, há diferenças reais que não podemos deixar de confrontar.
Agora, em 2006, no ano passado, 40% dos jovens trabalhadores da Polônia estavam desempregados. Isso é o dobro da média européia. E a Polônia é apontada, com freqüência, como um grande sucesso dessa transição. Em 1989, 15% da população da Polônia vivia abaixo da linha de probeza. Em 2003, 59% dos poloneses se encontravam abaixo da linha de pobreza. Esse foi o rombo do abismo. É isso que fazem as políticas econômicas. E então, podemos dizer que estamos muito, muito preocupados com as pessoas na base, vamos puxá-las para cima, mas sejamos bem claros sobre o que queremos dizer com isso. Esses incríveis níveis de desiguldade e exclusão econômica estão alimentando, agora, o chauvinismo, o racismo, o anti-semitismo, a misoginia, e a difundida homofobia na Polônia. E acho que podemos observar, na realidade, que isso era inevitável, porque eles tentaram ter o comunismo, daí tentaram ter o capitalismo, e daí o socialismo democrático, mas o que obtiveram, ao contrário, foi uma terapia de choque. Depois que se tenta tudo isso, não sobra muito mais que o fascismo. É perigoso suprimir as alternativas democráticas quando as pessoas investem nelas seus sonhos. É um negócio muito arriscado.
Outro desses sonhos poderosos foi Tiananmen Square, e é um desses tipos de golpes de azar muito tristes da História que, no mesmo dia em que o Solidariedade ganhou suas eleições históricas e que aquele sonho foi trapaceado… aquilo para que votaram foi traído, tanques militares rolaram em Tiananmen Square, e esse foi o dia do massacre: 4 de junho de 1989. Foi outro final sangrento para um momento de possibilidade efervescente.
O modo como esses protestos foram veiculados no Ocidente foi de que os estudantes de Beijing só queriam viver como nos Estados Unidos. E eles, como vocês sabem, botaram uma deusa da democracia que parecia muito com a Estátua da Libedade. Assim, o evento foi reportado pela CNN como um protesto em prol de uma democracia de estilo pró-americano.
Mas, em anos recentes, emergiu uma análise alternativa desses eventos. E o que estamos começando a ouvir do que é chamado de a Nova Esquerda da China, e de pessoas como Wang Hui, que é um maravilhoso acadêmico, é que essa foi uma super-simplificação do que estava impulsionando o movimento pró-democrático na China, em 1989. A motivação do movimento era que o governo de Deng Xiaoping estava reestruturando radicalmente a economia, segundo as linhas que tinham sido prescritas por Milton Friedman – uma terapia econômica de choque – e que as pessoas estavam vendo sua qualidade de vida cair. Os trabalhadores estavam perdendo direitos. E estavam tomando as ruas e exigindo um controle democrático da transição econômica.
De modo que a democracia não era uma idéia abstrata. Não se tratava só do “Eu quero votar”. Era: “Queremos controlar esta transição. Queremos ter uma participação nela”. Era uma desafio direto à formulação de Fukuyama, a qual, por sinal, tinha sido feita naquele mesmo ano: a idéia de que havia essas duas correntes, mas que elas não se cruzariam”.
Queria ler uma outra coisa, sobre um desses outros caminhos que não foram tomados, porque sabemos como aquele terminou, em Tiananmen Square: foi esmagado. Outro momento histórico de possibilidade quando olhamos para a nossa História recente foi 1994, quando o governo ANC ganhou estrondosamente as eleições na África do Sul. Era uma vitória para o poder do povo. Foi um dos dias mais esperançosos de que me posso recordar.
Acho que deveríamos lembrar para que os sul-africanos achavam que estavam votando, nessas eleições históricas. Elas foram reportadas como algo muito simples: o fim do apartheid. Mas o que significava o fim do apartheid para os sul-africanos? Na realidade, podemos obter uma resposta de Nelson Mandela, que escreveu uma pequena nota duas semanas antes de ser liberado do cárcere. Ele escreveu essa nota porque havia uma preocupação crescente de que ele tinha estado por muito tempo na prisão, e que ele poderia ter se esquecido da promessa de liberação, que não era simplesmente ter eleições, mas sim mudar a economia do país e redistribuir a riqueza. E Mandela se encontrava sob uma tal pressão que precisou soltar esse breve depoimento para esclarecer esse problema. O que ele disse foi: “A nacionalização das minas, dos bancos e da indústria monopolística é a política do ANC e uma mudança ou modificação de nossos pontos de vista relativamente a essas questões é inconcebível, em nossa situação. O controle por parte do estado de certos setores da economia é inevitável”. E essa era uma reiteração da Carta da Liberdade da África do Sul, que é a plataforma da ANC, e que demanda que a riqueza nacional da África do Sul, a herança do país, sejam devolvidas ao povo, assim como a riqueza mineral, etc…
Digo isso porque esse era um daqueles mundos que não foi escolhido, uma daquelas vias que não foram eleitas. E eu passei os últimos quatro anos tentando resgatar essas alternativas, que foram roubadas e traídas da lata de lixo de nossa história recente, porque acho que isso é importante. É importante termos tido idéias o tempo todo, e sempre houve alternativas ao mercado livre. E precisamos recontar nossa própria história e compreendê-la, precisamos ter presentes todos os choque e todas as perdas, a perda de vidas, nessa história, pois a história não acabou. Havia alternativas. Elas foram escolhidas, mas daí foram roubadas. Foram roubadas através de golpes militares. Foram roubadas através de massacres. Foram roubadas através de traições, através de mentiras. Foram roubadas através do terror.
Nós que dizemos acreditar num outro mundo precisamos saber que não somos perdedores. Não perdemos a batalha das idéias. Fomos trapaceados, mas nossas idéias não foram superadas. Perdemos porque fomos esmagados. Às vezes fomos esmagados por tanques do exército, e às vezes fomos esmagados por “think
tanks”, e com “think tanks” me refiro às pessoas que são pagas para pensar pelos produtores dos tanques de guerra. O mais eficaz é quando os dois se unem em parceria. A busca para impor um mercado mundial único registra, agora, vítimas aos milhões, do Chile de então ao Iraque de hoje. Os planos para um outro mundo foram esmagados e desapareceram porque eles eram populares e porque, quando postos em prática, funcionam. São populares porque têm o poder de dar a milhões de pessoas uma vida com dignidade, com as necessidades básicas garantidas. São perigosos porque colocam limites reais aos ricos, que reagem de acordo. Compreender essa história, compreender que nunca perdemos a batalha das idéias, que somente perdemos uma séria de guerras sujas, é fundamental para construir a confiança que nos falta e acender a intensidade de paixão de que precisamos.
AMY GOODMAN: Naomi Klein, autora do livro que sairá em breve: “The Shock Doctrine: The Rise of Disaster Capitalism” (A Doutrina de Choque: o Avanço do Capitalismo de Desastre”)

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